Tolos mas nem tanto
As justificações "técnicas" para introduzir portagens nalgumas Scut são mentirosas e desonestas
O princípio das Scut é simples: "Constrói-se agora e paga-se depois." Os privados investem, o Estado fica a pagar-lhes uma renda de acordo com o tráfego dessas vias. Ganhamos hoje as estradas, deixamos para Orçamentos futuros o seu pagamento. Só que os Orçamentos futuros já hoje não têm dinheiro suficiente para suportar os encargos. A factura revelou-se depressa bem pesada, tornando-se claro que, sendo a manta curta, para tapar a cabeça descobrem-se os pés. Por outras palavras: para pagar as Scut tem de se cortar noutras rubricas. No Estado social, por exemplo.Não deve, pois, surpreender ninguém que José Sócrates tenha sido obrigado a desdizer-se: afinal as Scut, ou algumas das Scut, iriam pagar portagem. E a arranjar argumentos "técnicos": as zonas servidas por essas Scut já tinham alcançado um nível de riqueza que não justificava a sua manutenção e existiam alternativas onde o tempo consumido não seria mais que 2,3 vezes superior ao gasto seguindo pela via rápida.
Acontece que os estudos que serviram de base às decisões anunciadas foram ontem divulgados. Olhando-os com atenção, percebemos que estamos face a uma manipulação grosseira dos números destinada a justificar do ponto de vista "técnico" o que é político: a quebra de mais uma promessa eleitoral.
Se não vejamos. Para justificar a inclusão das Scut com origem no Porto, os estudos consideraram sempre o rendimento do... Grande Porto. Como depois o somaram aos das outras regiões e dividiram pelo número de habitantes, conseguiram que todas essas Scut entrassem no critério definido. Ou seja, misturaram regiões onde o rendimento é superior à média nacional com regiões onde este é inferior a metade da média nacional - procedimento que é, no mínimo, intelectualmente desonesto.
Porém, seguindo apenas este critério, duas outras Scut teriam de ter portagens: a Via do Infante no Algarve e a que liga Abrantes à Guarda, passando pelo distrito do primeiro-ministro, Castelo Branco. Não podia ser, pois colocar portagens na Via do Infante implicaria que o Estado (que construiu e pagou a maior parte desta via) teria de fazer esse investimento e em 2006 não há quase dinheiro para investimento, e colocar portagens a caminho do distrito de José Sócrates estava fora de causa.
Introduziu-se então um outro critério para avaliar a riqueza das regiões atravessadas: calcula o poder de compra nos concelhos por onde passa a Scut. Esta mudança de critério é difícil de entender, mas utilizando-o tirou-se da lista a Auto-Estrada da Beira Interior. Faltava tirar a Via do Infante, algo difícil numa das regiões mais ricas do país.
Recorreu-se então ao critério do tempo gasto na via alternativa. Segundo o IEP, nesta consumir-se-ia 2,4 vezes o tempo despendido para ir, pela auto-estrada, da fronteira a Lagos. Como se chegou a este valor? Utilizando softwares comerciais corrigidos pelo "conhecimento empírico" do terreno, lê-se no documento. Assim, por uma décima, a Via do Infante livra-se das portagens. Acontece, porém, que ao "conhecimento empírico" se devia antes chamar "martelar" os números. Porquê? Porque, para desgraça do Governo, o IEP encomendou um estudo a um consultor privado, que percorreu o percurso nos dois sentidos (em Agosto!) e, mesmo assim, conseguiu chegar apenas a uma diferença de 0,9 em lugar do excesso de 1,4 vezes que o IEP invoca.
O gato ficou escondido com o rabo de fora, e nos estudos há muito mais alçapões. Só é pena que o Governo julgue que todos são tolos. Não são. Pelo que aos que sempre defenderam o princípio do pagamento das portagens só resta pedir que o Executivo vá pelo menos até ao fim e as introduza também na Beira Interior e no Algarve. Seria mais honesto e coerente, pois nem sempre gerir bem a informação consegue evitar o inevitável: que se perceba quando se está perante argumentos falaciosos e mentirosos.