Sou optimista: acredito no género humano, e no género humano português muito em particular
O bispo do Porto não recusa as dificuldades que o país atravessa, mas tempera-as com uma visão transversal da História que lhe alimenta a crença de um país melhor no futuro próximo. Cauteloso sobre a Europa, exigente sobre a verdade na vida pública, D. Manuel Clemente tem uma exigência: a crise não pode pôr em causa a sobrevivência digna das pessoas
D. Manuel Clemente (n. 1948), Prémio Pessoa, bispo do Porto e um dos mais profundos pensadores do país na actualidade, chegou constipado à sala marcada para a entrevista. "É duro viver num palácio assim tão grande", confidenciaria depois, quando mostrava o resultado das obras de recuperação do paço episcopal ou os retratos dos seus antecessores e a magnífica colecção de contadores de arte indo-portuguesa.
Muito por força da realidade política internacional, parece que os portugueses estão outra vez destinados a confinar-se ao seu rectângulo original. Isso preocupa-o?
Portugal existe exactamente por não se confinar ao seu rectângulo original. Para os portugueses, Portugal, este Portugal daqui, este cantinho da Europa, nunca foi o bastante. E até pela nossa própria situação: somos, na Europa, o país que está mais perto de outros continentes, daqueles que já se conheciam, como África, ou dos que ainda não se conheciam, como a América. Portugal teve sempre no mar a sua melhor definição. É um país-cais, onde se está sempre a chegar e de onde se está sempre a partir. Um país embarcado. Somos hoje cerca de 15 milhões, mas um terço está no estrangeiro. Alguns países da Europa, como por exemplo o Luxemburgo, conta com uma grande percentagem de população de origem portuguesa. O mesmo se pode dizer do Brasil, se volta agora a dizer de África, e também de França, Espanha, Inglaterra...
Após este período em que estivemos muito focados na Europa, devemos recuperar a nossa vocação atlântica?
A questão não se põe como contraposição. A maneira de Portugal estar na Europa foi sempre a de ser a porta da Europa. Foi sempre com essa ligação ao mar que nós entrámos na Europa e que a Europa entrou no mundo através de Portugal. Não nos podemos esquecer, quando falamos na expansão europeia, que tudo aconteceu a partir daqui, que essa Europa que até ontem estava no centro da geografia também se definiu a partir de Portugal. Não é, portanto, voltar as costas à Europa, é que a Europa encontre aqui outra vez uma porta de saída e de entrada.
É consensual a ideia de que a Europa precisa, mais do que nunca, de se unir, mas os actuais líderes europeus parecem incapazes de evitar que o projecto europeu se desmorone.
A Europa, se calhar, será sempre assim, como foi a antiga Grécia. Somos muito herdeiros dos gregos. Falamos na Grécia, mas a Grécia como um país unido só existiu nos poucos anos que durou o império de Alexandre. Houve sempre uma tensão permanente, quando não uma luta aberta, entre cidades-estado que nunca se conseguiram unificar. A não ser contra inimigos comuns, como os persas. A Grécia tinha realmente uma cultura, e tinha um contorno, que aliás não coincide exactamente com o da Grécia actual, porque apanhava a parte ocidental da Turquia. Também a Europa é uma cultura, há uma maneira europeia de estar no mundo. Dos países de Leste a Lisboa, há aqui um conjunto de ideias comuns, e até de topografias, que nos fazem sentir de certa maneira em casa, sobretudo quando vimos de outros continentes. Mas, ao mesmo tempo, esta tensão entre o local e o europeu é capaz de ser constitutiva da Europa. Não sei se conseguiremos ser uma federação, ou mesmo uma confederação. Mas sei que os problemas com que a Europa hoje se confronta obrigam os europeus a encontrar bases mínimas para viverem em comum. Se não o fizerem, correm o risco de se tornar muito insignificantes no conjunto geoestratégico.
Não estamos a andar para trás?
Outros dizem que se andou para a frente muito depressa. O projecto dos pais fundadores da União Europeia - Monnet, Schumann, Adenauer - nunca foi realmente cumprido. Eles projectavam muito mais, nos anos 50, do que aquilo que depois se conseguiu realizar. No entanto, conseguiram dar à Europa meio século de paz continental, o que já foi uma enormíssima proeza. E tinham ao mesmo tempo essa dimensão idealista e um realismo que os levou a começar pelo carvão e pelo aço, pelas matérias-primas básicas para o desenvolvimento industrial europeu no pós-guerra. Esta mistura foi muito importante, como o foi a persistência. Um dos problemas que agora se coloca é o da Inglaterra, que foi sempre um outsider da vida europeia.
Refere-se à posição assumida por David Cameron na última cimeira europeia, recusando a reforma dos tratados?
Sim. Mas quando o primeiro-ministro regressou a Inglaterra, encontrou oposição no seu próprio partido. É preciso ver que a Inglaterra é hoje, como boa parte dos seus vizinhos europeus, um país muito inter-étnico e intercultural. As coisas já não são como foram até meados do século XX. Basta pensar que a grandíssima maioria dos sete biliões de habitantes do planeta está hoje no Pacífico e no Índico, não está aqui. Há o risco de a Europa se tornar muito periférica. Mesmo a Alemanha, por mais que valha, não pode comparar-se a uma China ou a uma Índia, ou mesmo a um Brasil - não tanto como são hoje, mas como serão já amanhã.
A Europa vai ter de se debater de novo com a "questão alemã"?
Talvez. Mas temos de ver que a própria Alemanha está a modificar-se internamente. Só os turcos já são, na Alemanha, mais de cinco milhões. E a Alemanha, sozinha, não se sustenta. Todos precisamos uns dos outros. O que depois há é agendas políticas e eleitorais...
Não acha que estas décadas de paz e desenvolvimento podem fazer-nos esquecer que, em ambientes de depressão económica, uma democracia pode descambar rapidamente na ditadura, como aconteceu na República de Weimar?
Acho que há hoje dois aspectos preocupantes para a democracia, um interno e outro externo. O primeiro é a não participação das pessoas: as grandes percentagens de abstenção nas eleições dos países europeus são um sinal preocupante. O aspecto externo é o facto de os grandes centros de decisão estarem hoje fora do âmbito nacional e estatal. E é também por isso que as pessoas não intervêm. Não sabem quem manda, o poder não tem rosto. Se estes dois aspectos se agravarem, se aumentar o abstencionismo e o sentimento de que nada de essencial se decide a nível nacional, a democracia corre perigo.
As pessoas têm a percepção de que não há nada que possam fazer...
O que existe é uma anti-ideia. A ideia de que cada um faz o seu próprio mundo, real ou virtual, desinteressando-se de ideais colectivos. As pessoas desistem porque o dia-a-dia as sobreocupa excessivamente e não vêem mais nada, acham que as decisões mais gerais são para os outros. Mas também desistem porque aqueles que deveriam pedagogicamente propor ideais e linhas de rumo estão também no puro imediatismo.
É, portanto, uma ideia de individualismo radical que contraria os princípios básicos do cristianismo.
O cristianismo é sempre o confronto de alguém, e também de uma cultura, com a figura de Jesus Cristo, que é sempre muito interpelativo: o que queres realmente?, como te comportas em relação ao teu próximo?, como te aproximas verdadeiramente do outro? É muito responsabilizante e muito personalizador. A pessoa não é um eu isolado, é um eu em relação, com a família, a vizinhança, o país. Uma cultura que não entende este aspecto personalizador corre o risco de se desmoronar e está nos antípodas do cristianismo.
Se nos reportarmos aos fundamentos do cristianismo, e pense-se por exemplo na reiterada censura bíblica da usura, não seria de esperar da Igreja uma crítica mais radical ao capitalismo financeiro?
Quando lemos a última encíclica do Papa Bento XVI, Caritas in Veritate, que tem dois anos e meio e é um autêntico compêndio de temáticas cristãs na sua relação com a sociedade e a economia, vemos que está lá essa crítica a tudo o que seja um jogo financeiro, lembrando que o que suporta a sociedade, e que, portanto, também deveria ser o suporte da economia e das finanças, são as pessoas. Partindo destas perspectivas de responsabilização, é perfeitamente admissível que cristãos e não cristãos entendam que se chega mais depressa ao desenvolvimento integral das pessoas por uma via de maior ou menor intervenção estatal na economia, ou investindo em aspectos mais cooperativos, dos quais agora infelizmente se fala pouco. Há muitas escolas, e é bom que haja esse confronto, porque nenhum de nós é capaz de perspectivar totalmente a realidade.
Como é que vê o modo como o Governo está a lidar com a crise?
O problema é externo. Ficamos tão dependentes do que vinha de fora que, agora, no momento de nos apresentarem a factura, não podemos pagar. Compreendo que a margem de manobra é estreita, mas é exactamente por isso que devemos concentrar-nos em salvar o essencial.
E o que é o essencial?
É salvar, na medida do possível, o que não pode estar em causa: a sobrevivência digna das pessoas. É preciso que tenham trabalho, não apenas por uma questão económica imediata, mas porque o desenvolvimento verdadeiro de cada um só se faz mediante o trabalho, e que lhes dêem condições para que possam ter filhos e educá-los. É preciso fortalecer as famílias. Enfrentamos o problema terrível de uma sociedade que não se reproduz. E é preciso restabelecer as redes de vizinhança, para que as pessoas não vivam no anonimato.
É uma declaração programática. Mas é realizável?
Se não cumprirmos isto, não cumprimos nada. Sem isto, não há democracia, nem demografia, nem coisa nenhuma. Não pode ser hoje? Então tem de ser já amanhã de manhã. Os decisores políticos, económicos e financeiros - e todos nós que defendemos a democracia e a participação - têm de assumir estes valores como prioritários. Imaginemos que se achava que a solução era atomizar ainda mais a sociedade. Que se pensava: as pessoas têm capacidade de trabalho e, sendo assim, tanto faz que estejam no Porto, ou no Algarve, ou no Funchal, independentemente do seu agregado familiar. O que aconteceria é que o secundário se tornaria amanhã o problema principal. Se não temos em conta o envolvimento interpessoal de cada um, estamos a construir na areia.
A Igreja sente-se mais próxima deste Governo do que do anterior? O diálogo é mais fácil?
Sinceramente, não noto isso. Nem mais nem menos fácil. A nossa posição é a de Jesus Cristo: dai a César o que é de César. Num estado democrático, em que há eleições e liberdade, a nossa atitude só pode ser a de acatar as decisões dos poderes instituídos, o que não é incompatível com críticas ou acções perante uma ou outra medida.
Tudo indica que a situação social se vai ainda agravar nos próximos tempos. O que pode fazer a Igreja?
Quando falamos de Igreja, há dois níveis. O primeiro é o do comum dos cristãos e católicos, cidadãos que têm essa motivação evangélica de serviço e que participam em associações e instituições, e também as estruturas confessionalmente ligadas à Igreja, como os centros paroquiais ou as Conferências Vicentinas. Tudo isso está no terreno. São instituições que estão muito perto das pessoas, que conhecem bem as situações, o que é muito importante para garantir que os poucos recursos sejam administrados da melhor maneira. Não posso garantir que se possa responder sempre, mas creio que, numa cidade como o Porto, a conjugação de todas as respostas, da Igreja e fora dela, assegura uma rede mínima para lidar com situações urgentes.
O agravamento da crise vai levar a Igreja a assumir um maior protagonismo político, como o que acontece, por exemplo, em Espanha?
Tem de haver discrição, não se pode fazer gala nem pretexto para conquistar protagonismo político. De maneira nenhuma.
Essa atitude resulta de uma escola ou da ausência de uma personalidade como a de Rouco Varela (cardeal arcebispo de Madrid)?
As coisas em Espanha evoluíram de uma certa maneira. A Espanha quase parece cortada ao meio, aquilo que o escritor português do princípio do século XX, Fidelino de Figueiredo, chamava las dos Españas. E uma dessas "Espanhas" mobilizou-se muito em torno de líderes religiosos. Talvez também a campanha laicista que tentou tirar as organizações católicas dos meios públicos fosse mais agressiva do que em Portugal, que certamente foi. Em Portugal, a insistência tem sido que todas as questões que se põem acerca da vida, do casamento, questões que se põem à sociedade, devem ser remetidas a si mesma, à sociedade. Os cristãos participam com outros que não são cristãos em coisas que têm de ser socialmente equacionadas, como a vida intra-uterina, ou da interrupção da gravidez, como se diz com algum eufemismo. A posição do episcopado português, portanto, é que essas questões têm de ser debatidas na sociedade, não são questões internas à Igreja, não são questões confessionais.
Concorda com a redução dos feriados, que se aplicará a duas datas de componente religiosa e a outras duas de natureza política?
Eu não gosto de pôr a questão assim. Quem marca os feriados é o Estado, não é a Igreja. Na Concordata, o que está previsto é que, em relação a festas religiosas que sejam feriados civis, o Governo se entenda com a Santa Sé. Da nossa parte, manifestámos a quem nos perguntou que, por exemplo, o 8 de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, padroeira de Portugal, sendo um feriado religioso que tem a ver com a mãe de Jesus, também tem a ver com algo que foi muito definidor da vida e da cultura portuguesa desde o tempo de D. João IV, a Restauração da Independência, o facto de os reis de Portugal a terem deixado pôr a coroa na cabeça, passando a ser ela a rainha. O Padre António Vieira achava que esta atenção à Imaculada Conceição era como um prefácio do que o Portugal restaurado havia de ser. Estas coisas são sinais culturais muito fortes. Não é fácil mexer nisto.
E no que diz respeito aos feriados civis em questão (o 5 de Outubro e o 1 de Dezembro). Não terão essa mesma marca cultural?
Eu, como sou historiador, acho que são, todos eles, muito interessantes. São datas marcantes da História. Mas admito que esses dias de não trabalho pesem negativamente na economia e que a coisa tenha de se rever.
Em muitos momentos anteriores de crise, os portugueses mostraram-se menos complacentes e mais exigentes do que agora para com os governos. Esta atitude vai manter-se?
Eu tenho pedido muito, quer aos governantes, quer aos líderes partidários, que sejam pedagógicos, que sejam claros, que expliquem. Porque nós somos capazes de entender. Se nos dizem, "olhem, as condições são estas, hoje em dia estamos muito dependentes daquilo que venha ou não venha do exterior e para isso há condições a cumprir", nós somos capazes de perceber. Mesmo quando há diferentes propostas em confronto, não gritem, expliquem. Nós fomos um país com uma enorme densidade cultural, que é o nosso melhor futuro. Eu tenho tido a vantagem e a obrigação de estar perto de muitas realidades, e quando ouço os professores ou vou a uma unidade da saúde e falo com os profissionais que lá estão, vejo uma grande vontade de resolver as situações. Há energia, há energia nas pessoas que estão envolvidas nas diferentes soluções. A mesma coisa no mundo empresarial. Há muita gente que tem vontade para tudo menos para deixar cair os braços e dar-se por derrotado. O país tem densidade, o país tem lastro, tem esta grande vantagem de ser o país europeu com as fronteiras definidas há mais séculos, apesar de tudo. E não é só por ser um país periférico. Houve países periféricos que acabaram absorvidos, e este manteve-se. Temos muita gente lá fora e muita dela bem situada e disponível para ajudar e para apoiar. Nós temos futuro. Agora, haja pedagogia, haja clareza nas propostas, mantenham todos os dinamismos de concertação, tomem as decisões, mas expliquem-nas, e nós avançamos.
E quando (e se...) tudo isto passar, que país espera encontrar?
Eu espero que sejamos um país de vizinhança recuperada, ou seja, nós, nos nossos bairros, nas nossas empresas, nas nossas escolas, nos conheçamos e reconheçamos melhor. Que sejamos um país mais articulado nos diferentes patamares da sociabilidade, em que a família seja um bem precioso, até para que nós continuemos a existir, não só para as novas gerações mas também para a integração dos mais velhos, e que isso seja uma prioridade - temos um terço da população acima dos 60 anos. Não é uma população dispensável, é uma população que tem um contributo a dar à sociedade portuguesa, que tem um capital acumulado de saber e de experiência que a sociedade não pode dispensar. Espero que sejamos uma sociedade que tenha desenvolvido melhor outras apetências que não sejam as do lucro e do consumismo, mas que tenha a ver com a vida intelectual, com a vida artística, com a vida criativa. Gostei de ouvir o anúncio de que, na escola, se vai dar mais tempo à História, à memória colectiva, que é muito importante, porque se nós não temos consciência de nós próprios não seremos capazes de enfrentar o futuro. Nós somos uma memória projectada; se não há memória, não haverá projectos. Que seja um país mais humano.
É um optimista?
Sou. Eu acredito no género humano, e no género humano português muito em particular.
Apesar do défice enorme de participação cívica, ou da falta de lideranças carismáticas...
Essas coisas têm lados vantajosos e desvantajosos. Quando há lideranças baseadas no carisma também há facturas a pagar. Eu sou, por natureza, muito desconfiado em relação a lideranças e a carismas muito pronunciados porque, geralmente, dispensam a participação. As pessoas tornam-se espectadores de grandes discursos e deixam de pensar por si. Preocupo-me muito com as vizinhanças. O que se passa no mundo autárquico, com a possível reconfiguração do mapa autárquico, exige muito cuidado. Muito cuidado. Uma coisa é agilizar e funcionalizar a gestão, mas cuidado com estruturas de proximidade e de tradição que identificaram muitas pessoas ao longo de muito tempo e que ainda funcionam como primeiro balcão de proximidade e de resposta. Muito cuidado com isso. As identidades de proximidade com esta escola, esta empresa, esta autarquia, são muito importantes.
O Papa, mesmo tendo mostrado abertura aos diálogos entre crentes e não crentes, sobre temas confessionais e não confessionais, não tem exibido uma certa radicalidade na recuperação de fundamentos da fé mais conservadores?
Quando Bento XVI foi eleito, numa entrevista ao PÚBLICO, eu tive ocasião de dizer que o seu percurso tinha de ser aguardado com muita expectativa porque ele conhece muito bem a tradição do Cristianismo. A tradição prática e a tradição teórica. Conhece muito bem os textos fundadores do Cristianismo, a reflexão que foi feita ao longo dos séculos, a reflexão filosófica e teológica. É uma pessoa que está muito segura na tradição; tem o pé de trás muito firme o suficiente para pôr o outro à frente sem se estatelar. Geralmente, estes papas que conhecem bem a tradição, como foi também o caso de João XXIII, o Papa do Concílio (Vaticano II), têm uma visão essencial do que é importante e acessório, do que é permanente e temporal. São pessoas predispostas a dialogar e a perceber o que pode ser um apelo ou um progresso. E este Papa tem tido um discurso notável. Quem tem atenção aos seus pronunciamentos sobre os mais diversos aspectos, há-de reparar na cautela em somar a argumentação, em não precipitar as conclusões. É sempre muito ponderado, sopesa o valor de cada argumento e produz uma reflexão muito bem conseguida e estimulante. Os discursos que ele tem feito nas suas idas a África, de olhos nos olhos de presidentes como o de Angola ou do Benim, é do mais claro que se tem dito acerca de uma África onde não pode haver corrupção, onde tem de haver respeito pelas populações. E, mesmo em relação a temas da actualidade europeia, ele tem sido de uma enorme clareza, debatendo e conversando com grandes figuras da filosofia, como Jürgen Habermas. Isso dá aos textos de Bento XVI uma densidade que qualquer pessoa de boa vontade terá dificuldade em recusar.
Até nas questões relacionadas com a sexualidade?
Aí tem a ver com a própria tradição do Cristianismo e do ponto de vista do personalismo. Nos últimos anos, o tema da sexualidade descolou-se muito de uma visão integrada do ser humano. Tornou-se quase uma técnica. Mas qual é o significado deste acto no conjunto da personalidade e no que seja a sua vida? Toda a reflexão que a Igreja tem proposto é conjugá-la com a expressão da pessoa humana, não como um acto isolado, mas procurando o significado desta atitude dentro do conjunto da personalidade, o que implica sempre a relação com o outro. Esta integração da sexualidade na personalidade vai muito contra a comercialização daquilo a que se chama o sexo.
A Igreja não está confrontada com um desafio semelhante ao dos partidos comunistas europeus após a queda do Muro de Berlim: saber se deve abrir-se e correr o risco de se dissolver, ou manter-se firme na tradição e arriscar-se a ficar circunscrita aos crentes actuais?
A Igreja só tem interesse se fizer uma proposta clara. Mas olhe que não sou só eu a dizer isto: o Vargas Llosa, que não é católico, publicou no El Pais, em Agosto,um comentário às Jornadas Mundiais da Juventude, que reuniram em Madrid um milhão e meio de jovens. O que diz ele? Que, apesar das críticas que foram feitas àquela organização religiosa, elas realizaram-se e Madrid viveu uns dias que nós não estávamos habituados a viver. Isto acontece porquê? Isto acontece, diz o Vargas Llosa, porque a Igreja tem uma proposta clara e perceptível. Os jovens percebem, directa ou indirectamente, que há aqui uma proposta, uma definição que refere uma longa tradição cristã mas que continua disponível. Se isso se tivesse diluído no conformismo geral e no politicamente correcto, já ninguém perceberia nada e nada disto seria possível.
Na era da globalização, essa proposta dá margem de manobra à Igreja católica para competir com outras igrejas como as evangélicas, que apostam no marketingou na televisão para aumentar o número de crentes?
Temos de ver caso a caso. Nós notamos algum recuo da presença da Igreja, da presença católica ou até cristã, em algumas zonas da Europa. Mas, ao mesmo tempo, notamos um crescendo da presença da Igreja católica em países como o Vietname ou a Coreia.