Família, Estado e direito à educação

"Enquanto um professor não for morto em plena escola, eles [os alunos] não vão parar", advertiu, em carta enviada ao PÚBLICO, um docente contratado pela Escola Básica 2,3 de Miragaia, no Porto. Os alunos, perplexos, acham que ele é um dos tais "profes" que entram na sala de aulas "armados em capitães da lancha". Uma reportagem de Fernando Marques.

O Prof. Mário Pinto teve a bondade de prestar alguma atenção (cordial) ao meu texto publicado nestas páginas (a 28 de Dezembro), a propósito de dois artigos seus sobre a liberdade de ensino, publicados na sua tribuna semanal (a 4 e 11 de Dezembro). Não tenho espaço para abordar aqui, ponto por ponto, todas as questões suscitadas pelos seus artigos de 8 e 22 de Janeiro, cuja abordagem, de resto, não cabe nas páginas de um jornal. Limito-me a evocar os tópicos principais da minha argumentação.Sobre a relação entre "direitos de liberdade" e "direitos sociais". Todos os direitos do ser humano são direitos para a liberdade e as liberdades. Por isso "os direitos sociais (...) são também 'direitos de liberdade' e, mesmo, os primeiros direitos de liberdade, como meios de libertação" (Gomes Canotilho & Vital Moreira, 'Fundamentos da Constituição', 1991). Sobre a relação entre "liberdade de educação" e "direito à educação". Como afirmou Mirabeau na Assembleia Nacional francesa, em 1791, "qualquer um tem o direito de ensinar o que sabe e até o que não sabe". Mas por alguma razão a liberdade de ensino é "a menos amada das liberdades de expressão", como observou o eminente constitucionalista francês Jean Rivero. É uma liberdade controversa porque tem um conteúdo complexo: é direito à liberdade de aprender, de aprender com liberdade, de ensinar e de criar estabelecimentos de ensino. Mas sobretudo, talvez, porque quando se fala de liberdade de ensino é do direito à educação que principalmente se fala. A menos que os educandos sejam meros 'objectos' da liberdade dos educadores e de empresários da educação. Sobre o conteúdo do "direito à educação". Como "direito do homem", a educação é um direito dos filhos, dos alunos, de todo o ser humano, ao "pleno desenvolvimento da personalidade humana", tanto quanto for possível histórica, económica e individualmente. Os principais responsáveis pela sua realização são a família e o Estado, agindo no "interesse superior" dos educandos. Sobre as obrigações do Estado no domínio do direito à educação. Pela "natureza intrinsecamente pública do ensino em geral", escrevem Gomes Canotilho & Vital Moreira, "o direito ao ensino é necessariamente uma tarefa pública". O Estado tem internacionalmente as seguintes obrigações principais: criar e manter um sistema educativo que assegure um mínimo e tenda para o máximo de instrução dos cidadãos, sem discriminação e sem qualquer forma de doutrinamento; reconhecer a liberdade de educação, sem obrigação de subvencionar as escolas privadas; prescrever e controlar a observância de normas mínimas comuns para as escolas públicas e privadas; garantir o respeito dos valores que devem inspirar toda a educação, enunciados nas suas normas internacionais principais. Sobre o "direito de educação" da família. A responsabilidade primeira da família em matéria de educação é naturalmente incontornável, mas o tradicional "direito de educação" (expressão cuja matriz constitucional julgo estar na Constituição alemã de Weimar, 1919) não está em sintonia com a ética dos "direitos do homem". Eu sei que para S. Tomás os filhos eram "como que coisa dos pais" e a educação uma "geração continuada", no "útero espiritual" da autoridade paterna; que a 'Human Life International' considerou a Convenção sobre os direitos da criança "uma ameaça para a integridade moral das crianças e para os direitos dos pais"; que a Organização Internacional para o Desenvolvimento da Educação Livre dirigiu ao comité dos direitos económicos, sociais e culturais das Nações Unidas uma tomada de posição a propósito da sua Observação geral 13 (referida no meu texto anterior), considerando que nela "a questão da liberdade da educação não foi tratada com profundidade bastante". Mas "direito de educação" é uma fórmula que já não se encontra nos principais instrumentos do Direito Internacional dos Direitos do Homem, designadamente na Convenção sobre os direitos da criança, cujos Artigos 3, 5 e 18, nomeadamente, constituem o quadro normativo mais actual e legítimo para a interpretação da posição dos pais em matéria de educação.Concluindo, família e Estado têm "responsabilidades" para com as crianças e não propriamente "direitos" sobre elas, em matéria de educação. O "direito do homem" à educação introduz uma 'ruptura ética' nas relações filhos-pais e crianças-Estado que se resume nisto: o ser humano que é uma criança não pertence aos pais nem ao Estado, mas a si próprio. A sua liberdade é um bem demasiado humano para ser deixado tanto à arbitrariedade das famílias e dos Estados como às leis do mercado. Tem de ser protegida contra todas as tentações de apropriação, desde as mais ostensivas às mais disfarçadas. Mas o Estado continua a ser o principal responsável pela satisfação do direito à educação por duas grandes razões: porque as famílias, sobretudo as mais pobres, não têm os recursos necessários para criar todas as possibilidades de satisfação do direito à educação, e porque compete ao Estado ser garante do bem comum formulado nas normas fundamentais de cada comunidade nacional e da Comunidade Internacional, as mais importantes das quais são as que proclamam os direitos do homem. A metade das crianças do mundo cuja satisfação do direito à educação é prejudicada por obstáculos financeiros e as crianças de mais de 40 Estados onde a escola primária ainda não é gratuita nem obrigatória só podem ter esperança nas responsabilidades do Estado, com a solidariedade da Comunidade Internacional. Para os mais fortes, o Estado pode ser um obstáculo à sua liberdade, mas os mais fracos precisam dele porque não podem pagar o preço da liberdade. Mais do que nunca, na era da globalização, os "direitos do homem" carecem de um Estado forte e de uma Comunidade Internacional atenta e activa Em suma, na topografia ética dos direitos do ser humano, a liberdade de educação está a jusante, não a montante. Tem de ser aprendida com liberdade pessoal, mas não pode ser exercida sem justiça social. É a 'Razão de Estado' de um Estado de Direito democrático. É para que a liberdade seja um bem no coração e na boca de todo o ser humano que o direito à educação precisa da missão ética de uma escola pública de qualidade ainda ausente mas premente. De uma escola do direito à educação.*Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

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