Inimigo da natureza, claro
E a conversa foi rematada com um “Claro que sou um inimigo da natureza”.
Álvaro Dentinho é um arquitecto paisagista da primeira geração, provavelmente o mais criativo e imprevisível de todos, responsável por desenvolver muitas ideias que hoje são conhecidas como “o que diz Ribeiro Telles”.
Álvaro Dentinho, tendo sido sempre um desalinhado, é um dos três responsáveis pelo trabalho seminal Plano de Ordenamento Paisagístico do Algarve, com Viana Barreto e Castello-Branco. Nesse trabalho encontram-se as bases de todos os instrumentos de ordenamento do território que Portugal veio a adoptar, incluindo a Reserva Agrícola Nacional (paz à sua alma), a Reserva Ecológica Nacional (paz à sua alma) e o sistema de planeamento que hoje temos, com os Planos Directores Municipais como centro fulcral.
É nesse contexto, de um dos grandes teóricos da gestão racional da gestão dos recursos naturais, que importa realçar aquele “claro” que precede o “sou um inimigo da natureza”.
Porque esse “claro” é de uma lucidez comum em Álvaro Dentinho e que quero realçar: todos nós, gestores de recursos naturais, através do consumo quotidiano, somos, “claro”, inimigos da natureza, sobretudo da natureza original a que muitos chamam Paraíso. E acrescentam, sabiamente, que foi perdido pela vontade do homem querer sempre mais.
O que me pedem é que seja sobre essa relação entre nós e a natureza que escreva neste espaço.
Nessa relação cabem quase todos os assuntos do mundo, de maneira mais evidente ou de maneira mais escondida.
Por exemplo, Teresa Andresen usa com frequência uma definição de paisagem que remete exactamente para aquele “claro”, sem no entanto se pronunciar sobre a nossa inerente inimizade com a natureza: “A paisagem é o resultado da forma como os homens se relacionam com a natureza.”
É uma definição que me seduz, talvez por juntar, de forma tão elegante, os meus dois campos preferenciais de trabalho: a paisagem e a biodiversidade. Ou, sendo mais preciso, a gestão da paisagem e a gestão da biodiversidade.
Aqui me apresento neste primeiro texto, herdeiro da escola de arquitectura paisagista portuguesa, a que se define como “a arte de ordenar o espaço exterior em relação ao homem” (Caldeira Cabral), mas um herdeiro um bocado estroina e, “claro”, um inimigo da natureza que essencialmente trabalha na gestão da biodiversidade.