Portugal tem quase 3000 ninhos de cegonhas em torres eléctricas

População da ave está a crescer a um ritmo elevado no país, depois de ter estado em risco de desaparecer nos anos 1980.

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Com as cegonhas nas linhas eléctricas Ricardo Rezende

Na Lezíria do Tejo, sob a linha de alta tensão que liga Fanhões a Palmela, basta olhar à volta para ver do que se trata. São poucas as torres onde não há ninhos. Nalgumas, há vários. Estamos à porta da Primavera, as cegonhas já lá se encontram. Planam sobre os arrozais ou deixam-se ficar nos ninhos, sozinhas ou em pares, nos preparos do acasalamento.

A época de reprodução durará até ao final de Agosto. E no ano seguinte, haverá possivelmente mais casais sobre os postes, a julgar pela tendência dos últimos anos. Em 2009, foram contados 1610 ninhos nas torres de alta e média tensão da REN (Redes Energéticas Nacionais). Em 2012, eram 1837 e no ano passado saltaram para 2355. Nos postes da rede de distribuição da EDP haverá mais pelo menos 440 ninhos, segundo dados aproximados fornecidos pela empresa.

Por detrás deste crescimento está uma combinação de dois factores: a população de cegonhas no país tem vindo a crescer nas últimas três décadas, ao mesmo tempo em que se tem expandido a malha de linhas eléctricas. “A rede tem aumentado, o número de ninhos tem aumentado”, afirma Domingos Mateus, da Direcção de Exploração da REN. Em 1993, a REN tinha 5870 quilómetros de linhas. Agora, tem 8733 quilómetros, ao longo dos quais há cerca de 14.000 estruturas de apoio.

A expansão das últimas décadas coincidiu com uma recuperação da população de cegonhas-brancas, depois de uma queda acentuada a partir dos anos 1950. “Nos anos 1980 bateu no fundo”, explica o ornitólogo Victor Encarnação, do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF). As razões para a fase de declínio não estão bem esclarecidas. Possivelmente, terá havido ao longo de duas ou três décadas uma elevada mortalidade em África, para onde as cegonhas migram durante o Inverno. Secas sucessivas e prolongadas e o uso indiscriminado de pesticidas podem ter sido a causa. O facto é que o terceiro censo nacional da cegonha-branca, realizado em 1984, contou apenas 1533 ninhos ocupados em todo o país, metade do que havia 20 anos antes.

Alimento abundante
Os censos seguintes revelaram uma inversão da tendência, num aumento exponencial, com o número de ninhos a duplicar a cada dez anos, para 3302 em 1994 e 7684 em 2004. Neste caso, sabe-se o motivo: comida. Por um lado, as cegonhas tiveram à sua disposição quantidades crescentes de resíduos, depositados nas lixeiras e aterros por todo o país. Por outro, o lagostim-vermelho da Louisiana (Procambarus clarkii), uma praga introduzida em Portugal no final dos anos 1970 e que infestou os arrozais, revelou-se um petisco para as aves. Com alimento à vontade, as cegonhas-brancas deixaram de ter necessidade de procurar outras paragens. “A maior parte da população da Península Ibérica já não migra”, afirma Vítor Encarnação. Com isso, a mortalidade que estava associação à migração caiu a pique.

Vítor Encarnação acredita que o sexto censo nacional da cegonha-branca, que começou agora, no princípio de Março, vai revelar um número ainda maior, possivelmente na ordem dos 12.000 casais.

Até ao último censo, a população de cegonhas que escolhia os postes eléctricos para fazer os seus ninhos vinha crescendo vertiginosamente. Em 1984, eram apenas 1,8% de todos os ninhos, mas em 2004 já somavam 37%. Já os ninhos nas árvores caíram de 65% para 42% no mesmo período.

Por irónico que pareça, uma torre de alta tensão – por onde passam cabos de 400.000 volts – é um dos locais mais seguros para uma cegonha fazer um ninho. “Elas preferem sítios que estejam a salvo de predadores”, esclarece Vítor Encarnação. “Num sobreiro, um gato-bravo sobe facilmente”, exemplifica. Chegando a 35 metros de altura, as torres também proporcionam às aves uma oportuna visão de tudo o que as rodeia.

A atracção é tal que numa única torre no Vale do Mondego há nada menos do que 39 ninhos de cegonhas. É algo que enche a vista, mas pode ser uma dor de cabeça para as redes eléctricas. “As cegonhas são um agente perturbador para as linhas”, afirma Domingos Mateus, da REN. Uma ave com aquele porte, com uma envergadura de até 2,2 metros, pode causar um curto-circuito simplesmente ao abrir as asas ou através dos dejectos que se acumulam sobre as estruturas que isolam os cabos eléctricos das torres em si.

Há pelo menos uma década que a REN adopta medidas para minorar o risco de uma falha provocada por uma cegonha. Todos os anos, os ninhos localizados por cima dos isoladores são transferidos para plataformas artificiais que são deliberadamente instaladas nas torres. Ao mesmo tempo, grandes ventoinhas são colocadas nos sítios onde não se quer que as cegonhas estejam ou regressem. “Queremos impedir que a ave pouse ou faça ninhos nos locais perigosos”, explica Domingos Mateus.

Ninhos de 200 quilos
Chegar ao topo de uma torre eléctrica é fácil para uma ave, mas envolve dotes de alpinismo para um ser humano. Dois trabalhadores fazem a escalada pelos seus próprios pés, atados a cordas de segurança. Em baixo, outra equipa iça as plataformas e ventoinhas. Às vezes, é preciso retirar um ninho de um ponto e colocá-lo noutro. “Há ninhos que pesam 100 a 200 quilos”, comenta um dos trabalhadores que faz este tipo de operação para a REN. “Desmontamos e carregamos à mão”, explica.

São centenas de equipamentos instalados todos os anos. Em 2013, foram 510 ventoinhas e 97 plataformas de nidificação, só nas linhas da REN. Na rede da EDP, também é adoptado o mesmo tipo de medida. Mas como os postes são menores, muitas vezes não há alternativa senão remover os ninhos. Na última década, a empresa identificou mais de 2500 ninhos em situação de risco – ou para a linha eléctrica, ou para as próprias cegonhas.

Nas redes da REN, o número de incidentes provocados por cegonhas corresponde a cerca de 3% do total de ninhos. Na prática, foram cerca de 50 em média, entre 2009-2012. Na EDP, houve 319 incidentes com aves em geral, e não só cegonhas, em média nos últimos três anos. A rede da EDP é, no entanto, cerca de 21 vezes mais extensa que a da REN.

A possibilidade se provocar um apagão de grandes dimensões, como o que aconteceu a 9 de Maio de 2000, é remota. Na noite daquele dia, um curto-circuito provocado por uma cegonha teve repercussões em cadeia porque os equipamentos de uma subestação não reagiram como deviam. Além disso, a rede de transporte de electricidade no país não permitia, naquela altura, uma solução alternativa para contornar o ponto que falhara. Resultado: boa parte do sul país, incluindo Lisboa, ficou sem luz durante duas horas.

“Em 2000, o que aconteceu foi uma falha técnica numa subestação”, diz Domingos Mateus. Hoje, segundo o técnico da REN, a rede é muito maior, constituindo uma malha onde a electricidade, se encontrar um obstáculo pela frente, pode seguir por outro caminho. Uma cegonha, acrescenta Mateus, pode chegar a causar um corte num ponto da linha, “mas a luz não pára”.

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