Um documento de excepcional significado

Verifica-se agora que tudo o que desde há muito tempo tenho vindo a preconizar tem sentido e tem razão de ser.

Só uma conjuntura absolutamente excepcional pode proporcionar a ocorrência de um fenómeno com estas características. Até há muito pouco tempo seria impensável a ideia de juntar Francisco Louçã com Manuela Ferreira Leite ou Manuel Carvalho da Silva com António Saraiva na redacção de um manifesto comum dotado de inequívoca importância e incidente sobre a realidade económica e social do país. A explicação para tal coisa é, apesar de tudo, simples: assenta na comum constatação de que o caminho que tem vindo a ser prosseguido nos últimos anos não pode conduzir a outro horizonte que não seja o da catástrofe económica e da tragédia social. Estas personalidades têm certamente visões diferentes acerca das causas da crise, movem-se em função de objectivos programáticos diversos e cultivam múltiplas visões acerca do modelo mais adequado de desenvolvimento económico e social. Percebem, contudo, que uma linha de orientação que não atenda à necessidade de promoção do crescimento económico é totalmente inadmissível, já que condenaria o país a um empobrecimento progressivo com uma degradação assinalável dos seus níveis de bem-estar. Tal situação, a verificar-se, atentando contra o pacto social fundador do regime democrático, acabaria por abrir as portas à supremacia de soluções políticas pouco consentâneas com a natureza mais profunda deste tipo de regime.

Importa, desde logo, salientar que nada neste documento releva de irrealismo ou aponta para soluções incompatíveis com os nossos principais compromissos internos e internacionais. Nota-se ao longo do texto uma preocupação de salvaguardar a necessidade de situar as soluções preconizadas no âmbito do quadro constitucional e no respeito pelas obrigações assumidas no plano europeu. Não se aponta para a saída do euro, para a declaração unilateral de incumprimento dos encargos da dívida ou para a desvalorização das preocupações relativas às questões associadas ao equilíbrio das finanças públicas. Tudo o que neste documento é preconizado, sendo naturalmente discutível e susceptível de crítica, não contende com o nosso estatuto de Estado responsável e plenamente integrado no espaço europeu. É mesmo de realçar a circunstância de se apelar reiteradamente à prossecução de um novo entendimento com os nossos parceiros comunitários, condição julgada imprescindível para o sucesso das iniciativas propostas.

Um governo responsável, consciente das dificuldades presentes e futuras do país, empenhado em encontrar os instrumentos indispensáveis para a superação dos atrasos que nos condenam a um estatuto subalterno e periférico, olharia para um documento desta natureza com respeito e justificada satisfação. Procuraria mesmo utilizá-lo como factor útil na promoção de um amplo entendimento nacional e como meio de invulgar importância na afirmação de uma posição exigente no quadro europeu. Infelizmente o actual executivo, pela voz do próprio primeiro-ministro, não perdeu tempo a contestar e a amesquinhar esta iniciativa. Fê-lo por um motivo óbvio: ela contende radicalmente com o extremismo ideológico subjacente à actuação da maioria parlamentar vigente.

Este manifesto demonstra a possibilidade de afirmação de um novo consenso político vasto, envolvendo grande parte da esquerda e uma parte significativa do centro-direita, imbuído de preocupações sérias quanto à promoção de políticas que articulem rigor orçamental com objectivos de promoção do desenvolvimento económico e de defesa do Estado-providência. Digamos que poderemos estar perante o surgimento de um importante arco político assente na vontade de preservação de um modelo político, económico e social que, a ser posto em causa, originaria um verdadeiro retrocesso civilizacional. Não é questão menor, bem pelo contrário: pode mesmo constituir-se numa das questões maiores da nossa vida política nos próximos anos. Tal como em momentos passados foi necessário construir amplas coligações contra o perigo do desvario extremista com uma determinada conotação política, é provável que, no futuro próximo, se venha a reclamar a concretização de um entendimento histórico ente todos quantos são sensíveis às questões agora colocadas neste documento.

Os partidos políticos têm a obrigação de olhar para uma iniciativa desta natureza com profunda consideração. Em nenhuma circunstância devem ceder ao impulso básico da autodefesa, deixando-se dominar pelo receio e apenas procurando salvaguardar a sua indiscutível especificidade. Precisamos de partidos fortes, sem fantasmas de qualquer tipo, capazes de valorizar acontecimentos deste teor sem verem neles qualquer desafio ao papel que desempenham com total legitimidade na vida pública.

Este tempo, tão excepcional e tão angustiante, obriga-nos a uma especial abertura de espírito de modo a que possamos garantir a convergência dos melhores contributos para a resolução dos problemas que se colocam ao país e à Europa.

Aliás, este texto tem ainda a vantagem de recolocar o debate político interno nos termos mais adequados: não importa tanto saber como vamos sair deste período da troika, interessa sobretudo perceber como vamos iniciar e prosseguir o período pós-troika. A questão fundamental não é a de saber se teremos uma saída mais ou menos limpa, ou mais ou menos condicionada. A questão é outra: é a de sabermos como poderemos conciliar preocupações sérias em matéria de consolidação das finanças públicas com objectivos imperiosos de crescimento económico e manutenção de um Estado-providência de elevada qualidade. Já se constatou que nenhum entendimento é possível em torno de uma política de austeridade patológica que apenas conduz ao empobrecimento, à perpetuação de atrasos e à acentuação de desigualdades. Precisamos urgentemente de conceber outro tipo de entendimentos em torno de políticas de natureza diferente.

2. Durante muitos meses fui atacado pelo facto de preconizar uma aproximação entre a esquerda e um centro-direita dotado de profundas preocupações sociais. Alguns, levianamente, detectaram nessa posição uma inadmissível manifestação de adesão a um compromisso desonroso com sectores ideológicos não enquadrados no espaço da esquerda. Verifica-se agora que tudo o que desde há muito tempo tenho vindo a preconizar tem sentido e tem razão de ser. Isto não anula divergências, nem promove unanimidades artificiais. Limita-se apenas a proporcionar compromissos politicamente úteis e democraticamente necessários.

Deputado do PS

 

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