Ricciardi rejeita luta de poder e diz que esteve sozinho a denunciar ilegalidades
Nas suas cerca de seis horas e meia de audição, o presidente do BESI acusou Salgado de infâmia, apostou na defesa do Banco de Portugal e recebeu elogios da bancada do PSD.
Ricciardi apresentou-se como o banqueiro da família Espírito Santo que denunciou as “situações duvidosas” sem o apoio de nenhum membro do GES. Era essa a linha do discurso que trazia preparada. Apostou na defesa do Banco de Portugal (BdP), que não se coibiu de elogiar, o que o levou a receber elogios por parte da bancada do PSD. Visão esta que Ricciardi enjeita. “Não estou aqui para fazer avaliações ao BdP.”
Já depois de quatro horas de audição, Ricciardi insistia que esteve sozinho a lutar e exaltou-se com a intervenção do deputado socialista Pedro Nuno Santos, interpelando a sala: “Algum dos senhores deputados se manifestou?” Salvo a eurodeputada Ana Gomes (PS) — “honra lhe seja feita” — e “talvez” a deputada Mariana Mortágua (BE), Ricciardi diz que não ouviu mais ninguém da esfera política (deputados ou eurodeputados) a questionar o que se passava.
“Ó senhora deputada, eu fui a única pessoa que [manifestei preocupações]”, insistiu mais uma vez Ricciardi, voltando-se para a deputada do Bloco de Esquerda, a quem lembrou que só entrou na ESI no final de 2011 e que a sua contestação foi “crescendo”, primeiro internamente e só depois publicamente.
Logo a abrir, rejeitou a “responsabilidade colectiva” na queda do império da família e deixou a primeira indirecta ao primo. “A cada um caberá a responsabilidade do que fez.” Continuou ao ataque, respondendo à declaração de Salgado em que este dizia que o primo teria negociado com o BdP alguma contrapartida por denunciar factos relacionados com o GES. “Considero essa afirmação uma infâmia.” E disse esperar que as averiguações das autoridades façam luz sobre quem prevaricou e que esses sejam levados a “assumir as responsabilidades” sobre o que for apurado.
Ricciardi — que esteve acompanhado pelo seu advogado, Pedro Reis — concedeu, à distância de um ano, que o BES devia ter pedido a recapitalização pública no final do ano passado, o que — segundo disse — evitaria os aumentos de capital que se revelariam necessários. "Hoje em dia acho que a entrada do Estado no banco exigiria uma transparência na gestão [que não era compatível com o que se passava]", disse Ricciardi, afirmando que não foi “consultado". Nesse cenário, a posição do GES reduzia-se. “Mas ficávamos honrados." "Não teríamos de enfrentar esta vergonha." E o BES estaria a funcionar.
À pergunta da deputada do CDS-PP Cecília Meireles sobre quem, no BES, decidiu não pedir a ajuda da linha de recapitalização ou se o tema foi sequer discutido, Ricciardi esclareceu: "Já aqui disse que foi sempre uma decisão tomada no BES, pois no meu entendimento essa alternativa nem se punha, mas se tivesse sido adoptada teria sido [preferível]." "Mas não havia essa vontade. A intervenção do Estado impunha uma governance diferente e não havia vontade de mudar", respondeu Ricciardi. Observou não ter “qualquer dúvida de que o Banco de Portugal queria mudar a governance do BES desde o início de 2014”.
A deputada do CDS-PP questionou Ricciardi sobre se, em seu entender, o BdP se apercebeu de que o plano de reestruturação do GES/BES não estava a ser cumprido. Para o banqueiro, o BdP "acreditou que seria possível, mas com o passar do tempo foi-se vendo que não estava a ser cumprido”.
“O dinheiro dos ditos 'venezuelanos' não aparecia. E, a certa altura, o BdP percebeu que ia ser muito difícil cumprir o plano. Na cabeça do BdP havia esta ideia: vamos lá ver se eles se safam. E, se não se safam, vamos tentar que se salvem. Penso que foi esta estratégia e, do meu ponto de vista, correcta."
O banqueiro recuou um e dois anos. “Em 2013 estávamos [o GES] numa situação financeira difícil, mas não insolvente.” Disse que o que se veio a detectar a 31 de Dezembro de 2012, com a operação do Etricc — exercício transversal de revisão da imparidade da carteira de crédito —, é que o passivo da Espírito Santo Internacional (ESI) não era de 3000 milhões, mas de 4200 milhões, o que significa um passivo oculto de 1200 milhões. “O auditor explicou que 300 e tal milhões eram de juros e 800 e tal milhões de euros foram aplicados no Eurofin.” “Neste processo”, diria mais tarde Ricciardi, “o Eurofin, é, para mim, um dos factos centrais [do caso]."
O deputado do PCP Miguel Tiago perguntou: "A ESI distribuía dividendos? E, quando distribuía dividendos com contas marteladas, não se questionou?" Ricciardi esclareceu: "A ESI já não distribui dividendos há alguns anos, pelo menos há dois ou três anos. Mas agora, sabendo que as contas não estavam certas, é evidente que não devia ter distribuído dividendos."
Ricciardi clarificou ainda que estava preocupado com o endividamento das holdings, mas que se apresentavam equilibradas. E que entrou para a ESI no final de 2011. "E fui num crescendo, não entrei a matar. E fiquei isolado.”
A amizade com Passos
Ricciardi assumiu ser amigo pessoal de Pedro Passos Coelho, com quem admitiu ter-se encontrado. À pergunta da deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua sobre se tinha estado com o primeiro-ministro no dia 4 de Novembro de 2013 Ricciardi disse que não se lembrava, mas que, se a deputada o dizia, é porque o encontro poderia ter acontecido nesse dia. A 4 de Novembro, Ricciardi juntou-se com os membros do conselho superior do GES, com excepção de Salgado e de José Manuel Espírito Santo, e fizeram uma carta a pedir esclarecimentos e mudanças na governação do BES. Esta carta, assinada por todos, desapareceu e só voltou a ser reencontrada em Agosto deste ano.
E o tema das gravações das reuniões no conselho superior do GES, sobre o qual Ricardo Salgado tinha sido questionado, voltou à mesa. O deputado socialista Filipe Neto Brandão perguntou se Ricciardi sabia que as reuniões eram gravadas, pois Salgado alegou desconhecer o facto. Ouviu como resposta: “Não percebo como [é que Salgado] não sabia. Havia um gravador que José Castella colocava em cima da mesa [à vista de todos, sendo as conversas transcritas para o papel]." Mais tarde, Ricciardi crê que as reuniões continuaram a ser gravadas mas sem transcrições. O episódio motivou uma gargalhada geral na sala da audição parlamentar.
Já na madrugada, José Magalhães, deputado do PS, voltou a lembrar a amizade entre Ricciardi e Passos Coelho. Magalhães entende que, quando o banqueiro teve de escolher entre o familiar e um amigo, Ricciardi fez uma escolha ética. “Acabou por escolher o amigo”, ironizou o deputado socialista, referindo-se a Passos Coelho. E porque Ricciardi é (como confirmou ser) amigo do primeiro-ministro, o deputado socialista questionou-o sobre a razão que teria levado Passos a fazer algo “invulgar” — devolver uma carta, de 31 de Março deste ano, que lhe tinha sido dada a ler por Ricardo Salgado, um episódio que o ex-presidente relatara de manhã.
Na resposta a José Magalhães, Ricciardi começou por enfatizar que a amizade com Passos “não tem nada a ver com os acontecimento recentes”. Disse que não consegue “visualizar” este problema como uma luta entre Salgado e Passos. “As razões por que essa carta foi devolvida não faço ideia”, respondeu, garantindo que só teve conhecimento desse episódio nesta terça-feira e que Passos nunca lhe disse que tinha recebido essa carta.
Neto Brandão questionou Ricciardi sobre quem dava instruções à ESI, dado que Salgado declarou nada saber do que se passava, pois a gestão da holding estava concentrada em Francisco Machado da Cruz, o contabilista do grupo. "As reuniões que existiam ao nível da administração da ESI, envolvendo o dr. Machado da Cruz e o dr. José Castella [os dois operacionais do GES], eram exclusivas com o dr. Ricardo Salgado.” “O BdP sabe da ocultação das contas da ESI desde Novembro de 2013", referiu Ricciardi, que foi administrador da holding até ao início de 2014, quando se demitiu.
O banqueiro tentou desmistificar a ideia de que havia uma “descentralização” das decisões do banco. "Toda a gente sabe que o BES tinha uma liderança absolutamente centralizadora, indiscutível, em que não havia qualquer decisão que não passasse pela mesma pessoa.”
"Não queria ser o 'dono disto tudo'"
Ricciardi rejeitou também ter havido uma luta de poder na família e disse que não queria ser o “dono disto tudo”. Não escondeu, porém, que podia aspirar a suceder a Salgado. Mas garante que as atitudes que tomou não foram com essa motivação. “Se havia opacidade, havia sim senhora, e havia desvio.”
"Compete a esta comissão de inquérito fazer o julgamento político do caso, mas as conclusões do senhor deputado estão correctas", observou o banqueiro, respondendo ao deputado do PS Filipe Neto Brandão, que lhe perguntou se a leitura de uma carta enviada pelo presidente do BESI ao Banco de Portugal no início de 2014 permite tirar a conclusão de que o supervisor estava a par de que a ESI ocultava prejuízos desde 2008. "É verdade que não a divulguei publicamente para não prejudicar o aumento de capital do BES."
“Nunca vi um prospecto como o do aumento de capital [do BES de Junho, com contas que] não eram verdadeiras.” Aí se dizia, por exemplo, que havia riscos reputacionais, diria depois. Frisando que foram feitas cerca de 30 alterações ao prospecto da emissão, Ricciardi referiu qual foi na altura a sua interpretação dos factos: “Isto vai ser impossível os bancos tomarem firme…”
À pergunta de Filipe Neto Brandão sobre a quem se deve imputar a autoria dos comportamentos que culminaram na queda do BES, Ricciardi responde que “isso cabe à auditoria forense, à entidade sancionatória do Banco de Portugal” e ao Ministério Público apurar. “Há uma responsabilidade individual de cada administrador”, insistiu. “Não me cabe a mim dizer as pessoas que o fizeram”, continuou o banqueiro, voltando a afirmar que “há uma responsabilidade individual”. Embora sem revelar nomes, o presidente do BESI contou que “toda esta situação se passava dentro do departamento financeiro de mercado e de estudo”, departamento que, segundo Ricciardi, funcionava com uma autonomia “praticamente estanque”.
"Não sei se era só um homem, o contabilista, ou se eram vários que fizeram esta coisa [as irregularidades]. Eu é que não fui", afirmou. Mais tarde acrescentou: "Para mim não foi o dr. Machado da Cruz [o contabilista acusado por Salgado de ter ocultado 1200 milhões de euros de passivo da ESI] que cometeu a grave ilegalidade. Encontrei-me com o dr. Machado da Cruz e ele disse-me o que é que se passou", defendeu Ricciardi.
E interrogou-se: "Porque é que um contabilista queria esconder de toda a gente um desvio desta dimensão? Ele é um executante. Não tinha autonomia. E, não tenho a certeza, porque se diz que se quis dar uma compensação porque ele ficou a trabalhar. Acho muito importante que ele venha a esta comissão [depor]."
"O que é que o dr. Machado da Cruz me disse? Disse-me que não foi por iniciativa dele que as contas foram adulteradas. E não é óbvio que tenha sido apenas uma pessoa”, disse Ricciardi, que afirmou ter-se encontrado há pouco tempo com o antigo contabilista em Lisboa, isto depois de Salgado ter dito na audição desta terça-feira que não sabia do seu paradeiro. "Falei com ele recentemente em Lisboa, e ele não está em parte incerta."
Ricciardi foi também confrontado com a suspensão dos registos do BESI. A questão colocou-se porque, quando o mandato do conselho de administração do banco de investimento terminou, em meados de 2013, o BdP não se pronunciou (manteve os pedidos dos gestores em avaliação) e já em 2014 decidiu suspender o processo de concessão, começando a pedir esclarecimentos aos gestores. Segundo José Maria Ricciardi, “a suspensão do registo é tecnicamente” uma declaração de que o Banco de Portugal está a reapreciar a idoneidade.
Cecília Meireles, deputada do CDS-PP, insistiu no tema. E, depois de uma pausa para ouvir indicações do seu advogado, Pedro Reis, Ricciardi frisou que, durante este processo, ficou com “a percepção” de que o Banco de Portugal entendia então que Ricardo Salgado (também membro do conselho de administração do BESI) devia sair.
Miguel Tiago questionou depois Ricciardi para saber se este "tem conhecimento da avaliação de que o BESI está a ser alvo por parte do BdP”. "A minha idoneidade não me foi concedida transitoriamente, foi-me dada com registo”, respondeu o banqueiro. “Mas se o senhor governador disse que a minha idoneidade estava em avaliação, que a está a reapreciar, então está a minha e a de todos os administradores do sistema financeiro. (…) É evidente que, estando uma inspecção forense em curso ao BES, [a idoneidade de todos os administradores está a ser reavaliada]", explicou.
A nomeação de Vítor Bento
Já sobre a transição das equipas de administração do BES, a deputada centrista perguntou a Ricciardi como surgiu a solução de nomear Vítor Bento para presidente do banco, cargo que assumiu depois de ser público que Ricardo Salgado queria que fosse Amílcar Morais Pires a ser o novo presidente executivo. “Não lhe consigo dizer se [o nome de Bento] foi uma iniciativa do dr. Ricardo Salgado, se foi uma iniciativa do Banco de Portugal para que o dr. Ricardo Salgado [tomasse essa iniciativa].”
Ao contrário do primo, a quem o advogado ligava e desligava o microfone a cada intervenção de Salgado, nesta sua audição era Ricciardi quem o fazia pela sua mão. Por impulso, várias vezes ligou o micro e interrompeu o deputado comunista Miguel Tiago antes de este terminar as questões.
Ricciardi quis esclarecer: “Nunca pretendi que ele [Salgado] fosse despedido.” O que queria, acrescentou, é que houvesse uma “mudança de governance”. Por isso diz ter escrito ao banco central a dizer que, caso não existisse uma mudança, saía do grupo. “Só não tornei pública esta posição por estar em causa o aumento de capital.”
O banqueiro sublinhou que apenas entrou para o conselho de administração da ESI no final de 2011. E no dia em que soube que “as contas não eram verdadeiras", Ricciardi disse que cumpriu os seus deveres de diligência e que deixou a sua posição escrita nas actas nas três holdings do grupo (ESI, ES Control e ESFG). “As únicas contas" que Ricciardi diz ter conhecido eram as oficiais (3000 milhões de passivo). Como não executivo, disse-se chocado, pedindo uma auditoria rigorosa e um apuramento de responsabilidades.
Quem queria comprar a Escom?
Outro dos temas abordados na audição de Ricciardi foi a Rioforte, holding não financeira do GES. O principal financiador da Rioforte é a PT, com 900 milhões de papel comercial, e talvez o Montepio Geral e o Banif, explicou o ainda presidente do BESI.
Também abordada foi a questão da Escom, empresa que participou na compra dos submarinos. Ao contrário de Ricardo Salgado, que se escudou no segredo de justiça, Ricciardi falou abertamente do tema e disse que foi informado da intenção de vender a Escom, um negócio que não foi, no entanto, concretizado.
"Os ditos promitentes compradores da Escom, que eu não conhecia, segundo as afirmações do dr. Ricardo Salgado, não concordavam com as condições." E começaram a ajustar o preço, inicialmente estimado em “700 a 800 milhões de dólares”, disse Ricciardi, revelando de seguida que houve o pagamento de um sinal de 85 milhões de euros, equivalente a 15% do valor total acordado, "mas as dúvidas mantiveram-se" — ou seja, fazendo as contas, o valor do negócio seria 566 milhões de dólares.
Questionado por Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, o presidente do BESI disse não saber se Álvaro Sobrinho, ex-presidente do Banco Espírito Santo Angola (BESA), esteve presente no negócio. Afirmou apenas que lhe foi dito que já não seria o comprador inicial “mas uns investidores russos” a adquirir a Escom.
"Não sei que negócios tem em Portugal o dr. Álvaro Sobrinho, porque não sei quanto ganhava o dr. Álvaro Sobrinho", diria ainda.
À questão de Mariana Mortágua sobre se tinha conhecimento em que empresa do GES estava parqueada a Escom, Ricciardi disse que "achava que estava na ES Resources". A deputada perguntou-lhe então se o presidente do BESI sabia das transacções entre a ES Enterprise, via Eurofin, e a Escom. Ricciardi disse que "só tinha ouvido falar" dessa empresa na comunicação social. O PÚBLICO revelou recentemente que o BES e o GES usavam a ES Enterprise como um saco azul para pagamentos não declarados.
Ainda na resposta a perguntas da deputada bloquista Ricciardi voltou a lançar farpas a Salgado, que durante o dia disse várias vezes que estava disponível para deixar a liderança do BES. "Nunca detectei nenhuma disponibilidade por parte do dr. Ricardo Salgado para alterar a governance ou demitir-se. Se a teve, não me apercebi dela", disse.
E concluiu com nova referência ao primo e ao facto de este receber comissões ou prendas de clientes, como a alegada comissão de 14 milhões de euros que recebeu do empresário José Guilherme. "Em dez anos o BESI deve ter recebido mais de mil milhões de euros de comissões, e eu nunca recebi nenhuma pessoalmente", salientou.