Portugal vai ser excepção numa Europa de aeroportos públicos

Quase 190 aeroportos ainda estão na esfera pública e há apenas um caso em que se privatizou toda a rede, como acontecerá em solo nacional com a venda da ANA, que hoje dá um novo passo.

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A análise feita pelo PÚBLICO mostra que hoje ainda há 188 aeroportos controlados por entidades públicas. Aliás, mais de metade dos países continuam a ter o Estado como único accionista de todas as suas infra-estruturas. No total, há apenas 68 casos em que os privados foram convidados a entrar no capital, com grande expressão em França e no Reino Unido. E, em 26 deles, manteve-se uma participação estatal.

A febre das privatizações rebentou no final dos anos 90, com uma premissa comum: os aeroportos civis e militares, que nasceram para servir os interesses e populações dos diferentes países, mudaram. "Começou-se a perceber que eram mais do que infra-estruturas que albergavam companhias de aviação, mas sim plataformas de negócio com um raio de acção que tinha impacto a vários níveis da economia", explica Maria Fátima Rodrigues, investigadora do sector.

A partir do momento em que este paradigma mudou, tornou-se necessário dar-lhes uma gestão profissional e capital que permitisse desenvolvê-los face à massificação do transporte aéreo. Foi o rastilho de uma tendência que se foi propagando de "entrega das infra-estruturas a outros operadores, que não o Estado", diz a professora da Universidade Lusófona e assessora do conselho de administração da ANA.

Um pouco por toda a Europa, mas com especial força em território francês e britânico, foram dados os primeiros passos. O Reino Unido foi mesmo pioneiro num modelo que continua sem cópia: vendeu a propriedade dos aeroportos e não uma concessão, como aconteceu nos restantes países. França também é um caso particular, porque 14 das suas 26 infra-estruturas foram transferidas para câmaras de comércio, onde estão representados cidadãos e empresas da região.

Uma questão de dinheiro

Estes dois Estados-membros mantêm, até hoje, a posição mais liberal da União Europeia a 27, com 31 aeroportos totalmente privatizados (74% do total). No entanto, os britânicos também seguiram um caminho diferente dos franceses nos parceiros que escolheram: grandes grupos privados, como a BAA ou o fundo de investimento GIP, que também está na corrida à venda da ANA (ver texto secundário).

Olhando para o mapa aeroportuário europeu, e apesar de uma maior abertura às privatizações, a verdade é que França e Reino Unido continuam muito isolados. No outro extremo estão Espanha e Grécia, também porque são países polvilhados por aeroportos. No primeiro caso, todas as 48 infra-estruturas que existem são controladas pelo Estado. Já os gregos venderam parcialmente o aeroporto de Atenas (onde continua a haver uma participação pública de 55%) e têm outros 43 em mãos públicas.

Mas, tal como Portugal, estes dois Estados-membros foram obrigados a colocar em cima da mesa a hipótese de se desfazerem destes activos, exactamente pelo mesmo motivo. Com a crise na Europa, e os consequentes resgates financeiros, tornou-se uma "emergência", como o actual Governo assumiu, vender aeroportos. Em alguns casos para eliminar um peso que se torna difícil de suster e noutros para encaixar receita e reduzir o défice.

"O caso nacional é muito particular, porque esta privatização não é uma decisão estratégica, mas sim uma necessidade de tesouraria", frisa Nuno Brilha, professor de Gestão Aeronáutica no Instituto Superior de Educação e Ciência (ISEC) e antigo quadro da ANA. No fundo, o negócio que está prestes a ser fechado pelo Governo "é uma questão de dinheiro" porque a verba gerada com a venda da concessão servirá para cumprir a meta de défice acordada com a troika para este ano (5%) e o restante irá directamente para os cofres públicos.

Uma vez que nem a Grécia, nem Espanha conseguiram ainda avançar com a abertura a privados dos seus aeroportos, Portugal acabará por se tornar no primeiro país a ver-se forçado a fazer um negócio deste tipo, por estas razões.

Estado fica afastado

Há outro aspecto em que o país está a ser original. Se o Governo Regional da Madeira aceitar incluir no pacote da venda os 20% que detém nos aeroportos do arquipélago, o comprador da ANA ficará com todos os aeroportos do país sob sua alçada. Esta privatização em rede só aconteceu ainda num outro Estado-membro: o Chipre. Todos os restantes mantiveram pelo menos uma infra-estrutura nas mãos do Estado e, em muitos casos, optaram por ficar com a que está instalada na sua principal cidade.

Para Nuno Brilha, esta opção era inevitável, tendo em conta a dimensão territorial do país. "Se o Governo optasse por ceder só o aeroporto de Lisboa, teria um problema com os restantes", porque a infra-estrutura da capital é a mais rentável e representa 50% do tráfego movimentado. Por outro lado, deixar de fora a Portela reduziria drasticamente o valor a pagar pelos investidores ao Estado.

Mais dúvidas há na questão da privatização total da ANA (95% serão alienados a um dos cinco candidatos e outros 5% aos trabalhadores). É que muitos dos países europeus que se decidiram por alienar aeroportos não abdicaram de dar ao Estado uma posição accionista, em muitos casos maioritária, como aconteceu em Itália ou na Alemanha.

Maria Fátima Rodrigues, da Lusófona, considera que "é uma opção a ter em conta", porque, saindo totalmente do capital, poderá "ser mais difícil reverter a situação", em casos de incumprimento contratual por exemplo. Já o docente do ISEC diz mesmo que semiprivatizar a gestora aeroportuária "teria sido a melhor opção", mas isto se houvesse "uma estratégia para o sector, política e económica".

Um modelo deste tipo evitaria um afastamento completo, ao mesmo tempo que permitiria gerar receitas para minimizar os problemas de tesouraria. Porém, manter o activo por manter, só para depois exercer posições de controlo, "não pode ser a única justificação para partilhar o capital com privados", remata Nuno Brilha.

O especialista do ISEC aponta outras lacunas a este negócio, que viverá hoje mais uma etapa importante com a entrega das propostas definitivas de compra à Parpública, gestora de participações do Estado. "Uma operação feita tão rapidamente só pode deixar pontas soltas", diz, sublinhando o facto de não se tratar de uma decisão estratégica, mas antes de "uma solução para resolver um problema de curto prazo".

Dividir para reinar

Muitos países europeus optaram por descentralizar os aeroportos do Estado central sem se desfazer deles, passando o controlo para entidades públicas de cariz mais regional. Há casos destes um pouco por toda a Europa: Dinamarca, França, Alemanha e Itália, por exemplo.

Tendo em conta que a norte se têm levantado vozes contra a venda de toda a rede da ANA e que, no contrato a transferir para o investidor, estão previstas subconcessões, Portugal poderá vir a juntar-se a esta lista. "Seria o derradeiro reconhecimento de que uma infra-estrutura aeroportuária deve ser um instrumento ao serviço de uma região", considera a docente da Lusófona e assessora da ANA.

A forma como os diferentes países têm conduzido as privatizações ou pugnado por manter este sector nas mãos do Estado não pode ser dissociado de diversos factores, como o que leva Portugal agora a vender a sua gestora aeroportuária. No caso da Finlândia, as dificuldades em ligar por via rodoviária ou ferroviária as cidades, foram decisivas para que o país investisse e salvaguardasse os seus 25 aeroportos públicos. Na Grécia, situação semelhante se passou por causa das ilhas.

Já nos países mais a leste, o Estado continua a ser dono e senhor de grande parte das infra-estruturas, porque a febre das privatizações só agora começa a instalar-se. E, em Espanha, o Governo terá primeiro de fazer uma limpeza à rede para conseguir encontrar investidores. 
 
 

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