Por um Portugal à irlandesa
Sugerir que a Irlanda não se submeteu à troika e à austeridade, e que por isso foi bem sucedida, é coisa que daria para rir, se não fosse mais um triste caso de cegueira ideológica e de manipulação intelectual.
No entanto, subitamente, a Irlanda parece o tipo lá da rua que ganhou o Euromilhões: um dia acorda e descobre que está cheio de amigos, incluindo vários que nunca antes tinha visto na vida.
Eis o porta-voz do PS para assuntos económicos sobre a Irlanda: “Procurou, sempre que possível, obter um ajustamento que considerasse também o crescimento económico” e “ainda este ano, na preparação do Orçamento para 2014, a Irlanda recusou o nível de austeridade que a troika queria impor”. Eis Mário Soares sobre a Irlanda: “Soube ter um Governo competente para sair [da crise]. Porquê? Porque não foi subserviente e a política foi sempre – ou quase – dominante sobre os mercados usurários.” Eis Carvalho da Silva sobre a Irlanda: “Em Portugal estamos a ser objectivamente conduzidos por políticas de contínuo empobrecimento. A Irlanda tem uma actuação de governação de defesa do interesse nacional e de afirmação dos seus valores. Em Portugal não. Temos governantes a apoiar a troika.”
Eu não sei que jornais estes senhores andam a ler, mas não devem ser os mesmos que eu leio. Nos meus jornais, li que o Orçamento irlandês para 2014 – o tal pós-troika – impõe cortes de 2,5 mil milhões de euros, e entre as suas propostas está a perda do acesso gratuito à saúde de 10% dos pensionistas com mais de 70 anos. Será que Seguro, Soares e Carvalho da Silva concordam com a medida?
A Irlanda reduziu o seu défice de 30,6% em 2010 para 7,3% (estimativa) em 2013 e quer atingir 5,1% em 2014. Estamos a falar de um esforço muitíssimo mais violento do que o português – uma queda de 25,5 pontos percentuais. Segundo o Financial Times, os cortes na despesa irlandesa desde 2008 já ascendem a 28 mil milhões de euros. O défice português em 2010 foi de 10,2%, e aquilo que se pretende é que ele venha a ser de 4% em 2014 – ou seja, uma diminuição de 6,2 pontos percentuais, quatro vezes menos do que a Irlanda. E para cortar os eternos 4,8 mil milhões de euros com a famosa “reforma do Estado” tem sido o cabo dos trabalhos. Comparem estes valores, se faz favor, e digam-me sem se rirem que a Irlanda saiu do programa da troika com a casa arrumada e confiança para dispensar um programa cautelar porque “a política foi sempre dominante sobre os mercados usurários”.
Defender tal coisa é aplicar o velho ditado “a galinha da vizinha é sempre melhor do que a minha” à macroeconomia. A Irlanda só é espectacular porque fica a espectaculares 2500 quilómetros de distância. Não, a Irlanda não fugiu à austeridade. Pelo contrário, aplicou-a com mais afinco do que Portugal, e com protestos nas ruas. Claro que a sua economia nada tem a ver com a nossa. Claro que o seu sector exportador é duas vezes e meia o tamanho do português em percentagem do PIB. Claro que não foi tão penalizada pelo desemprego. Claro que é preciso analisar cada país, perceber as suas especificidades, em vez de andarmos a patrocinar as habituais queixas por atacado. Mas sugerir que a Irlanda não se submeteu à troika e à austeridade, e que por isso foi bem sucedida, é coisa que daria para rir, se não fosse mais um triste caso de cegueira ideológica e de manipulação intelectual.