Os bastidores da venda dos correios em bolsa
Até ao início de Outubro, ainda se trabalhou no cenário da venda directa. Quando a dispersão em bolsa se confirmou, seguiram-se semanas intensas de encontros com potenciais investidores, de Boston a Copenhaga.
Foram assim os últimos dias da operação de venda, que culminaram quinta-feira com a estreia da empresa em bolsa. Mas tudo o que levou até aqui começou há mais de um ano. Mais precisamente, na contratação do actual presidente, Francisco Lacerda, que deverá manter-se aos comandos da empresa, caso a intenção (que o Governo já expressou e exercerá através da participação de 30% que se mantém nas mãos do Estado) se confirme em assembleia geral de accionistas, a realizar até ao final de Fevereiro.
A escolha de Lacerda para liderar os CTT foi cirúrgica. O Governo procurava um homem com experiência no privado e profundo conhecimento do sector financeiro para lançar a privatização dos correios. Até ser nomeado para o cargo, em Agosto de 2012, era presidente da Cimpor, de onde saiu após da oferta pública de aquisição (OPA) da brasileira Camargo Corrêa. Mas foi na banca que fez a carreira, durante 25 anos. Mais especificamente, no Millennium bcp. Foi vice-presidente da operação na Polónia, responsável pela actividade da instituição financeira na Europa e, mais tarde, membro do conselho de administração, ao lado de Jardim Gonçalves, Paulo Teixeira Pinto e Filipe Pinhal.
A partir do momento em que a nova equipa de gestão chegou aos correios, a privatização (ou, pelo menos, a sua preparação) arrancou, tendo sido montada uma equipa especial dentro dos CTT para acompanhar o processo do início ao fim. O trabalho começou por uma revisão estratégica da empresa. Era preciso conhecê-la a fundo e saber aquilo que poderia tornar-se o seu futuro. Mais do que isso, era indispensável encontrar o fio condutor da história vertida nas apresentações em Prezi que chegaram às salas de reuniões em hotéis e às sedes de investidores entre 19 de Novembro e 2 de Dezembro.
Este último dia da operação de venda dos CTT foi passado em Madrid. Antes disso, Boston, Nova Iorque, Londres e Copenhaga. Esta última apenas uma das cidades por onde o roadshow passou nos países escandinavos. Uma geografia estrategicamente escolhida por estar muito associada a investidores com um perfil que interessava atrair, porque fazem apostas mais a longo prazo, sem tanto risco de volatilidade na estrutura accionista da empresa. Ásia e Médio Oriente não foram locais de passagem.
Os resultados do périplo foram conhecidos quarta-feira, na cerimónia de apresentação de resultados da venda de 70% dos correios em bolsa. Influenciados pela recente e bem-sucedida privatização do britânico Royal Mail e também fruto da importância que hoje tem a praça de Londres, os investidores do Reino Unido foram responsáveis pelo maior número de ordens de compra e ficaram com mais de 15% dos CTT. Em segundo lugar surgiram os norte-americanos, seguindo-se os alemães (com 5,6%). No total, 43,3% dos correios passaram para as mãos de estrangeiros. E, embora a maioria do capital (56,7%) tenha ficado sob controlo de milhares de accionistas portugueses, a grande fatia corresponde à participação de 30% que o Estado mantém e que o Governo pretende alienar no médio prazo. Com a estreia em bolsa, este retrato pode ser agora diferente, já que quinta-feira mudaram de dono quase 40 milhões de acções.
Até de madrugada
Os encontros entre a administração e alguns dos novos accionistas dos correios aconteceram já na recta final do processo e enquanto os vendedores dos bancos preenchiam o livro da oferta dos CTT com ordens de compra. Mas, para chegar a esta fase, Francisco Lacerda e o seu administrador financeiro tiveram de se sentar à mesa com muitos outros investidores. Os primeiros contactos começaram na segunda metade de Setembro, ainda corriam em paralelo os dois cenários para privatizar a empresa: a venda directa ou a dispersão em bolsa.
Todo o trabalho, aliás, foi sempre desenvolvido nas duas direcções até aos primeiros dias de Outubro, quando o Governo finalmente decidiu assumir os riscos de optar pelo mercado de capitais, algo que já não acontecia desde as operações de venda em bolsa de 23% Galp, em 2006, e de 24% da REN, em 2007. Um dos principais mandatos dos assessores financeiros contratados para apoiar este negócio era, precisamente, testar os dois modelos de privatização. E foi isso que aconteceu em Setembro.
A convite dos bancos ou de forma voluntária, mais de 50 investidores reuniram-se com a equipa de gestão dos CTT em Lisboa e em Londres. De um lado estavam investidores que poderiam servir de amostra para um cenário de dispersão em bolsa. E, do outro, investidores de referência que tinham manifestado intenção de comprar a totalidade ou a quase totalidade dos correios. Este teste ao mercado foi decisivo para que, a 10 de Outubro, o Governo formalizasse em Conselho de Ministros a decisão que culminou quinta-feira com a estreia da empresa em bolsa.
Os encontros que aconteceram em Setembro foram precedidos de muito trabalho de casa, depositado nas mãos da administração, mas também dos assessores jurídicos e financeiros. Feita a revisão estratégica e ao mesmo tempo que a história ia sendo montada pela equipa de gestão, entraram em cena os escritórios de advogados escolhidos pela empresa e pela Parpública, a holding que gere as participações do Estado em empresas (e que detinha, até agora, 100% dos correios).
Os dois concursos, que funcionaram por sistema de convite às sociedades com mais experiência neste tipo de operações, decorreram em paralelo, a partir de Abril. CTT e Parpública receberam 20 propostas de candidatos a assessoria jurídica, embora alguns deles tenham concorrido aos dois em simultâneo. A 7 de Maio, a empresa liderada por Francisco Lacerda escolhia a PLMJ e a Abreu & Associados, num procedimento que, fruto dos actuais constrangimentos económicos e financeiros, teve no preço um critério importante.
As duas sociedades começaram por fazer uma extensa auditoria aos correios, cabendo à Abreu a vertente laboral e à PLMJ todas as restantes faces da empresa. Nesta última firma, o trabalho envolveu uma equipa permanente de 25 pessoas, que, a partir de finais de Julho e durante dois meses, fez uma radiografia exaustiva dos CTT, com especial atenção a dossiers sensíveis, como os contratos de arrendamento. Alguns dos acordos que a empresa tem para os 626 imóveis que arrenda prevêem que os senhorios exijam garantias bancárias, caso o Estado deixe de controlar 50% do capital, o que poderá obrigar ao pagamento de 18 milhões. Outros, e fruto do novo regime das rendas, podem ser denunciados ou renegociados com a alteração da estrutura accionista.
Esta auditoria, que teria sempre de ser feita para um modelo de venda directa ou de dispersão em bolsa, permitiu afinar a forma como a empresa foi vendida aos investidores, mas serviu sobretudo de base ao prospecto da operação pública de venda inicial (OPI), emitido a 19 de Novembro pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), na data de arranque da oferta de acções. Nesse dia, e depois de terem sido avisados no início de Outubro de que a escolha iria recair sobre o mercado de capitais, a equipa de quatro pessoas da PLMJ que esteve dedicada à elaboração do documento (e que foi coordenada por Sofia Gomes da Costa e Magda Viçoso) trabalhou até às 4h para que o prospecto de quase 600 páginas fosse divulgado a tempo, o que aconteceu às 6h35.
A preparação do prospecto divulgado pela CMVM foi feita em articulação com a Vieira de Almeida e Associados, o assessor jurídico escolhido pela Parpública. A esta última sociedade coube a informação sobre a oferta pública de venda e à PLMJ todo o conteúdo relacionado com os CTT. Para os mercados internacionais, a elaboração da documentação contou com a firma internacional White & Case. Além destas três sociedades, e da Abreu, houve uma quinta que esteve ligada à privatização dos correios: a britânica Linklaters, que, através do escritório de Lisboa, deu apoio jurídico aos dois bancos escolhidos para concretizar a operação, o Caixa Bi e o JP Morgan.
Um encaixe arriscado
A escolha destes dois assessores financeiros só aconteceu no início de Junho, também através de um concurso por convite que abrangeu 12 instituições financeiras. O banco de investimento da Caixa Geral de Depósitos foi uma escolha mais fácil. Já o caso do JP Morgan foi gerido com pinças. O banco norte-americano destacou-se, logo desde início, de entre os seus pares, mas a contratação poderia criar um problema político, por ter estado envolvido na comercialização de swaps que uma auditoria pedida pelo Ministério das Finanças concluiu serem especulativos.
A tutela de Maria Luís Albuquerque chegou, aliás, a ameaçar levar a instituição financeira a tribunal, caso não aceitasse cancelar antecipadamente e com desconto os derivados que tinha vendido. Os ofícios da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP) que dão conta de um acordo para liquidação de 12 swaps vendidos pelo banco datam de 7 de Junho. Precisamente nesse dia, a Parpública anunciou que o JP Morgan seria um dos assessores financeiros da venda dos CTT, a par do Caixa Bi.
Todas as quartas-feiras, e logo a partir de Junho, assessores jurídicos e financeiros juntavam-se para fazer pontos de situação e esclarecer dúvidas. As reuniões juntavam pessoas que estavam a trabalhar a partir de Lisboa, Madrid, Londres e Nova Iorque. Aos bancos escolhidos pela Parpública em Junho viriam a juntar-se, no final de Outubro, outras duas instituições financeiras, o BESI e o BBVA, para apoiar a colocação das acções no mercado de capitais. Às quintas-feiras era o dia da reunião do comité de gestão (steering committee, em inglês), que já contava com a presença de membros do Governo, nomeadamente os dois mais envolvidos nesta operação: o secretário de Estado das Finanças, Manuel Rodrigues, e o secretário de Estado das Infra-estruturas, Transportes e Comunicações, Sérgio Monteiro.
Foi a eles que coube apresentar ao executivo os resultados do teste feito em Setembro e assumir, numa primeira fase, a decisão de levar os CTT para a bolsa. O modelo começou a tornar-se cada vez mais certo à medida que se iam seguindo as reuniões preliminares entre a administração e potenciais investidores (seguida de uma auscultação dos bancos ao apetite do mercado). A hipótese de venda directa esbarrou em várias frentes: não surgiu nenhum investidor categórico, muitos dos que mostraram vontade de avançar queriam controlar a totalidade do capital, as propostas financeiras não eram suficientemente atractivas e não se julgava indispensável que os CTT ganhassem um parceiro estratégico. A mais elevada manifestação de interesse foi protagonizada pela Urbanos, que ofereceu entre 500 e 600 milhões de euros. Alfredo Casimiro, fundador e presidente do grupo português de logística, foi um dos mais assumidos críticos da opção do Governo, considerando que se tratava de “um erro crasso”.
Na semana do Conselho de Ministros em que ficou definido o modelo de privatização ainda decorreram reuniões com investidores. E, a 10 de Outubro, o executivo reuniu-se para tomar a decisão final: os CTT acabariam com o jejum de cinco anos da bolsa, depois da entrada da EDP Renováveis, em 2008. O presidente da Euronext, Luís Laginha de Sousa, não escondeu a agrado com a escolha na apresentação de resultados de operação, na quarta-feira: “É um novo marco na vida dos correios, mas também do nosso mercado de capitais e, consequentemente, da nossa economia.”
Apesar da indisfarçável satisfação do Governo com a elevada procura dos investidores, a decisão não foi fácil. Tal como o ministro da Economia admitiu, também na cerimónia de quarta-feira, foi um “caminho arriscado”, especialmente porque se tratou de “uma operação única para um país sob assistência financeira” e porque os mercados são imprevisíveis. Este factor foi muito ponderado dentro do executivo e, também por isso, foi preciso esperar que viessem dados mais concretos sobre o Royal Mail, já que a venda dos correios britânicos em bolsa foi a grande inspiração da privatização dos CTT.
Para o Governo, era muito importante compaginar o calendário com a oferta lançada, em Outubro, no Reino Unido. Os correios nacionais não poderiam avançar antes dos britânicos. E só quando começaram a surgir informações mais concretas que confirmavam a elevada procura por acções do Royal Mail é que, em Portugal, alguns ânimos serenaram. Havia, agora, mais certezas de que os investidores tinham confiança para aplicar dinheiro nos CTT.
Mas o exemplo britânico (e também o da Bélgica, que seguiu precisamente o mesmo modelo para vender a estatal Bpost, em Junho) não serviu apenas para ajudar o executivo a tomar a decisão. Foi igualmente determinante para facilitar os encontros com investidores, que já levavam muito do trabalho de casa feito. As perguntas que faziam denotavam que conheciam o sector postal, os seus males e benefícios. As dúvidas que tinham prendiam-se, essencialmente, com o enquadramento regulatório em Portugal e com os segmentos de negócio do futuro, como os serviços financeiros.
Antes de a oferta arrancar e de a equipa de gestão iniciar o périplo por grandes cidades europeias e norte-americanas, analistas dos bancos ou contratados por estes reuniram-se com potenciais investidores durante duas semanas para prestar esclarecimentos sobre a venda dos CTT. Só nesta fase, que decorreu entre 4 e 18 de Novembro e é tradicionalmente chamada "investors education", houve pelo menos 370 reuniões.
Outros cem encontros já contaram com Francisco Lacerda e João Gorjão Costa, entre 19 de Novembro e 2 de Dezembro. Mas, nesta altura, já os bancos estavam a aceitar ordens de compra, que viriam a fixar-se em 5,52 euros por acção na manhã do dia seguinte. Um dos grandes objectivos do Governo, a maximização do encaixe, estava cumprido. E também mais um dos anéis do Estado tinha passado para as mãos de privados, como acordado com a troika.