O segundo resgate
Se trabalharmos propostas técnicas exequíveis e compromissos políticos razoáveis, é possível que o segundo resgate seja determinado pela vontade nacional e não imposto pelos credores.
Os governos devem fazer o seu papel, gerir as expectativas e tentar “puxar” pela economia. Este Governo está a fazê-lo relativamente bem para os cidadãos/empresários, mas mal para os cidadãos/trabalhadores por conta de outrem. Se a vantagem da retórica política optimista é que pode marginalmente afectar positivamente a economia, a grande desvantagem é que quando, mais tarde, a realidade se sobrepuser finalmente, e definitivamente, à retórica e for assumida pelos governantes, mais facilmente a desilusão, a descrença e mesmo a revolta se apoderam dos cidadãos. Estas são o gérmen dos extremismos e do descrédito da democracia.
2 – Não escrevo aqui a pensar no efeito que possa ter nos credores, sobretudo porque não sofro da imodéstia de pensar que pode afectar o rating da República. Escrevo para a(o) cidadã(o), e é neste contexto que gostaria desde já de deixar claro que, com elevada probabilidade, o ano de 2014 nos trará não um programa cautelar, mas um segundo resgate. Espero sinceramente estar enganado, mas esta é uma convicção pessoal resultante, em parte, das conclusões do Budget Watch, índice orçamental ISEG/IPP que será divulgado publicamente no próximo sábado. Posso antecipar que estimamos, com a incerteza associada a todas as previsões, que a economia portuguesa estagnará em 2014 (cenário central). A dinâmica do stock da dívida pública, com um cenário menos optimista do que o Governo prevê, os juros da dívida, a instabilidade social associada ao cansaço da austeridade e ao estado de excepção e a continuidade no essencial da estratégia alemã para a Europa (mesmo sendo ratificado o acordo CDU-CSU-SPD pelos militantes do SPD) levarão provavelmente a esse segundo resgate.
3 – É assim importante perceber, desde já, porque é que o programa de ajustamento não será, decerto, bem sucedido. Há uma razão estrutural, relativamente consensual entre economistas, de que é muito difícil reganhar competitividade no quadro do euro (já sobre os corolários desta afirmação há muita divergência). Mas há outra razão, que é o “dilema paroquial da consolidação orçamental enviezada”, que me parece explicar, para além do factor estrutural, o fracasso do ajustamento. Paroquial é a perspectiva de que conseguiremos, isoladamente, reduzir o défice para os 0,5% do PIBpm. O enviezamento, de cariz ideológico (ver PÚBLICO de 3/11/13), é a crença de que a redução deve ser feita sobretudo do lado da despesa. Os dois combinados levam a este resultado: uma política orçamental contracionista assente sobretudo na redução da despesa que provoca recessão e não permitirá um crescimento económico significativo. Se for assente sobretudo no aumento da receita, o efeito recessivo será menor, mas também existirá.
4 – Uma ideia central para uma diferente estratégia orçamental é que é necessário “exportar” parte da consolidação orçamental para não residentes. Se o fizermos, estamos não só a reduzir a austeridade dos residentes, como a contribuir para o relançamento da economia. Há aqui sobretudo três vias: a descida dos juros (que exige renegociação da dívida, com a óbvia limitação que é cada vez mais nacional), um orçamento da zona euro que assuma alguma despesa em prestações sociais dos países mais afectados socialmente pela crise e finalmente exportação fiscal para não residentes. Volto ao turismo, o sector que prospera, e ainda bem, em tempo de crise. Portugal tem a taxa mínima de IVA (6%) sobre as dormidas hoteleiras. Na Europa a 28, só a Holanda e a Bélgica têm a mesma taxa, sendo menor no Luxemburgo. Mesmo o “tigre celta” que defendeu com sucesso a não subida da taxa de IRC apenas reduziu de 12% para 9%. Se houvesse vontade política, facilmente se aplicaria um imposto específico por dormida, que nos situasse, em termos equivalentes, abaixo dos 10% praticados em Espanha, garantindo a competitividade com nuestros hermanos. Este exemplo concreto ilustra a razão por que o turismo tem um tratamento favorável, e explica que a resistência à aplicação da exportação fiscal não é económica, mas antes deriva da captura do poder político pelos interesses corporativos do sector.
5 – Para além das três vias de "exportação parcial da austeridade" e da aplicação de medidas para promover o crescimento, é inevitável ter de optar sobre como se deve repartir a consolidação orçamental entre o aumento da receita ou diminuição da despesa. O legislativo optou pelo corte na despesa e o Constitucional, se decidir pela inconstitucionalidade de medidas com implicação orçamental, optará implicitamente pelo aumento da receita fiscal que será, nesse caso, o inevitável plano B do executivo. Genericamente, considero que a consolidação orçamental não "exportada", enquanto durar a quase estagnação económica, deveria repartir-se entre diminuição de despesa e aumento de receita, devendo ser o contributo desta superior. Caso o Governo não consiga, ou não possa, diminuir a despesa, o aumento da receita terá de ser ainda superior.
6 – As razões por que defendo uma consolidação sobretudo do lado da receita, mas com controlo de despesa salarial e de pensões, é porque tenho a noção de que a margem para redução dos cortes de despesa é cada vez menor sem começar a pôr em causa as funções básicas do Estado. Não me refiro sequer ao Estado social, refiro apenas... ao Estado. O caso dos previstos cortes no subsídio de fardamento da polícia (que in extremis acabaram por não se verificar) é paradigmático do ponto a que se chegou na tentativa de redução da despesa.
7 – É necessário ainda mudar as instituições que enquadram novas políticas. A Constituição portuguesa, sejamos claros, não protege as gerações futuras referidas, aliás, apenas uma vez. Deveria assumir dignidade constitucional o princípio da equidade intergeracional ligado com três dimensões fundamentais: ambiental e de recursos naturais, Segurança Social e dívida publica. Poderia ainda consagrar a existência de um provedor das gerações futuras e dos recursos naturais. Porém, não deveria quantificar vinculativamente o limite ao défice, mas deveria referir explicitamente que o rácio da dívida no produto não deveria exceder os 60%. A discricionariedade interpretativa dos juízes do Constitucional manter-se-ia, mas haveria agora uma necessidade de considerarem explicitamente os interesses das gerações vindouras.
8 – Na realidade nem regras constitucionais para o défice, nem regras quantitativas para a despesa plurianual em leis ordinárias, ou de valor reforçado, funcionam. Temos já na lei de enquadramento orçamental uma regra que define como vinculativos os valores da despesa de programas orçamentais para o ano do Orçamento e para o seguinte. Mas quando chegamos ao ano seguinte (2014), todos os valores "vinculativos" referidos no ano anterior (2013) foram alterados. É preciso estudar e debater propostas credíveis para uma solução alternativa e não enunciar vagas e imprecisas ideias.
O ano que vem não vai ser fácil. Mas se nos concentrarmos no essencial, se trabalharmos propostas técnicas exequíveis e compromissos políticos razoáveis, é possível que o segundo resgate seja determinado pela vontade nacional e não imposto pelos credores. Mas para tal é necessário que haja vontade nacional. A materializar-se esse cenário, obviamente que teremos de ter eleições.
Professor do ISEG/UTL