“O dono disto tudo" passa a "responsável disto tudo" ou "vítima disto tudo”?
Um banco falido, uma família dividida, repercussões internacionais, dilemas políticos. O dia em que Salgado e Ricciardi foram ouvidos pelos deputados foi longo. Mais de 16 horas seguidas de dialecto “financês” e uma questão: por que faliu o BES e o seu grupo?
Salgado entrou no Parlamento por um acesso reservado e na sala usou a porta secundária, que costuma ser de uso restrito para os deputados. Desde as 8h, uma hora antes da audição, já a azáfama se instalara no Parlamento. Não só com os mais de 50 jornalistas, repórteres fotográficos e de imagem que lotaram as inéditas três filas de cadeiras no fundo da sala, minutos depois dessa hora madrugadora. Mas a própria segurança do Parlamento dava sinais pouco comuns de movimento. Quando Salgado circula nos corredores, ninguém (excepto os deputados) pode circular.
Tudo isto concorre para dar a esta audição uma aura de acontecimento histórico. O poder económico submete-se ao escrutínio do poder político, ainda que os factos digam respeito ao passado, e o poder seja, hoje, mais simbólico que real.
Sabendo disto, Salgado deixou uma frase: “Para mim, ‘dono disto tudo’ é o povo português e os senhores deputados são os representantes do povo.” A expressão, que terá começado por ser uma alcunha simpática, posta por zelosos admiradores, acabou por perseguir Salgado. E por ser glosada de várias formas: “responsável disto tudo”, “vítima disto tudo”. Isto tudo, o país.
Mas foi preciso esperar oito horas para que a expressão surgisse, pela voz da deputada Mariana Mortágua, do BE. Salgado estava preparado para o embate. “Essa classificação de ‘dono disto tudo’ é irrisória.”
O ex-presidente do BES, funções que exerceu durante mais de 22 anos, começou por avisar que estava ali para dar a sua versão dos factos. “Durante semanas e meses a fio, a minha família e eu próprio fomos julgados sumariamente na opinião pública. Tudo histórias totalmente falsas, mas que acabaram por ocultar a verdade dos factos.” Ainda assim, o ex-banqueiro diz que se “remeteu ao silêncio” e esteve nos últimos meses “a trabalhar para defender a dignidade e a honra” da família e de si próprio. Uma das frases que trazia escrita, na sua intervenção inicial de mais de uma hora, para sublinhar a ideia, cita “um provérbio chinês”: “O leopardo quando morre deixa a sua pele e um homem quando morre deixa a sua reputação.”
A sua “interpretação” do que aconteceu ao GES e ao BES mostra as bases da sua defesa: a falência do GES e do BES foi ditada pela crise financeira internacional; houve uma intenção clara por parte das autoridades [Banco de Portugal, BdP, e Governo] de “liquidar o BES”.
Por explicar ficaram outras questões, como o passivo de 6000 milhões da ESI, apurado em Novembro de 2013 (numa inspecção do BdP), que Salgado dizia ignorar, apesar de ser administrador daquela holding. Cecília Meireles, do CDS, registou: “Esta é a parte que não consigo de todo entender: como é que a holding de topo não era auditada, não tinha revisor oficial de contas, e porque é que ninguém se questionou sobre a ESI...”
O BdP foi um dos grandes alvos da audição. “Ouvi com surpresa as intervenções do senhor governador a dizer que tomou várias iniciativas para que deixasse a governação do BES”, afirmou Salgado. O ex-banqueiro garante: “O senhor governador nunca me disse [em Junho de 2014] que eu devia sair, mas que toda a família teria de deixar as estruturas do BES. Se o senhor governador me tivesse dito para eu sair, saía na hora. Mas na hora.” Sobre a declaração de Carlos Costa, nesta mesma comissão, sobre um “braço-de-ferro” entre o BdP e Salgado respondeu: “Se houve um braço-de-ferro com o governador do Banco de Portugal, eu não senti.” O deputado Miguel Tiago, do PCP, que o interpelava, reagiu: “Tal é a força do governador.”
Governador refuta
Carlos Costa estava longe da sala 6, mas não deixou de reagir ao que lá se disse. Logo que acabou a audição de Salgado, às 19h14, o governador enviou uma carta à comissão para “refutar veementemente” algumas das afirmações que lhe eram dirigidas. Salgado salientou também que no final de 2012 foi por sua “livre iniciativa ao BdP” falar da questão da idoneidade (na sequência da regularização por três vezes da sua declaração fiscal e da alegada comissão de 14 milhões de euros que recebeu do cliente José Guilherme) e que nunca mais o tema voltou a ser referido. Carlos Abreu Amorim, do PSD, foi o primeiro a intervir. E logo para acusar Salgado de “desonestidade intelectual”. A frase daria o tom para uma escalada, mas Salgado usou toda a sua fleuma, elogiando antes o “brilhantismo” do deputado. O duelo prosseguiria na segunda ronda, quando Amorim acusou o ex-banqueiro de “compor uma narrativa alindada”. Salgado refutou: “Se tivesse sido levantada a questão da minha idoneidade, eu tinha imediatamente pedido a demissão.”
Uma das “narrativas” de Salgado que Carlos Costa contesta é esta: “Quando em fins de Junho perguntei ao senhor governador se podia indicar o Amílcar [Morais Pires, ex-CFO do BES]” para me substituir na liderança do BES, o senhor governador respondeu que precisava de dois dias para pensar.” “Depois telefonou-me a dizer que ‘será quem o senhor presidente entender’.” Um dado contrariado pelas cartas e emails ontem divulgados por Carlos Costa, nos quais o governador insiste na necessidade de consenso entre accionistas quanto aos novos gestores e avisa que não aceitará Morais Pires por mera pressão de Salgado, sem avaliar a idoneidade do nome por este proposto para lhe suceder.
Uma figura (quase sempre) em silêncio na sala: Francisco Proença de Carvalho, advogado do ex-presidente do BES, filho de Daniel Proença de Carvalho. Sentado do lado direito de Ricardo Salgado, é ele quem carrega no botão do microfone a cada vez que o seu cliente responde aos deputados. Por vezes, troca impressões com Salgado quando o micro está desligado e há um deputado a colocar uma questão.
Como nesta ocasião, em que Salgado responde a Miguel Tiago: “Eu saio no dia 13 [de Julho]. No dia 12 enviei uma carta ao BdP a dar conta de financiadores interessados. O BdP não esteve na disposição de receber os investidores interessados. Remeteu o assunto para a nova comissão executiva. Eles não resolveram o assunto. Adiaram para o fim do mês. E no dia 30 o BdP dá 48 horas para o aumento de capital. Julgo que essa carta do BdP é uma forma de se desresponsabilizar. Quarenta e oito horas para fazer o aumento de capital? Só se fosse um milagre. O que parece é que tudo estava orientado para o mesmo.” Depois de conferenciar com o seu advogado, Salgado pediria desculpas pela última afirmação.
Mas para que não restassem dúvidas Abreu Amorim repetiu a tese de Passos Coelho, rejeitando culpas da regulação e do Governo na falência do BES. “O BES faliu por má gestão, por uma gestão pouco séria e pouco sã. Finou-se por culpa própria.”
Antes, em resposta a Pedro Nuno Santos, do PS, Salgado deixara uma certeza: “Não houve desvios de capital para fora do banco.” Em sua defesa, repetiu a ideia: “Posso garantir aos senhores deputados que nunca dei indicações a ninguém para ocultar passivos do grupo (...). Ninguém se apropriou de um tostão, nem na administração, nem na família.”
Os deputados andaram todos à volta do tema Eurofin, a sociedade suíça considerada o “buraco negro” do GES e do BES para esconder prejuízos, com Salgado a justificar que “esta empresa era independente” do grupo português, apesar de ter servido para Salgado esconder durante vários anos a participação que o GES detinha no Grupo Queiroz Pereira. A Eurofin apareceu nas semanas anteriores à falência do BES numa operação que envolveu 800 milhões de euros do banco português. Os deputados esqueceram-se, no entanto, de perguntar ao ex-banqueiro que destino foi dado ao suposto saco azul do GES usado para pagar, via Eurofin, cerca de 300 milhões de euros de despesas não documentadas. Em declarações ao PÚBLICO (4/12/2014), Alexandre Cadosch inquirido sobre se “nunca se questionou para que servia esse suposto saco azul do GES/BES”, respondeu: “Sim. Mas de novo terão de ser eles a explicar, [só] eles [GES e BES] tinham a fotografia completa [do que se passava]."
Outro dos temas em foco foi o “saque no BES Angola”, precisamente o título de um trabalho do Expresso que Salgado aconselhou os deputados a ler. Em poucas palavras: o BES concedia créditos (3 mil milhões de euros) ao BESA, que muito liberalmente os distribuía em empréstimos sem qualquer garantia. Salgado admitiu o erro: “O departamento de riscos angolano foi pervertido. Per-ver-ti-do. Aquilo não funcionou.” Um culpado? “Álvaro Sobrinho.” Houve um erro de julgamento na indicação da pessoa que foi para presidente da comissão executiva do BESA [Álvaro Sobrinho]”, disse Salgado, sugerindo que foi atacado pelos jornais (Sol e i) que são detidos pelo empresário angolano.
Salgado foi ainda instado a comentar, por Mariana Mortágua, o pagamento aos cinco membros do núcleo do GES de cinco milhões de euros retirados da comissão cobrada pela Escom no negócio da venda por um consórcio alemão de dois submarinos ao Estado português. Salgado admitiu aos deputados que recebeu “um pouco mais” do que um milhão – muito embora tenha negado, por três vezes, que tenham sido pagas comissões “a nível político” nesse negócio.
Sobre a transcrição da gravação da reunião do conselho superior em que o tema Escom foi abordado, que revela um comentário do banqueiro a declarar “Estamos rodeados de aldrabões”, observou: “Eu posso garantir que não sabia que estava a ser gravado.”
Mais tarde, Ricciardi desmenti-lo-ia, com sarcasmo. A guerra entre os dois primos esteve sempre em pano de fundo. Salgado recusou, durante muitas horas, falar de Ricciardi. "Não contem comigo para atacar ninguém da minha família.” Mas quase dez horas depois de ter entrado na sala 6, subitamente, reagiu, após ser confrontando com as denúncias do primo ao Banco de Portugal: “O dr. Ricciardi teve um comportamento, no mínimo, muito curioso. Certamente, se fez alguma denúncia ao BdP, deve ter tido alguma contrapartida por isso.”
Salgado considera “um erro” o processo de resolução do BES, aplicado pelo Banco de Portugal a 3 de Agosto, e acredita que “a avaliação ainda está por fazer”. Há, no entanto, uma leitura que não deixa de fazer, tendo em conta “os valores perdidos” com a intervenção pública. O nível de capitalização do BES “foi completamente dizimado” e, se o banco for vendido por um valor inferior ao da intervenção, é preciso ter em conta esse diferencial. E também ao nível do crédito do BES Salgado considera que a situação do Novo Banco, que apelidou de “marca branca”, “vai criar uma crise maior” ao nível do emprego e das empresas.
A trama adensa-se? Para Salgado sim: “O Lehman Brothers faliu. O BES não faliu. O BES foi forçado a desaparecer.”