Défice estrutural só desce com cálculo que não é aceite em Bruxelas
Executivo contabiliza como medidas extraordinárias a reversão das políticas de austeridade. Para a UTAO, isso é “melhorar artificialmente” as contas, e o défice sobe em vez de descer.
A diferença substancial de estimativas entre o Governo e a Comissão Europeia em relação à variação do valor do défice estrutural em 2016 é um dos principais temas a separar as duas partes e deve-se, em larga medida, ao facto de o executivo ter decidido contabilizar como medidas extraordinárias a reversão das políticas de austeridade, como os cortes salariais na função pública e a sobretaxa.
No esboço do Orçamento do Estado (OE) entregue na passada sexta-feira em Bruxelas, o Governo aponta para uma redução do défice estrutural — o défice que desconta o efeito da conjuntura económica e das medidas extraordinárias — de 0,2 pontos percentuais durante este ano. Este valor já fica claramente abaixo dos 0,6 pontos percentuais de redução que tinham sido recomendados a Portugal pelas autoridades europeias em Julho de 2015, como fez questão de assinalar, esta quarta-feira, a Comissão Europeia numa carta enviada ao Governo.
No entanto, a divergência não fica por aqui, porque a forma como o Governo chega ao valor dos 0,2 pontos percentuais gera, também ela, muitas dúvidas em Bruxelas, com os técnicos da Comissão a chegarem a um valor bastante mais negativo.
A causa por trás desta diferença está naquilo que o executivo português regista como medidas extraordinárias. No esboço do OE, o Governo inscreve um valor equivalente a 1% do PIB na rubrica de “medidas extraordinárias e temporárias”.
França e a Itália também foram pressionadas por Bruxelas e cederam
Esta é, por isso, uma das questões centrais na discussão que decorre agora entre as autoridades portuguesas e europeias. Na carta enviada a Mário Centeno, a Comissão Europeia questiona-o precisamente sobre o valor do défice estrutural apresentado.
Na análise ao esboço do Orçamento do Estado divulgada ontem, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) identifica, uma a uma, as medidas registadas como extraordinárias e temporárias. São oito medidas do lado da receita (sete das quais a fazem diminuir) e sete medidas do lado da despesa (cinco das quais a fazem subir).
No total, o impacto total no défice ascende a 1923 milhões de euros, cerca de 1% do PIB. Estão incluídas as reversões de medidas de austeridade como a redução da sobretaxa de IRS (430 milhões de euros), o desaparecimento do quociente familiar no IRS (150 milhões de euros), os efeitos da reforma do IRC (227 milhões de euros), a redução do IVA na restauração (175 milhões de euros, ainda sem ter em conta o novo regime que só beneficia a comida), a reposição do valor dos cortes salariais na função pública (447 milhões de euros) e as transferências do fundo único de resolução (150 milhões de euros).
Para a UTAO, o exercício orçamental estrutural “considera medidas one-off [extraordinárias e temporárias] que não se encontram em conformidade com o Código de Conduta para a implementação do Pacto de Estabilidade e Crescimento”. E assinala que “a identificação indevida de medidas one-off de agravamento do défice orçamental, ou seja, operações que aumentam despesas ou diminuem receitas, contribui para melhorar artificialmente o esforço orçamental”.
De acordo com as contas feitas pela UTAO, se o Governo tivesse utilizado a metodologia e não tivesse registado como extraordinária a maioria daquelas 15 medidas, o défice estrutural estimado para 2016 apresentaria um agravamento de 0,4 pontos percentuais, um resultado bem pior do que a descida de 0,2 pontos estimados no esboço do OE.
A defesa do Governo
Do lado do Governo, a argumentação utilizada para a inscrição da reversão da austeridade como medida extraordinária está baseada no facto de, quando as medidas foram aplicadas em 2011 e 2012, terem sido apresentadas como sendo temporárias. Assim, defende o executivo, tanto nesses anos como agora, o carácter temporário dessas medidas deve estar expresso nas contas.
Por exemplo, quando o anterior Governo realizou o corte nos salários da função pública, anunciou que tal medida seria temporária, mas nas contas essa redução da despesa não foi classificada como temporária ou extraordinária. Contribuiu, por isso, para uma redução do défice estrutural, que, como o nome indica, deve medir o esforço de consolidação orçamental de carácter estrutural que é feito.
Agora que os salários voltam ao seu nível inicial, o Governo quer registar essa operação como o final de uma medida extraordinária, não contando o aumento da despesa para o cálculo do défice estrutural.
Nas contas que apresenta a Bruxelas, o Ministério das Finanças procedeu a uma revisão do valor do défice estrutural em todos os últimos anos, sendo este agora mais elevado nos anos em que as medidas de austeridade temporárias foram aplicadas e menos penalizado em 2016, quando estas são retiradas.
Resta saber qual será a reacção de Bruxelas a estes argumentos do Governo. Do lado das autoridades europeias, nunca foi muito popular a ideia de que as medidas de austeridade eram apenas temporárias, defendendo-se antes que elas deviam ficar com carácter permanente.
As divergências entre Lisboa e Bruxelas não ficam, contudo, por aqui. De acordo com a TVI, mesmo no défice nominal (onde todos as medidas são consideradas, sejam extraordinárias ou não) há estimativas muito diferentes, com a Comissão a prever um valor de 3,4% do PIB e o Governo 2,6%. As autoridades europeias esperam também um crescimento de 1,6% na economia, abaixo dos 2,1% projectados pelo Governo.
Ontem, em resposta aos jornalistas que o questionavam sobre estas previsões, o comissário europeu Moscovici afirmou ser “demasiado cedo para falar acerca de números”. “É muito importante mantermos negociações estreitas, construtivas e, espero, conclusivas nos próximos dias, com a perspectiva comum de trabalharmos no sentido de que o Orçamento português esteja, finalmente, em coerência com as regras do Pacto [de Estabilidade e Crescimento — PEC] e com os compromissos assumidos por Portugal”, disse.