De insolvência em insolvência, a fábrica das camisas Victor Emmanuel fechou

A Califa, em São João da Madeira, chegou a produzir 3000 camisas por dia, a empregar 300 operários. O patrão está preso por fuga ao fisco e a confecção deverá continuar em Luanda

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Quatro antigos funcionários da Califa Adriano Miranda

No último processo de insolvência, um investidor angolano do sector têxtil comprou as marcas da Califa, equipamentos, produtos acabados - onde estão mais de 10 mil camisas Victor Emmanuel - que serão levados para Luanda, juntamente com pessoal técnico que assegure a produção. Esta compra de 1,2 milhões de euros está prestes a ser concluída.

2012 foi o ano negro para a Carlos Teixeira da Silva & Filho, empresa que nasceu em 1965 em São João da Madeira para produzir e vender as camisas Califa - nome da marca que se confundia com o nome da firma - e que mais tarde viria a criar, produzir, comercializar e exportar as camisas Victor Emmanuel pela Europa e Estados Unidos. Em Maio de 2012, os cerca de 120 trabalhadores rescindiram os contratos com dois salários e quatro subsídios em atraso, depois de um processo de pré-avisos de greve, ordenados em falta, vigílias para impedir a saída de material.

Em Julho desse ano, o empresário Joaquim José Teixeira da Silva, filho do fundador da Califa e criador da Victor Emmanuel, foi condenado a três anos de prisão por dívidas ao Estado. Em Setembro, a decisão transitou em julgado. Nesse mês, os trabalhadores votaram a liquidação da empresa, no âmbito de mais uma insolvência. Em Outubro, o recurso do empresário deu entrada no tribunal uma semana depois do prazo. Aos 73 anos, o dono da Califa está preso em Custóias desde Janeiro de 2013 e responde por mais um processo de fuga ao fisco e à Segurança Social no valor de 332 mil euros. O julgamento começou no final do mês passado e o arguido não compareceu na audiência.

Nada era deixado ao acaso na produção das camisas Victor Emmanuel. A matéria-prima era escolhida a dedo. O metro de tecido chegava a custar 300 escudos. Muito material passou pelas mãos de Mário Moreira, que entrou para a fábrica com 13 anos e ali ficou 42. “Uma camisa clássica tinha quatro qualidades de botões que eram lavados com lixívia para ficarem todos da mesma cor”, recorda o ex-operário. Entrou como empregado de embalagem. Referenciava camisas, metia-as dentro das caixas, tratava dos despachos. O patrão percebeu o desenrasque e Mário foi transferido para o sector de exportação, onde ficou 12 anos, antes de passar para o armazém e ficar responsável pelas encomendas. Às sextas-feiras, o trabalho prolongava-se até às três da manhã para colocar as camisas nos cinco ou seis camiões que estacionavam na empresa. “Gostava muito do que fazia, ainda hoje sonho com isso”, confessa.

Arlinda Oliveira, sua esposa, perdeu a conta às vezes que bordou à máquina o VE de Victor Emmanuel. Entrou na Califa com 14 anos e começou por bordar o símbolo dessa marca em lenços masculinos para assoar o nariz. “A camisa Victor Emmanuel era uma camisa de prestígio”, garante. As costureiras sabiam que o produto era de alta qualidade. “Naquela altura, ganhava-se benzinho e erámos uma grande família. Era a nossa casa”. O fim da fábrica desassossegou-lhe o coração. O casal ficou sem trabalho.

Nos tempos áureos, a Califa chegou a ter 300 funcionários que faziam 3000 camisas por dia. Alice Costa trabalhou na Califa 20 anos. Pregava botões, acertava bainhas. Chegou a fazer horas extras, a trabalhar aos sábados. Havia dias em que lhe passavam pelas mãos 1500 camisas. “A Victor Emmanuel não era uma camisa normal. O tecido tinha muita qualidade, ficava muito direitinho, não engelhava”. Nos últimos anos, a produção diminuiu, não havia matéria-prima, os salários atrasavam. “Passei noites a guardar a fábrica porque tínhamos medo que uma encomenda fosse desviada”, recorda.   

O valor das indemnizações dos ex-operários ronda os 4,2 milhões de euros, além dos 12,4 milhões de créditos a não funcionários e de cerca de 2,2 milhões à Segurança Social. Até agora cada um dos ex-trabalhadores recebeu cerca de 8 mil euros do fundo de garantia salarial.

Esmeraldina Valente começou a trabalhar aos 14 anos na filial que a Califa tinha em Ovar. Havia muito trabalho na secção de costura e Esmeraldina desdobrava-se em múltiplas funções. Assim foi durante 39 anos da sua vida. Quando a filial fechou, foi transferida para São João da Madeira. Assistiu por dentro à queda da empresa, outrora considerada sólida no sector têxtil. As encomendas diminuíram, o material deixou de entrar na fábrica, não havia dinheiro para pagar salários. Quase dois anos depois, a ex-costureira substitui lágrimas por revolta. “Demos a nossa vida por aquela firma, trabalhámos muito e não fomos beneficiados em nada. Se ele [patrão] deu a vida pela empresa, nós também a demos e não devemos nada a ninguém”. 

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