De cavalo para Uber
Perante a Uber, um serviço que é unanimemente reconhecido como superior nas suas múltiplas vertentes, o setor do táxi prefere adotar uma postura corporativista.
A força do lobby do cavalo era tal que o legislador do Estado da Pensilvânia, quiçá sob o efeito do cavalo, aprovou uma lei segundo a qual “qualquer condutor que aviste uma parelha de cavalos a vir na sua direção deve encostar o automóvel à berma e cobri-lo com uma manta que se confunda com a paisagem”. O final da história é conhecido: o automóvel democratizou-se e o cavalo ficou confinado ao Jockey do Campo Grande e à vila da Golegã no São Martinho.
Mais tarde, foi a indústria dos caminhos-de-ferro a desconfiar do automóvel. “Em vez de gozarem da sólida situação que resultava da sua incomparável superioridade sobre os meios de transporte anteriormente conhecidos, viram-se os caminhos-de-ferro em luta com activas e importantes empresas exploradoras dos transportes em automóveis (...). [O]s automóveis viviam em plena liberdade, fixando as tarifas a seu belo prazer, escolhendo à vontade os itinerários e horários dos seus serviços, regulando livremente a freqüência dêstes.”
A concorrência do transporte automóvel, dizia-se, prejudicava as empresas de caminhos-de-ferro. “Tal concorrência ainda seria aceitável se se fizesse em condições de igualdade, mas não foi isso o que sucedeu. (...) Ainda há de facto quem impugne a regulamentação legal nesta matéria e preconize os benefícios da livre concorrência de cada uma das duas formas de transporte (...). Mas não há o menor fundamento para supor que a livre concorrência levaria cada uma das formas de transporte a limitar-se ao seu terreno próprio”.
Experimente agora reler as citações substituindo “caminhos de ferro” por “táxis” e “automóveis” por “Uber”. Tirando as diferenças de acentuação, podiam ser linhas escritas em 2015 por Florêncio de Almeida, presidente da ANTRAL. Ou pelo Tribunal da Comarca de Lisboa que, em finais de Abril, disse que a atividade da Uber constitui “uma prática de concorrência ilegal, dificilmente controlável, fortemente prejudicadora deste setor e de difícil reparação”, representando um “sério risco para o público em geral”.
A verdade é que o manifesto anti-concorrência acima citado data de 2 de Maio de 1945, 70 anos antes da sentença da Comarca de Lisboa e das putativas declarações de Florêncio de Almeida. A autoria é da Câmara Corporativa, órgão consultivo da Assembleia Nacional e do Governo do Estado Novo, a que competia emitir pareceres sobre as propostas e projetos de lei, em representação dos “interesses sociais”. Trata-se, no caso, do “parecer acêrca da proposta de lei n.º 96”, cujo objetivo era promover a coordenação dos transportes terrestres. Para que essa coordenação fosse assegurada, teria “de intervir uma autoridade superior — a do Estado. Mas esta exercer-se-á facilmente quando se defrontar com empresas sólidas, (...) e não com uma poeira de pequenas iniciativas, egoístas e deficientes”. Naturalmente, e “louvada a orientação do Govêrno”, a Câmara Corporativa “é, pois, de parecer que a proposta de lei n.º 96 merece plena aprovação”.
A esta altura, os procuradores da corporação do táxi já estão a perceber onde quero chegar. E já se aprontam para encher a caixa de comentários com os pareceres do costume. E que tal termos hospedeiras a pilotar aviões? Ou talhantes a fazer operações? Afinal de contas, licenças e licenciaturas são meras formalidades. Descontados o elitismo e a ironia, o taxista tem a sua razão. Qualquer cirurgião ficaria preocupado se os seus pacientes preferissem ser operados pelo talhante do Ferdinando, o talho ali da minha rua.
O problema é que a preocupação do taxista não passa por procurar formas de melhor servir os seus clientes. Perante a Uber, um serviço que é unanimemente reconhecido como superior nas suas múltiplas vertentes, o setor do táxi prefere, travestido de paladino do respeito pela lei, adotar uma postura corporativista. Os bichos-papões da (suposta) falta de licença e de seguro dos condutores da Uber não são mais do que disfarces para os verdadeiros receios dos taxistas: a perda da renda, a concorrência, a inovação. É que a exigência de licenças e licenciaturas só faz sentido enquanto garante do fornecimento de um serviço de qualidade superior, em média, à do serviço prestado por quem (alegadamente) não as tem. Quando assim não é, essa exigência serve apenas para proteger os incumbentes e as suas rendas, erguendo barreiras ao acesso à profissão. Já dizia Umberto Eco em 1988, no ensaio “Come usare il tassista”, que a única coisa que o taxista quer é “um governo forte, que encoste à parede todos os automobilistas privados e decrete um recolher obrigatório razoável entre as seis da manhã e a meia-noite”.
Mas, a longo prazo, a questão que verdadeiramente interessa é a de fundo. E essa é sempre a mesma: a de saber se estamos dispostos a dar à sociedade uma forma mais conveniente, mais segura, mais barata e mais honesta (sobretudo para quem costuma apanhar táxis no aeroporto da Portela) de satisfazer as suas necessidades, ou se cedemos aos interesses corporativos e obrigamos a Uber a encostar à berma e a tapar os carros com mantas que se confundam com a paisagem anti-concorrencial.
Suspeito que nos 70 anos da Uber o debate “inovação vs. corporativismo” se mantenha atual. Mas suspeito também que, tal como a equestre lei da Pensilvânia e os pareceres da Câmara Corporativa, a captura regulatória do mercado do táxi não passe de apenas mais um exemplo histórico, útil para ilustrar os argumentos pró-inovação e pró-concorrência.
Docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa