Brasil ou o poder da imaginação
O mundo olhado a partir do Brasil surge como um globo de possibilidades. Seja para quem protesta nas ruas por um melhor Estado e uma melhor divisão da renda, para quem ascendeu a um primeiro degrau no caminho da classe média ou, ainda, para quem dislumbra a visão de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU ou uma presença entre a elite financeira e económica global.
Este é o poder das ideias, o poder da imaginação. Há países onde o futuro sempre parece possível. Onde o poder das ideias se manifesta permanentemente, mesmo que o futuro desse país seja imaginado em 1941 por um escritor nascido em Viena, falecido em Petrópolis, de nome Stefan Zweig e autor do ensaio Brasil, País do Futuro.
O Brasil não foi descoberto em 1500. Há 514 anos, quando o projecto político europeu era algo de inimaginável, os portugueses já imaginavam nas suas cartas de navegação a existência de umas tais ilhas Brasil. A terra em que se aportou na manhã de 22 de abril, como conta Pero Vaz de Caminha, era de “bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho” e de “tal maneira graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo”.
O choque de civilizações entre os marinheiros que saíram do mar, as tribos que habitavam o litoral e aqueles que, levados enquanto escravos, chegaram de África, sobretudo de Angola, Moçambique e Nigéria, cumpriu a imaginação de Caminha. Entre o “dar-se-á nela tudo” e os séculos de miscigenação, deu-se a criação do que o antropólogo Darcy Ribeiro intitulou como “Roma tardia e tropical”.
O rebento dessa confluência de matrizes culturais não imaginou o mundo pelas lentes das suas experiências singulares, mas sim pela mescla destas diferentes imaginações. O primeiro brasileiro não era europeu, nem indígena e tampouco africano. Precisava imaginar e inventar-se enquanto povo-novo. E é com esse vir a ser que os brasileiros forjaram-se como nação.
Receptivo e caloroso. Antropofágico porque devorou as gentes que lá pisaram e a elas atribuiu outros significados. Não comeu na carne, como faziam os guerreiros tupinambás, mas na alma. Sírios, italianos, libaneses, japoneses, alemães, turcos, argentinos, espanhóis e, agora, mas também ontem, portugueses deslocados pela crise económica. Todos, devorados... num banquete de almas e transfigurações da experiência com que se olha o mundo.
A própria presidente, Dilma Rousseff, é o resultado legítimo desse artesanato. Filha de imigrante búlgaro e professora brasileira, nasceu em Minas Gerais, entre as montanhas de Belo Horizonte. Fez carreira política no frio do Rio Grande do Sul e foi presa política em São Paulo. Venceu as eleições de 2010 com 70% dos votos nos nove estados da região nordeste. A sua votação mais expressiva aconteceu no norte, no Estado do Amazonas, onde obteve mais de 80% de aprovação.
Mas inventar-se como povo não é tarefa para sete dias e, no caso do Brasil, são 514 anos de obra em progresso. O certo é que os primeiros brasileiros eram uma tela à espera dos pigmentos da sua identidade.
Nascido desse ineditismo, o Brasil escreve de forma original a sua trajetória. Tanto é verdade que em 1807, quando a família real portuguesa fugiu das invasões napoleônicas para o Rio de Janeiro, também criou um fato sem precedentes na história. Pela primeira vez um reino seria governado a partir de uma das suas colônias. Colónia e metrópole trocaram de papéis.
Ocidente e Oriente, o Brasil é uma ideia em permanente formação. Da indepedência em 1822, sem uma batalha sangrenta, passando por duas ditaduras sombrias, civil (1937-1945) e militar (1964-1985), ao impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, eleito como o caçador de marajás, mas traído por sua própria rede de corrupção.
O Brasil reimaginou-se com um sociólogo, Fernando Henrique Cardoso, à frente das finanças. E voltou a reinventar-se com a chegada de um ex-operário à Presidência da República. No discurso de posse no Congresso Nacional, Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que “a esperança finalmente venceu o medo e a sociedade brasileira decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos”. E assim o fez, mais uma vez, para inventar-se através do poder da imaginação.
O Governo Lula reinventou, ancorando a sua imaginação na experiência anterior do sociólogo, uma política que conciliou crescimento econômico e inclusão social. Em oito anos, 40 milhões de pessoas saíram da pobreza e entraram para a classe média, graças a programas que diminuiram o fosso entre os ricos e os da margem.
Agora, no Brasil, pobres vão para a universidade, financiam a casa própria e andam de avião. O que pode parecer um mero detalhe para os países desenvolvidos, é na verdade a concretização da célebre frase do sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho: “a pátria tem que ser a mãe de todos ou não é de nenhum”.
Frente à profunda crise económica que atinge Portugal e a União Europeia, o PIB brasileiro cresceu 2,3%, em 2013. Com a inflação controlada, passou de devedor a credor do FMI. Atualmente, o desemprego ronda a casa dos 5,5%. E a escolha do diplomata brasileiro, Roberto Azevêdo, como diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, constituiu um novo reinventar dos “ares frescos” de Caminha.
O cenário de otimismo estaria completo com a escolha do país para sediar o Mundial de Futebol, que começa daqui a pouco mais de três meses. Na apresentação da candidatura do Rio de Janeiro como cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016, o então presidente Lula tocou na raiz do que faz do Brasil; Brasil. “Não só somos um povo misturado, mas um povo que gosta muito de ser misturado”.
Em junho de 2013, esse país com homens e mulheres de todos os continentes misturou-se no espaço público, mais uma vez, para de novo inventar-se. As primeiras manifestações foram convocadas pelo Movimento Passe Livre contra o aumento no preço das passagens de transporte em São Paulo. Reuniram diariamente, desde o dia 3, cerca de cinco mil pessoas. A atuação violenta da polícia, captada pelos media tradicionais e filmada por jovens ativistas, fez com que a indignação se espalhasse por contágio na Internet.
Os vídeos da ação policial foram assistidos exaustivamente no YouTube, enquanto novos atos eram convocados via Facebook e Twitter. Na semana entre 16 e 22 de junho, mais de dois milhões de cidadãos marcharam por 438 cidades. Os protestos cobravam mais investimento em educação, saúde, segurança pública e infraestrutura. Os brasileiros questionavam a corrupção e os gastos exorbitantes na preparação do Mundial. O foco já não era o preço da passagem, mas uma pluralidade incalculável de causas sociais.
No fundo, o que uniu essas pessoas é o descrédito na representação política tradicional, agravado pelo sentimento generalizado de injustiça. Pelo menos é isto o que mostra um inquérito aplicado, no período das manifestações, pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope). Os resultados apontam que 89% dos brasileiros não se sentem representados por partidos e 83% por qualquer político – o que não os torna singulares mas, sim, semelhantes à maiora dos cidadãos do mundo democrático.
O Brasil está a ser inventado, neste instante, nos minutos que levamos para ler este artigo. Quando as seleções verde-e-amarela e vermelha-e-verde entrarem em campo, de novo Portugal imaginará o Brasil e os 200 milhões de corações deste país apaixonado por futebol estarão divididos no que imaginam. Querem ser campeões da bola, claro. Mas também concretizar o ideal Zapatista: “criar um mundo em que caibam todos os mundos”.
E como será o Brasil de amanhã? A resposta mais provável é que será o que fizermos dele, sejamos brasileiros natos ou de imaginação. Como todas as grandes revoluções, o Brasil não é uma fotografia estática na parede da história, mas um filme em projeção permanente. A imaginação é sempre moldada pela sua reimaginação. Na voz de Caetano Veloso, “sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
Gustavo Cardoso, nascido em Lisboa e bisneto de uma paulista, é sociólogo no ISCTE-IUL. Branco Di Fátima, nascido em Minas Gerais, é jornalista, escritor e doutorando em Ciências da Comunicação no ISCTE-IUL. Este artigo foi escrito ao abrigo de várias grafias e acordos em que todos nos entendemos.