A reforma do Estado e as suas vítimas
Organizaram-se conferências, anunciadas urbi et orbi, mas para círculos restritos. Fizeram-se proclamações que "agora é que é", e "nada foi feito até hoje". Anunciou-se o corte de quatro mil milhões na despesa, sem se explicar porquê tal montante, embora com esforço se vá percebendo que resulta da diferença entre défices anteriores e os projectados para os próximos anos, em compromissos internacionais sempre em revisão. Diz-se que é preciso corrigir o défice orçamental, cortando na despesa, mas escondendo-se que o défice, se é o resultado da despesa, também depende da receita e, em muito, da actividade económica, do emprego e da produção de riqueza. Recebeu-se o relatório da OCDE, menos estrondosamente, porque com sabedoria lá se diz, sem alarido, que é preciso cautela. Advoga-se por aí a aplicação de experiências de outros países, ignorando-se olimpicamente a história do país, a política e a administrativa, mas também a social e a económica, sobretudo nas suas fragilidades. Esquece-se o papel do Estado e da AP na coesão do território, nos equilíbrios sociais, no posicionamento estratégico do país, na defesa do interesse geral, presente e futuro, contra a força de poderosos interesses particulares, muitas vezes encapotados de interesses gerais. Diz-se que o Estado asfixia o país, mas não só se ignoram dados de comparação internacional que contrariam essa afirmação, como se esquece o papel que os poderes públicos sempre tiveram na nossa vida colectiva e as razões que poderão explicar essa persistente constância histórica. Defendem-se soluções, sempre de recorte técnico, ocultando as suas verdadeiras motivações ideológicas. Vai-se sabendo que a responsabilidade da reforma passa de uma incerta pasta para outra incerta pasta ministerial. Em que deu isto tudo? Em que ponto estamos?
Pelo que vemos, ouvimos e lemos (e não podemos ignorar, como dizia Sophia), a anunciada reforma do Estado traduz-se por ora na convergência da aposentação dos trabalhadores dos serviços públicos, em aumentar o seu horário de trabalho, aumentar os seus descontos para a protecção na doença, "requalificá-los" e despedi-los, concretizar as rescisões por mútuo acordo, e codificar a legislação que lhes é aplicável, através de uma Lei Geral do Trabalho. E tudo isto depois de anos de corte de salários, de inexistência de estímulos positivos, de saída em massa de trabalhadores e pouquíssimas entradas de novos, em regra com regimes precários, à excepção de certas carreiras "muito" especiais.
Convergência dos regimes de aposentação? Essa foi feita em 2005 e 2007, com a convergência das condições de idade e tempo de serviço, e revisão da fórmula do cálculo das pensões, por razões de equidade e de igualdade de tratamento entre todos os trabalhadores. Mas respeitou-se o passado e expectativas legítimas. E sem beliscar a situação dos já aposentados ou dos que já tinham as condições para aposentação. É isso que agora se altera.
Aumentar o horário de trabalho? Que sentido faz, quando tantos no sector privado têm já horários de 36 horas, e estando-se num contexto de ausência absoluta de estímulos e de grande desemprego, sobretudo entre os jovens, mesmo os qualificados, empurrados para a emigração? Acham que a produtividade vai aumentar? Só para quem raciocina em circuito fechado sobre papéis... O desalento é tanto que ela vai diminuir... Um estímulo que existia: é isso que se altera e retira!
Requalificar os trabalhadores? Após extinção de postos de trabalho por restrições orçamentais, faz algum sentido falar em requalificação de trabalhadores, tantos deles qualificados ou já, por várias razões, sem capacidade de requalificação, lançados numa situação em que o contexto impede que se encontre outra saída profissional, no sector público - estrangulado com restrições orçamentais - ou no privado, em profunda retracção? A "requalificação" o que é senão a porta para o desemprego? Atendeu-se à idade média dos trabalhadores? Pretende-se o destroçar de vidas e o agravamento da crise social? Em 2008 conseguiu-se a transição de cerca de meio milhão de trabalhadores do vínculo definitivo para o contrato de funções públicas, embora se tenha mantido para esses concretos trabalhadores as causas de cessação da relação de emprego público. É isso que agora, sob uma roupagem de requalificação, desaparece. E com que vantagens? Agravar a desilusão, a crise social?
Rescisões de contratos? Por mútuo acordo? No contexto global referido, como se pode falar em acordo e quando a iniciativa do "acordo" pode ser do dirigente "no sentido de reforçar o cumprimento dos objectivos definidos para o respectivo ministério"? Ou se faz acordo, ou se é "requalificado" e vai-se para o desemprego? Que poupança se faz com isto? E quantas vítimas, sobretudo dos grupos mais frágeis?
Uma lei geral do trabalho para os serviços públicos? Não se pode contestar que será útil, para combater a dispersão legislativa, sobretudo reforçada pelas centenas e avulsas alterações feitas nos últimos anos aos diplomas em vigor. Mas segundo uma sistematização que respeite a especificidade das AP. E acima de tudo mantendo a natureza pública das relações de trabalho nos serviços públicos, sem fazer remissão directa para o Código do Trabalho, porque as características da AP e da prestação de trabalho obedece aqui a valores e lógicas diferentes do sector privado. Há que haver proximidade. Mas não pode haver identidade. E só assim se pode assegurar a participação dos trabalhadores da AP na elaboração das suas próprias leis. Foi isso que se fez nas reformas de 2008. E parecendo uma questão puramente técnica, é uma questão profundamente política e ideológica: com soluções contrárias pretende-se a privatização das relações de trabalho e por essa via alterar o perfil do próprio Estado.
São estas as vítimas: os aposentados e os trabalhadores dos serviços públicos. Sendo estes o principal bem do Estado - para assegurar a sua acção - a vítima será também o próprio Estado e a AP, fragilizados e entregues à canibalização por interesses particulares. E, assim sendo, quase todos os cidadãos serão vítimas.
E depois de aplicadas estas medidas, continuando a haver retracção da economia, insuficiência da receita, e persistência do défice, quais vão ser as novas medidas de "reforma" do Estado?
É preciso reformar? Sim... sobretudo a política económica e financeira e a política europeia que têm sido seguidas e que tão maus resultados têm produzido.