A grande conspiração por detrás da OPA de 341 milhões do Montepio ao Finibanco
O Ministério Público abriu em Fevereiro um inquérito a um negócio imobiliário de 32,4 milhões de euros, firmado entre ex-banqueiros, gestores e empresários ligados ao Finibanco e que foi fechado em 2013, no Montepio. Apesar de decorrer em paralelo à OPA, Banco de Portugal e CMVM não o detectaram.
Estas são histórias por detrás de uma história.
A que envolve um pequeno banco do Porto, o Finibanco, pertencente à família Costa Leite.
A que envolve uma oferta pública de aquisição (OPA), lançada em Julho de 2010 pela Associação Mutualista Montepio Geral, com 632 mil mutualistas.
A que envolve um negócio de 341 milhões, que foi também o ponto final de um processo que começou ano e meio antes, com acordos confidenciais nunca tornados públicos, e avaliações ao Finibanco 100 milhões abaixo do valor final.
E será também a história da falta de atenção de supervisores como o Banco de Portugal e a CMVM que ignoraram os sinais de descontrolo.
O PÚBLICO foi procurar a sequência dos eventos que levaram a esta OPA e descobriu enredos que se cruzam e descruzam ao longo de toda a década passada. E que se juntam num determinado momento do tempo. Precisamente quando à OPA se associa uma transacção imobiliária de 32,4 milhões de euros e que desde o final de Fevereiro último está sob investigação do Ministério Público de Viseu, como confirma ao PÚBLICO a Procuradoria-Geral da República.
É este contrato de venda de 30 hectares situados à entrada de Coimbra que está na origem de uma guerra familiar que se alastrou ao Montepio, o banco mais antigo do país, com 175 anos. E que colocou a OPA como um alvo.
O que aqui está em causa não são tostões, são milhões. Jorge Tavares de Almeida, o ex-administrador do Finibanco e primo da família Costa Leite, apresentou uma queixa ao Ministério Público a reclamar o pagamento de uma dívida pela venda das propriedades de Coimbra. O comprador foi uma sociedade ligada só a accionistas e gestores do Finibanco: Humberto Costa Leite, Carlos Martins (presidente da Martifer), José Pucarinho. E pelo próprio Tavares de Almeida, conhecido como “Kadhafi” pela sua fisionomia e indumentária.
Fomos desfiando esta meada através da leitura de documentação, parte sigilosa, e de relatos e testemunhos. É um puzzle que no seu conjunto ajuda a compreender o lado oculto que muitas vezes existe nos bastidores dos grandes negócios. Pedimos esclarecimentos aos vários protagonistas, que ou declinaram comentar temas bancários ou de clientes, por dever profissional, ou aceitaram dar explicações pontuais. E todos tentaram passar a sua versão dos acontecimentos. E enfrentámos o eterno silêncio do Banco de Portugal e da CMVM.
Esta novela passa-se entre Vale de Cambra, a sede da Vicaima, a dona do banco; Oliveira de Frades, sede da Martifer; Coimbra, onde está o epicentro do diferendo; Porto e Lisboa. É uma manta feita de intriga, ciúme e ódios. E vendetas em curso. Percebe-se porquê. Mais uma vez, o dinheiro é omnipresente.
As grandes crises financeiras expõem as debilidades das instituições bancárias. Mas se as fraquezas se agudizam é porque há gestores que não param no sinal vermelho ou ficam amarrados a transacções promíscuas. E outros embarcam em fantasias tomando decisões que subestimam grandes riscos.
Para perceber o que se passou, é necessário regressar aos tempos da revolução de Abril, quando o sistema financeiro foi nacionalizado e muitos empresários entraram em colapso, mas outros foram beneficiados. Foi o caso de Álvaro Costa Leite, dono do grupo industrial Vicaima e pai de Humberto Costa Leite – a família que vai criar o Finibanco.
1975, revolução
A revolução de Abril apanhou a Vicaima com excesso de endividamento e os armazéns repletos de madeiras nacionais e estrangeiras. Com a inflação a subir e o escudo a cair, a empresa ganhou em três frentes: reduziu o endividamento pela desvalorização da moeda; baixou os custos de produção porque tinha muita madeira em stock, que se valorizou; e ainda conseguiu vender a valores altos o que tinha comprado a preços baixos. O empresário de Vale de Cambra ficou com cash, o que lhe permitiu sonhar. E apenas esperou pela ocasião.
Década de 1980, liberalização
Quando chega o ímpeto liberalizador em matéria de criação de sociedades financeiras que darão origem a instituições mais flexíveis e adaptadas aos novos tempos, muitos bancos estão ainda na esfera estatal. O Grupo Montepio continua mutualista. E os desafios vão começar, pois a sua actividade está condicionada ao crédito à habitação. Em 1985, já a revolução tinha ficado muito lá atrás. Portugal adere à CEE, chegam os fundos europeus, começam as privatizações.
Ter um banco é ter capital à disposição, o que possibilita fomentar outras actividades. “Nos anos 1980, era fácil congregar accionistas, convencer gente com poupanças a investir no sector financeiro, e alguns industriais já com dimensão preferiam ter a sua própria sociedade para acompanhar os planos de desenvolvimento e, por vezes, transformavam-nas em bancos”, recorda ao PÚBLICO José Tavares Moreira, que foi governador do Banco de Portugal e secretário de Estado das Finanças no primeiro Governo de Cavaco Silva e que chegou a ser presidente da Mesa da Assembleia Geral da holding do grupo Vicaima.
Antes de criar o Finibanco, Álvaro Costa Leite esteve na fundação da sociedade financeira Cisf e do BCP. O grupo Vicaima ia crescendo e as características do patriarca Costa Leite tornam-se mais evidentes quando, em 1988, o seu nome salta para as primeiras páginas dos jornais, ao adquirir por 10 milhões de contos (50 milhões de euros) a empresa de aglomerados e contraplacados Jomar. O investimento é classificado como um dos maiores de sempre no país.
Enquanto isto, no grupo Montepio, com apenas 15 mil associados, faz tempo que o padre Vítor Melícias assumira o cargo de presidente e se prepara agora para se retirar para as Misericórdias. Como herança, deixa o movimento mutualista organizado. A liberalização do sector financeiro colocava forte pressão sobre o banco Montepio, com apenas 32 balcões e que continuava apenas a só poder dar crédito à habitação. Quando António Costa Leal, ex-ministro do Trabalho de Nobre da Costa, em 1978, o foi substituir, traçou como missão fazer a “revolução”.
Datam da época os primeiros sinais de que Álvaro Costa Leite se preparava para colocar o pé no acelerador industrial de Vale de Cambra. Nas décadas seguintes, a Vicaima vai tornar-se um dos maiores fabricantes do mundo de portas de madeira com aro e fechadura. Hoje, exporta 78% da produção.
1993, Finindústria
É sabido que um empresário procura ter meios de gestão da dívida e garantir facilidades na obtenção de fundos para desenvolver a actividade. E, um dia, o pai Costa Leite procurou o ex-presidente e fundador do BCP, Jorge Jardim Gonçalves. É este que conta: “Disse-me claramente que, em vez de ser um pequeno accionista de um grande banco, preferia ser um accionista de referência de um pequeno banco. E saiu do BCP.” O que farão também Américo Amorim e Ilídio Pinho, irmão de Álvaro Costa Leite que deixou cair o apelido paterno depois de uma grande zanga familiar.
Ora, para não ficar “descalço”, Álvaro Costa Leite cria o seu próprio veículo financeiro, a Finindústria – Sociedade de Investimentos e Financiamento Industrial.
1994, Finibanco
O passo natural é transformar a Finindústria num banco de investimento. Nasce o Finibanco, com sede no Porto.
Em Novembro, a instituição faz um aumento de capital de 5 para 7,5 milhões de contos para dispersar 40% das acções por 20 clientes, na sua maioria empresários da região Norte e Centro. Para Álvaro Costa Leite, é fundamental arranjar um gestor. O seu conterrâneo José Oliveira Costa afigura-se-lhe a escolha credível – aquele que virá a ser o principal arguido do caso BPN, na qualidade de secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de Cavaco Silva, tinha aparecido envolvido nos anos 80 num controverso perdão fiscal de 2,1 milhões à empresa aveirense Cerâmica Campos; e em 1992 esteve no Luxemburgo, onde, em nome de Portugal, exerceu uma das seis vice-presidências do Banco Europeu de Investimento (BEI).
1996, Oliveira Costa
É quando entra na história Jorge Tavares de Almeida, um jurista e ex-parceiro de gabinete de José Nunes Pereira, futuro presidente da CMVM, e com relações familiares ao clã Costa Leite. Álvaro Costa Leite levou-o para o Finibanco, mas impôs um compromisso: “Vens trabalhar comigo, mas limpas todas as tuas dívidas à banca.” O convite vai dar lugar a uma grande cumplicidade entre os dois.
Nesta fase, já Oliveira e Costa andava às “turras” com os donos do Finibanco, pois todos queriam ter a última palavra. Então, o patriarca pediu a Tavares de Almeida que ajudasse a fazer o consenso: “[Oliveira Costa] queria fazer no Finibanco o que fez no BPN, onde montou uma estrutura de capital com accionistas em regime de time-sharing: entravam e saíam ao fim de um determinado tempo com muito dinheiro no bolso.”
Após um período de quase paragem no sector da construção, os investidores cavalgam agora na onda do imobiliário.
Na esfera de alguns bancos, constroem-se cadeias de interdependências e de troca de favores e de serviços que quase sempre dão origem a negócios paralelos que dependem de financiamento.
Tavares de Almeida estava a tentar urbanizar uma propriedade à entrada de Coimbra, designada por Colinas de Vale Meão. A Câmara de Coimbra exigiu-lhe que fosse falar com os vizinhos da Quinta de Santa Comba para que o loteamento fosse articulado.
Tavares de Almeida telefonou ao primo Humberto Costa Leite. “Fui propor-lhe criarmos uma empresa [que se vai designar Coleta – Costa Leite e Tavares de Almeida] para comprar a propriedade. Mas, para poder ter maior margem nas facilidades de crédito, o Humberto indicou o seu técnico de contas Manuel Pinto, que assumiu 50%.” Ao PÚBLICO, o ex-presidente do Finibanco explica que “não aceitou ser sócio da Coleta por constrangimentos resultantes da sua ligação ao banco”.
A 29 de Novembro aparece outra figura da igreja na história, o padre Vitorino Brandão, que era braço direito de Humberto Costa Leite na Jomar. É ele que, em nome da Coleta, negoceia a aquisição da Quinta de Santa Comba e comparece à escritura. O investimento de cerca de 1,5 milhões de euros será realizado com financiamento do Finibanco. O novelo vai começar a emaranhar-se, mas não já. Ainda teremos de esperar 12 anos.
Depois da aquisição da Quinta de Santa Comba, a Coleta começa a ser usada para fazer operações financeiras, “o que nos obrigou a criar uma nova sociedade”, diz Tavares de Almeida. Nasce a Vilões. Só que a perspectiva de urbanizar as Colinas de Vale Meão fica na gaveta até 2008.
No ano de 1996, sentam-se nos órgãos sociais da banca nomes respeitáveis; outros já são “cowboys”. O caso mais mediático é o de Oliveira e Costa, cuja gestão contínuava a gerar tensões no topo do Finibanco.
1997, “amor livre"
A porta de saída abre-se para o principal executivo do Finibanco, que se retira a troco de “uma mega-indemnização”. Apesar dos sinais de uma gestão sui generis, o Banco de Portugal (BdP) manteve o registo de idoneidade, o que permitirá a Oliveira e Costa pôr de pé a megafraude do BPN.
Quem o substitui no Finibanco é o administrador Fernando Correia da Silva, que começa logo a recrutar quadros para a equipa. Um deles é António Couto Lopes, que se cruza pela primeira vez com o administrador executivo, Tavares de Almeida: “O Álvaro confiava e achava-lhe piada, porque considerava que era um livre-pensador.” Tavares de Almeida tinha andado por Paris na sublevação e no amor livre e fazia questão de dizer: “Eu sou um herdeiro do Maio de 68.” E “era visto como o ideólogo do regime”. Por coincidência, anos depois, quer Couto Lopes quer Tavares de Almeida tornar-se-ão uma ameaça à reputação de Humberto Costa Leite e de Tomás Correia, que estava à frente do grupo Montepio, banco e associação.
1998, relato
O grupo Vicaima está em expansão, e ganhar escala é, em regra, ganhar dívida, pois os investimentos ou são suportados por capitais próprios ou por externos. Datam daqui relatos de que o industrial estava com pressão de tesouraria e vendedor do Finibanco. Os jornais referem a Caja da Extremadura como interessada, mas Álvaro Costa Leite apressa-se a negar.
2000, CIA
A agência norte-americana CIA admite que se está a entrar “num período de dinamismo sustentável até 2015”. Para esta ideia, que se difundira, contribuía a decisão de deixar cair os muros entre a banca comercial e a de investimento, o lugar de onde sempre partem as engenharias especulativas.
Depois de em Março de 2000 as cotações das empresas tecnológicas terem entrado em queda livre, com perdas superiores a 5000 milhões, a atenção dos investidores começou a ser desviada para o imobiliário. Para promover o crescimento e reduzir o desemprego (6,1%), a Reserva Federal (FED) pôs em marcha um plano de baixas taxas de juro.
2002, Euro
O Finibanco já se tornara pequeno para a dimensão do grupo Vicaima. E quando Jardim Gonçalves se volta a cruzar com Álvaro Costa Leite ouve um comentário: “Disse-me que já tomara consciência de que um banco da dimensão do Finibanco não era sustentável e não lhe dava a capacidade de endividamento que esperara, enquanto um banco como o BCP permitia aos accionistas limites de exposição aos riscos mais elevados [pois o balanço do BCP era muito maior].”
A entrada em circulação do euro facilita muito o acesso da banca aos mercados interbancários e de emissão de dívida internacionais.O sector é grande consumidor de capital, “matéria” que falta em Portugal, e alguns accionistas industriais, aos poucos, deixam de responder às chamadas para não desnatarem as actividades de origem.Outros socorrem-se de mecanismos.
Em bancos controlados por núcleos restritos, nomeadamente por famílias ou grupos empresariais, a tentação passou a ser movimentar dinheiro em circuito fechado.
E surgem os primeiros sinais de desconforto no topo do grupo de Vale de Cambra: a direcção financeira da Vicaima procura crédito para desenvolver a sua actividade industrial e acompanhar os aumentos de capital do Finibanco; a administração do banco resiste a dar para se manter dentro das regras do Banco de Portugal, então liderado por Vítor Constâncio.
2003, Greenspan
Periodicamente aparecem referências na comunicação social à intenção da Vicaima de vender o Finibanco. Álvaro Costa Leite volta a reagir: “O banco está em boa situação financeira e não faz sentido falarmos em venda ou em parcerias. Neste momento, pode crescer até ao dobro, sem que para isso seja necessário recorrer a aumentos de capital, pelo menos até ao final deste ano.”
A 25 de Junho, pela 13.ª vez desde Janeiro de 2001, Alan Greenspan, o homem forte da Reserva Federal Americana, anuncia um corte dos juros básicos norte-americanos agora para 1% ao ano, o patamar mais baixo desde 1958. Isto, conjugado com a inovação tecnológica que mudara o modo de fazer banca, torna os banqueiros generosos a dar financiamento para compra de casa, para construção e promoção imobiliária.
2004, Costa Leal
Costa Leal prepara-se para deixar a presidência do grupo Montepio, depois de a meio da década anterior ter assumido como meta fazer crescer o número de associados, que disparou de 15 mil para 239 mil. O Montepio já não se movimenta apenas na concessão de crédito à habitação: a rede comercial subiu de 32 para 300 balcões e atingia um milhão de clientes. Mas para a maioria ainda não era a primeira opção e muitos clientes mantinham conta aberta noutras instituições.
O futuro do grupo começa a suscitar divergências, que levam ao aparecimento de duas listas a disputar os órgãos sociais. Uma liderada por Maldonado Gonelha, ex-ministro do Trabalho de Mário Soares, e outra por José Silva Lopes, ex-ministro das Finanças de Vasco Gonçalves. Ganhou esta segunda, com o apoio de Costa Leal.
2005, Fraude
Quando o procurador Rosário Teixeira tropeçou no mega-esquema de fuga ao fisco que envolvia alguns bancos, deu-lhe o nome operação Furacão. Aparecem o BCP, o BES, o BPN, o Finibanco e centenas de empresas clientes.
Os processos são do domínio público e revelam, por exemplo, que no Finibanco (entre outros) tinha sido montado um esquema de fraude fiscal sustentado numa sociedade irlandesa, a Finatlantic (que pertencia a Diogo Viana e prestava serviços ao sector), que emitia facturas falsas. O banco disponibilizava aos clientes serviços para reduzirem a matéria colectável. Para evitar declarar as comissões que cobrava, o Finibanco partilhava o mesmo mecanismo com os clientes. E foi assim que vários administradores e directores do Finibanco, entre os quais Humberto Costa Leite, foram acusados de envolvimento num esquema que lesou o Estado em 30 milhões de euros. E que vigorou entre 2001 e 2007. Mas nem Vítor Constâncio nem o BdP vão colocar em causa a idoneidade do presidente da instituição.
No Porto, na Rua Júlio Dinis, sede do Finibanco, as acções policiais começam a preocupar a gestão e não é apenas por causa do que está a ser investigado. É que Rosário Teixeira tropeçou num nome: Rhein Bank, com sede num paraíso fiscal anglo-saxónico. E ligou-o ao Finibanco. Mas não chega a conclusões, isto é, o Rainbank não era utilizado para o esquema das facturas falsas, mas tinha outro ângulo.
“A ideia de criar um banco para fazer emissões de dívida pontuais para o resto do grupo industrial partiu do Correia da Silva”, evoca Couto Lopes, o primeiro presidente do Rhein Bank, que lhe deu o nome. “Nunca ninguém lá foi ver o que aquilo era.” Inquirido como certificava as contas, explicou que “perguntava ao contabilista: ‘Está tudo em ordem?’ Ele dizia que sim. E eu assinava o balanço”.
“O Rhein Bank podia tomar firme a dívida emitida por veículos da esfera da Vicaima, seguindo-se a sua colocação aos balcões do Finibanco. As obrigações [títulos] eram apresentadas aos clientes como um produto autónomo e atractivo, pois a taxa de juro era superior à da remuneração dos depósitos a prazo e estavam garantidas por um banco estrangeiro, o que lhes dava segurança.” Isto é Tavares de Almeida a pensar alto. Acrescenta ainda: “Como formalmente não eram risco do Finibanco, mas do Rhein Bank, ficavam fora do balanço.”
Para um ex-quadro de topo do Finibanco, “o pivot das operações nem era tanto o Rhein Bank, mas um departamento interno que emitia o papel comercial onde estava uma senhora” que obedecia “ao director financeiro”. Remata: “Quando as emissões chegavam à maturidade e não havia dinheiro para pagar aos clientes, faziam-se novas emissões.”
Hoje, ainda não é claro em que contexto foi desenhado o programa de emissão de obrigações do grupo Vicaima e que pode ter sido usado “para contornar os limites prudenciais” de exposição aos grandes riscos dos accionistas. E que, no caso do Finibanco, eram de 70 milhões.
2006, Horácio Roque
Acabado de ser eleito primeiro-ministro, José Sócrates inaugura um programa de investimentos públicos: TGV, novo aeroporto, PPP. Os interesses da banca e os do Estado reencontram-se em terreno comum. Os banqueiros podiam ter rapidamente virado a página, mas preferiram continuar a beneficiar de um clima de grande facilidade de acesso a liquidez fora de portas e, nesse período e nos anos que se lhe vão seguir, endividam-se em 164 mil milhões de euros para sustentar a expansão do crédito público e privado.
Este cenário explica que os banqueiros portugueses vivam numa “espécie” de euforia, apresentando lucros cada vez mais altos: entre 2004 e 2006, dispararam 135%. E prosseguem ganhos de escala com os pequenos a fazerem-se de grandes.
A 13 de Dezembro, Horácio Roque, dono do Banif, anuncia a compra de 7,7% do Finibanco. Valor: 23,2 milhões. Quando o mercado fecha, a cotação do banco portuense disparara 12%, para 3,38 euros, o que levou Roque a contabilizar em poucas horas uma mais-valia de 1,8 milhões.
Horário Roque e o patriarca Costa Leite tinham uma relação directa. E conversaram. Um dos diálogos é relatado ao PÚBLICO por um colaborador do ex-Banif: “Mas tu queres comprar o banco?” E Roque replicou: “O Artur Fernandes é que está a tratar do investimento que é financeiro, mas se te aborrece mando parar.” Nunca houve zangas, pois as investidas do Banif ajudavam a subir a cotação do Finibanco.
Ainda em 2006, o britânico Barclays bate de porta em porta para comprar balcões. Humberto Costa Leite confirma que recebe uma oferta deste banco inglês de quase quatro euros por acção. Mas o pai recusou. “O Álvaro não era um vendedor e todos os seus investimentos eram projectos próprios”, explica Tavares de Almeida.
2007, Luanda
Os mercados são um negócio, não são caridade. As grandes casas de investimento tinham brincado com dinheiro que não era seu, que é o mesmo que dizer que jogaram com o próprio balanço. Neste ano, o grau de endividamento do emblemático grupo norte-americano Lehman Brothers mais que supera 30 vezes o seu valor real: a dívida contraída garante nova dívida.
No BdP há falta de atenção sobre o que se passa no sistema. E isto não é irrelevante. O então governador Vítor Constâncio – actual vice-governador do Banco Central Europeu – recebe do Montepio uma denúncia sobre movimentos financeiros associados ao BPN/SLN através de contas do Banco Insular em Cabo Verde. Mas, aparentemente, não lhe deu seguimento e, no julgamento do BPN, o Ministério Público fez o reparo: se o BdP tivesse levado a sério a informação, a investigação teria começado mais cedo e evitaria o desaparecimento de documentação importante. E aos contribuintes teria poupado milhões.
Os associados da AMMG reúnem-se no dia 28 de Março. Uns reclamam a revisão dos estatutos e outros uma maior transparência no grupo mutualista. No prazo de 90 dias foi entregue um plano de trabalho, que ficou na gaveta. Mas ninguém contestou.
Quando os mercados dão um trambolhão, no dia 24 de Julho, já a derrocada financeira estava a caminho. Os sinais de perigo irrompem pelos noticiários televisivos: nos últimos três anos, 14 milhões de norte-americanos contraíram créditos à habitação, sete milhões deles fizeram-no com juros a subir 17 vezes.
A meio do Verão, a situação agrava-se. E nas salas de mercado os sinos tocam a rebate. É quando Costa Leite-pai e Costa Leite-filho convocam o administrador Couto Lopes. “Queriam que eu fosse dirigir um banco em Luanda. Perguntei: ‘Já tenho 60 anos e agora querem que eu vá para Angola?’” Álvaro Costa Leite argumentou: “Sabes bem porquê. A situação está complicada e o banco com problemas.”
Em Outubro, Humberto Costa Leite e Couto Lopes viajam para Luanda para assinarem a escritura de constituição do Finibanco Angola, uma parceria com investidores angolanos. A operação era para estar activa daí a um ano.
Em Novembro, na ronda anual de resultados trimestrais, os banqueiros deixam o discurso optimista. O BPI encerra o Fundo Renda Trimestral e assume perdas noutro fundo. Os lucros caem 41% e Fernando Ulrich desabafa: “Em 24 anos de actividade, de todas as crises que vivi, a do mercado hipotecário de alto risco nos EUA é a que mais me preocupa. E a turbulência ainda não acabou.” Também o BCP aparece com resultados a descer 27,5%, mas ainda positivos, de 445 milhões.
É Ricardo Salgado, do BES, e Horácio Roque, do Banif, que surpreendem com lucros a subir, respectivamente, 60%, para 487,8 milhões, e 21,9%, para 64,7 milhões. Aparentemente, no BdP não houve quem se impressionasse.
Em Dezembro, numa conferência sobre Turismo, o empresário André Jordan (que construiu a Quinta do Lago e reabilitou Vilamoura) chama a atenção para a falta de regulação dos mercados e para a “bolha” imobiliária. E conclui: “É o fim de um ciclo económico.” Em consonância, revela que começara já a desinvestir do imobiliário.
2008, Colapso
Uma das competências do BdP é garantir um sistema sólido e gestores idóneos para o exercício da actividade. Isto é a teoria, pois a prática mostra-se diferente. Em 2008, a sucessão de acontecimentos no sector financeiro mundial já dá a ideia de descontrolo. E no primeiro dia de Verão o PÚBLICO faz manchete imputando ao BPN “uma insuficiência de 800 milhões” que o impedia de cumprir os rácios de capital. Estava falido, portanto. O BdP espera por Novembro para o nacionalizar e assumir que era uma fraude.
Álvaro Costa Leite está muito doente, e este período conturbado leva-o a delegar poderes, entre eles de auditoria, a Tavares de Almeida. “[Tavares de Almeida] foi assistente de Direito Penal em Coimbra, é um grande jurista e um teórico que complementava o Álvaro, que era um pragmático. Os dois entendiam-se”, evidencia Couto Lopes. Mas o ex-auditor é também um negociador, um daqueles personagens com todos os traços que permitem perceber como de uma hora para a outra se tornou peça-chave “num” diferendo familiar.
Tinham, entretanto, passado 12 anos desde que Tavares de Almeida e Costa Leite se associaram para comprar os 30 hectares à entrada de Coimbra. Apesar de o sector imobiliário ter atingido vários picos, a urbanização dos terrenos (que tinham passado na totalidade para a esfera da família Tavares de Almeida) continuava no papel.
Costa Leite procura o primo, a quem pergunta se quer vender as Colinas de Vale Meão (hipotecadas ao Finibanco) a uma nova empresa (que se designará Cityprofit), que irá desenvolver os loteamentos. Tavares de Almeida pensa na reforma e aceita, desde que a Vilões, os vendedores, entrassem no lote dos compradores. O novo investimento voltaria a ser financiado pelo Finibanco.
E é assim que a 21 de Agosto os interesses juntam accionistas e administradores do Finibanco: Tavares de Almeida (pela Vilões), Humberto Costa Leite (pela Vicaima), Carlos Martins (pela Martifer), José Pucarinho (pela Prestige). Como gerentes da Cityprofit, são indicados Bessa Monteiro, director financeiro da Vicaima, e Belmiro Couto, da Martifer.
A 13 de Setembro, Horácio Roque continua sentado em cima de 8% do Finibanco, à espera que o resto caia de maduro. E embora manifeste apreensão com o quadro internacional, ao Expresso admite poder aumentar a posição para 20%.
Os acontecimentos seguintes vão tornar os bancos lugares pouco recomendáveis. No dia 15, um “gigante” chamado Lehman Brothers desaba com dívidas superiores a 452 mil milhões. O índice bolsista norte-americano Dow Jones é agora o “Down” Jones. Os mercados têm um acesso de medo e num momento tudo muda.
O ambiente torna-se explosivo e todos arriscam um ataque de nervos, quando se sabe que a Islândia, o país com melhor nível de vida do mundo, tem pés de barro: os três bancos islandeses implodem com activos equivalentes a 800% do PIB e dívidas correspondentes a 10% da riqueza produzida. As poderosas agências de rating anglo-saxónicas caíram em desgraça ao não acertarem nas suas avaliações a empresas e países.
Com a torneira do financiamento interbancário encerrada, os bancos tornam-se uma sombra do que tinham sido. O novo quadro vai, evidentemente, testar a resistência e pôr a nu os desequilíbrios de cada instituição. A dimensão da crise impunha escolhas difíceis, mas, para salvarem o que se afundava, há banqueiros a perder a noção do que é essencial na actividade: a salvaguarda do dinheiro dos clientes.
Em cenários de maior tensão e de risco sistémico, é difícil medir todos os perigos e no BdP há mais perguntas do que respostas. O supervisor tem uma preocupação genuína: impedir que problemas em bancos pequenos originem perturbações graves no sistema. Então, Vítor Constâncio chama os presidentes dos maiores grupos para que “apadrinhem” os mais frágeis.
É por causa dessa indicação que Humberto Costa Leite recebe um telefonema do BPI. Passam-lhe várias ideias pela cabeça, uma delas é que Fernando Ulrich estivesse à procura de investidores. Não era o caso, como conta o próprio Costa Leite, pois Ulrich vinha disponibilizar-se para facultar liquidez ao Finibanco, caso fosse preciso.
“Salve-se quem puder” é o mote para alguns banqueiros. E, todas as vezes que os grupos familiares enfrentam dificuldades para se financiarem ou para acorrerem aos aumentos de capital dos seus bancos, a porta dos clientes abre-se. As investigações que se vão desenvolver anos depois vão tirar conclusões: a ESI – a holding familiar do GES tinha desde 2008 uma dívida oculta de 1300 milhões de euros e a exposição do Banif ao seu accionista, a Rentipar, chegava aos 180 milhões. No Finibanco, a situação é também de desequilíbrio.
As conversações que antecederam a OPA
No Montepio Geral, Silva Lopes deixa a presidência por “razões pessoais” e, estando o gestor Almeida Serra doente, Tomás Correia torna-se a opção natural para a sucessão. E, para ganhar escala, o banco equaciona dois cenários: crescer por via orgânica, menos onerosa; ou por aquisições, o caminho mais rápido mas mais dispendioso. O banco portuense encaixa na dimensão do Montepio. No último trimestre de 2008, os destinos do Finibanco e do Montepio vão entrelaçar-se.
Final de 2008, José Lemos
Uma das qualidades de José Lemos, ex-presidente da Bolsa de Valores de Lisboa e ex-gestor do Central Banco de Investimento, é não ficar parado. Em 2003, fez movimentos na Bolsa que levaram o BdP a castigá-lo, impedindo-o de gerir instituições financeiras durante um certo período. Lemos, que foi também director financeiro da campanha presidencial de Jorge Sampaio, tornou-se intermediário de negócios, orientado para o apoio a fusões e a aquisições através da Lynx (agora ClearWater). É ele que faz as pontes entre Humberto Costa Leite, de quem fora colega de carteira no liceu, e Tomás Correia, que conhecia tão bem que até sabia que o seu cão se chamava Tobias. Dali resultam vários encontros: mais formais quando são no Montepio; mais descontraídos no Finibanco.
Hoje, Costa Leite e Tomás Correia apenas reconhecem que o tema da compra e venda do Finibanco “foi ventilado” entre os dois. Tomás Correia atesta mesmo que isso aconteceu mais de “dois anos antes da OPA” e “nunca houve acordos ou negociações”. E José Lemos alinha: “Em 2008 ou 2009, nunca estive presente em negociações com Costa Leite ou Tomás Correia” e “o meu envolvimento profissional e o da Lynx foi apenas na preparação da resposta do Finibanco à OPA” do Montepio, depois de Julho de 2010. Os documentos, muitos deles confidenciais, dão, no entanto, outra versão dos factos, um lado invisível das movimentações.
Há algum tempo que João Neves, hoje administrador do banco Montepio, trabalhava no grupo. Em 2004, apresentara demissão do BES, na sequência de um processo disciplinar por movimentos financeiros irregulares nos anos 1990. Já lá iam dez anos. Quando Tomás Correia o foi buscar, um associado e membro do conselho geral da AMMG deu o alerta e mostrou reservas. Mas João Neves acabou por se tornar um dos braços direitos do presidente. E, quando é necessário estudar a aquisição do Finibanco, cabe-lhe (e a Pedro Monteiro) dirigir o projecto – no final de 2008 os trabalhos confidenciais avaliam a instituição portuense em torno dos 240 milhões de euros.
A fase inicial das negociações conta com a participação de Álvaro Costa Leite, que se desloca ao Montepio para conversar, pois queria uma solução de futuro para a instituição. Mas como muitos empresários da sua geração, tinha a perspectiva de uma união do capital financeiro ao industrial e resistia a dar luz verde à venda. Os herdeiros têm outro entendimento: a crise impunha mudanças no modelo de negócio. Procuram ainda proteger a área industrial e continuam a sentar-se à mesa com Tomás Correia.
O gabinete de Tavares de Almeida situa-se mesmo à frente do de Humberto Costa Leite. Não fica surpreendido quando se cruza nos corredores com José Lemos e Tomás Correia: “Via-os passar e cumprimentava-os, mas a última coisa que me passava pela cabeça era que os três continuassem a negociar o Finibanco.” Do ex-auditor, Lemos não tem grande opinião e diz que “podemos ter-nos cruzado, sim, mas nunca profissionalmente”.
Já para outro ex-director da instituição portuense, o “tráfego” no sétimo piso das instalações de Lisboa do Finibanco, na Avenida de Berna, era uma prova de que estava a ser delineada uma transacção encadeada por José Lemos. E no Montepio os colaboradores de Tomás Correia preparavam o casamento.
Mais tarde ou mais cedo, a notícia de que os acordos estavam a ser ultimados ia chegar à Rua Júlio Dinis, sede do Finibanco no Porto. O patriarca, “já muito doente, entrou espavorido” no gabinete de Tavares de Almeida: “Eh pá! Eu não esperava isto de ti. Tu, que és o auditor desta casa, e o Humberto andam a vender o banco?” O jurista evoca o que disse: “Calma, calma. Eu e o Humberto não andamos a vender o banco.” “Então, o que andam o Lemos e o Tomás Correia a fazer em Lisboa durante tardes inteiras?” Tavares de Almeida diz que respondeu: “Eu não sou o auditor dos donos do banco e desconheço. Como é que o seu filho pode pensar em vender o banco? Se o fizer, ainda fica a dever dinheiro ao comprador, pois a dívida é enorme e está fora do balanço.”
Antes de sair da sala, o patriarca pediu-lhe para, “na qualidade de auditor interno, lhe dar uma opinião exacta” sobre o endividamento total do grupo. Queria saber qual era a dívida directa da Vicaima, bem como o valor das obrigações emitidas por sociedades do grupo e colocadas junto dos clientes do Finibanco.
Ora, Tavares de Almeida tinha o perfil que reconhecemos noutros auditores do sector: era “ceguinho”, não fazia ondas, dava conselhos. E declara-se surpreendido com “o cálculo global da dívida invisível” apurada pelos colaboradores. O número que consta da documentação enviada ao Ministério Público – “da ordem dos 400 milhões”. O limite de créditos que o Finibanco podia dar à Vicaima rondava os 70 milhões.
No final da primeira semana de Novembro, já circulavam entre advogados e clientes as minutas dos acordos confidenciais com números ajustados à data de 30 de Setembro de 2008. A Associação Mutualista compromete-se a manter sob reserva toda a informação relativa à carteira de créditos em risco no banco portuense.
Os contactos na advocacia estão cada vez mais limitados ao essencial e muito se processa por troca de “cartas” electrónicas entre gabinetes e clientes. Para fechar os acordos nos pontos confidenciais, António Soares, do gabinete Linklaters, apoia os vendedores do Finibanco; enquanto António Gaio, da AFMA, representa a compradora, a associação. Os dois advogados remeteram-se “ao sigilo profissional”.
E é então que o patriarca chama mais uma vez Tavares de Almeida, para saber o seu juízo sobre António Soares: “É bom, mas quem o conhece é o José Nunes Pereira [ex-presidente da CMVM] e vou falar com ele.” Nunes Pereira, por seu turno, diz ao PÚBLICO que não se recorda do episódio, mas concede que, sendo a sua relação “com Tavares de Almeida de longa data, torna a pergunta previsível e admissível”. E “se ocorreu, então a minha resposta teria sido positiva”, pois António Soares fez parte da primeira comissão directiva da CMVM e foi jurista da Bolsa: “É um homem sério.”
Antes da reunião decisiva no Montepio, Humberto Costa Leite e Tavares de Almeida deslocam-se à Linklaters. Ao longo da reunião com António Soares, o administrador-auditor colocou-se na posição de ouvinte e não mostrou discordâncias, o que agora justifica “por estar a cumprir instruções do Álvaro”.
Como em qualquer empresa, os processos de sucessão são sempre delicados, pois põem em evidência divergências entre gerações. No Finibanco, as tensões internas eram mais profundas do que pareciam à primeira vista.
Durante o fim-de-semana, Tavares de Almeida recebe novo telefonema do patriarca: “Se o banco é para ser vendido, é pela holding, que é a dona. O Humberto vai lá, mas não tem poderes sozinho, e eu estou doente e não posso ir a Lisboa e tu vais representar-me e não assinas.” Assim acontecerá.
Ao dirigir-se para a sede da AMMG, Tavares de Almeida não partilha a viagem com o primo. “Como já levava instruções contrárias ao entendimento confidencial que se ia celebrar, optei por ir no meu carro, com o meu condutor.”
Mesmo os amigos mais chegados de Tavares de Almeida concordarão que a discrição não é o seu ponto forte e no seu figurino habitual, óculos escuros, pulseiras de ouro, gravata e camisa de tons garridos, deu entrada no sétimo piso do número 219 da Rua Áurea.
É provável que não houvesse a expectativa de se poder assistir a um grande espectáculo e o tom era ainda de descontracção. Na presença da administração da AMMG e de outros membros da equipa da casa, Tavares de Almeida pede a palavra em nome de Álvaro Costa Leite: “Não vale a pena estarem a recolher assinaturas pois eu não assino.” O banqueiro do Montepio, sentado entre os dois primos, protesta: “Opõe-se porquê?” “Porque o accionista maioritário [com 60% do Finibanco] não tem intenção de vender.”
Está visto que ninguém ali conhecia as relações familiares e fez-se um silêncio sepulcral. Relata o ainda auditor: “O Tomás Correia comentou que tinha andado a falar com a pessoa errada e que, em vez de negociar com o Humberto, devia ter negociado comigo. Mas eu também era a pessoa errada e perguntei se ele achava que eu estava ali com autonomia.” E saiu da sala dispensando-se de ir ao almoço que se seguiu.
Uma coisa é ter de enfrentar um primo mais novo, outra diferente é encarar o banqueiro Tomás Correia. E há uma versão dos acontecimentos mais áspera: “O Tomás Correia disse-lhe que não lhe reconhecia poderes de representação e pô-lo fora da sala.” Todos concordam num ponto: a reunião foi rápida e com atritos e no final o ambiente era de cortar à faca. Mas, para os dois banqueiros ali presentes, Humberto Costa Leite e Tomás Correia, a operação ia ser feita.
Nos meses que antecederam a compra do Finibanco pelo MG, há muita documentação reservada trocada entre gestores e advogados dos dois lados. No quadro da avaliação prévia (due-dilligence) ao Finibanco, encomendada à Deloitte Porto, foi requerido carimbo de confidencialidade a Gabriel Torres (Finibanco), João Neves, Pedro Monteiro, Armando Esteves, os três últimos do grupo mutualista.
2009, Espera
Os filhos de Costa Leite vão respeitar a vontade do pai e o Finibanco não passará para o MG antes da sua morte. Mas Álvaro Costa Leite sabe que o banco teria de ter uma solução e solicitou a Tavares de Almeida nova avaliação. E durante a viagem oficial a Portugal do Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, dá-se o convívio.
Na noite de 10 de Fevereiro, uma terça-feira, Tavares de Almeida é visto, a seguir ao jantar, à conversa no Hotel Ritz com Afonso Assunção dos Anjos, o então ministro das Relações Exteriores de Angola.
Dias depois, o administrador-auditor dirige-se para a zona das Amoreiras, em Lisboa, para abordar o tema com o banqueiro luso-angolano Carlos Silva, à frente do Banco Atlântico e accionista do BCP: “A ideia não era vender o banco, mas auscultar alguém credível pelas relações de amizade, pois queríamos saber muito seriamente com que números podíamos contar e em que moldes a transacção se podia fazer.”
Para o círculo próximo de Humberto Costa Leite, há uma outra história a acautelar: “O Tavares de Almeida não queria vender o Finibanco por ter muitas dívidas e, como se considera luso-angolano, convenceu o Álvaro a ir procurar outros parceiros, como alternativa à AMMG.”
A meio do ano, os PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) enfrentam já uma escalada sem precedentes dos juros da dívida pública. A crise da dívida soberana alastrara à economia.
Quebrara-se, entretanto, uma longa tradição de “excesso” de confiança em torno da banca e dos seus sonolentos supervisores. Em Portugal, o diagnóstico é grave: investidores descapitalizados, excesso de exposição ao imobiliário, forte endividamento externo. O rácio de transformação médio da banca portuguesa aproxima-se dos 180%, o que significa que emprestam mais dinheiro do que aquele que captam aos clientes.
Em Vale de Cambra, a bomba-relógio já faz tiquetaque. “Em conselho de administração, fomos informados de que um banco internacional não aceitara a garantia do BES a uma operação de securitização (liquidez) do Finibanco que vencia em Junho e, quando procurámos substituí-la por uma da Caixa Geral de Depósitos, também não foi aceite”, recorda Humberto Costa Leite.
A 29 de Junho, ao PÚBLICO, este banqueiro constata “dificuldades em recorrer ao funding [fundos de longo prazo] para crescer rapidamente”. Ainda assim, o Finibanco aparece a elevar o capital em 75 milhões de euros, subscrito no essencial por sociedades da esfera do grupo Vicaima financiadas pelo próprio Finibanco ou com crédito do BES.
Com a integração do BPN na CGD (que tinha a Fidelidade), a Real Seguros (ex-BPN) perde a rede de balcões onde vendia os produtos, o que coloca um problema a Fernando Nogueira, actual presidente da Lusitânia, na altura à frente do regulador, o Instituto de Seguros de Portugal: assegurar a sobrevivência da seguradora.
A 21 de Julho, o grupo MG aparece a disputar 85% da Real Seguros. Horas depois, também Humberto Costa Leite não descarta “a possibilidade”. Mas é Tomás Correia quem vai investir 42,5 milhões (pagou 7,5 milhões e injectou 35 milhões) o que ainda hoje se reflecte nas contas da Lusitânia, que absorveu a Real Seguros, que tem prejuízos acumulados nos últimos três anos de 70 milhões.
A 3 de Novembro, o empresário-banqueiro Álvaro Costa Leite morre, com 77 anos. A passagem do Finibanco para o MG já está em marcha.
Há sinais de desavenças entre mutualistas e eleições agendadas para Dezembro. A grande novidade das listas candidatas aos órgãos de gestão era Álvaro Dâmaso, antigo presidente da Bolsa de Lisboa e da CMVM.
Os tempos de facilidades na banca tinham passado e Rafael Mora e Nuno Vasconcelos, donos da Ongoing, andam curtos de capital e vão ter com Tomás Correia a pedir ajuda. Correia põe os mutualistas a financiarem um fundo de alto risco da Ongoing, com sede no Luxemburgo, em 40 milhões de euros. Mas um dos administradores do grupo Montepio, Almeida Serra, questiona a decisão. E com razão. No fecho das contas de 2009, o passivo da Ongoing já totalizava 831 milhões. Estava à beira do colapso.
Este foi um período áureo do MG, quando os clientes bancários eram convidados a subscrever produtos financeiros mutualistas, o que dá grande fôlego à instituição. Data desse tempo a disponibilidade de Tomás Correia para entrar numa consolidação, pois tinha liquidez. Sem mencionar o Finibanco, admite interesse no BPN, que o Estado colocara à venda por 180 milhões. E vai revelar que fez uma oferta de 150 milhões pelo BPN.
À medida que o fim do ano se aproxima, muitas transacções imobiliárias aceleram para beneficiar do regime simplificado de isenção de IMT (imposto municipal sobre transmissões) que, nesse ano, é eliminado.
E, horas antes da passagem do ano, Tavares de Almeida, em representação da Vilões, e o director financeiro da Vicaima, Manuel Bessa Monteiro, na qualidade de gerente da Cityprofit, dirigem-se para o Porto para assinarem a escritura pública de venda e de compra dos terrenos de Vale Meão.
A notária Maria do Rosário, em tempos casada com Tavares de Almeida, faz a pergunta que se impõe: “O comprador já pagou?” “Está aqui”, respondeu Bessa Monteiro e exibe um cheque do Finibanco de uma conta da Cityprofit no valor de 32,4 milhões. E entrega-o a Tavares de Almeida, que deu por quitado o pagamento.
2010, A OPA
Janeiro
O dia 1 calha a uma sexta-feira, é feriado. E quando na segunda-feira, 4 de Janeiro, o jurista se prepara para ir depositar o cheque, recebe um telefonema de Bessa Monteiro “a solicitar que não o fizesse no imediato, pois o crédito ainda não tinha sido aprovado”.
Como o dinheiro de uma empresa não é elástico e, por vezes, não existe disponibilidade na caixa, o telefonema é recebido com naturalidade: “Havia confiança entre nós e eu sabia que o crédito estava para aprovação e ia ter cobertura.”
O pedido leva a pensar em duas hipóteses: ou a Cityprofit tem intenção de pagar; ou não tem. Mas, diante da perspectiva de que irá receber 32,4 milhões, o vendedor não faz a pergunta. Até porque os sócios da Cityprofit não podem ser mais amigos, todos se sentam à mesa do Finibanco.
Para o advogado de Tavares de Almeida, Álvaro Dias, a partir dali começa “um teatro de sombras”. Um jogo que interessa, por enquanto, a todos.
A 28 de Janeiro, António Oliveira, ex-treinador da Selecção Nacional de Futebol, informa o mercado que detém 5% do Finibanco. Não é possível saber se Oliveira já prevê a venda. O que se sabe é que se desentendera com o irmão, Joaquim, e da ruptura resultaram mais acções do Futebol Clube do Porto (FCP) e do Finibanco. E não é segredo que o treinador tem dois desejos: ser presidente do FCP e sentar-se na administração do banco. O último vai cumprir.
Na altura, já João Neves e Pedro Monteiro afinam os estudos sobre a compra do Finibanco, mas agora o caminho é por OPA, no modelo de trespasse de activos e de passivos. E com pressupostos: o “opado” deve apresentar resultados positivos; o título deve sofrer valorização; o MG terá de ter o controlo. Para sustentar o preço que vai pagar, Tomás Correia encomenda uma carta de conforto a uma instituição internacional.
Em defesa da operação, Tomás Correia alega ganhos de escala e outro benefício: condições para a família Costa Leite poder liquidar as suas dívidas ao Montepio, à volta de 200 milhões.
Mas há também problemas a resolver abordados em conversas. Um dos riscos é que o Finibanco não reporta aos supervisores todas as obrigações emitidas por partes relacionadas e colocadas aos seus balcões. O outro, o excesso de endividamento da Vicaima, visível no balanço.
O depoimento de um membro da equipa de Tomás Correia que acompanhou os trabalhos refere que Bessa Monteiro, na qualidade de director financeiro da Vicaima, se deslocou ao Montepio para tratar dos temas. E meses antes da OPA, o Montepio concedeu um crédito à volta de 50 milhões a uma sociedade da órbita Costa Leite, que foi usada para liquidar parte do excesso da dívida directa da Vicaima ao Finibanco reportado oficialmente. Mas, na prática, tudo se mantinha igual.
Enquanto tudo isto se passa, nos bastidores desenrola-se o negócio imobiliário de Coimbra de padrão devidamente registado: o cheque de 32,4 milhões mantém-se sem provisão e o crédito do Finibanco sem aprovação. Então, o comprador dos terrenos, a Cityprofit, foi propor à Vilões uma nova modalidade de pagamento.
Fevereiro
No dia 1, o “Acordo de Vale Meão” fecha o acerto de contas com entrega futura à Vilões de 22 milhões em numerário, logo que o crédito seja autorizado. E reconhece-se ainda a devolução a esta empresa de lotes avaliados em 10 milhões, que Tavares de Almeida dá logo por liquidados. E o cheque inicial de 32,4 milhões é rasgado.
Sete dias depois, o Finibanco comunica por escrito ao cliente Cityprofit que o financiamento, com hipoteca das Colinas de Vale Meão, recebera luz verde. Mas o crédito total de 34 milhões (32,4 milhões para pagar à Vilões) teria de ser utilizado mediante condições. E do valor total, o Finibanco disponibiliza, no imediato, 13 milhões. Costa Leite dá instruções para se subtrair a este valor 11.630.136 euros, que considera serem as dívidas do universo empresarial de Tavares de Almeida ao banco. Este refuta-as, por considerar o valor abusivo: “Era próximo de oito a nove vezes o crédito real e não me foi dada hipótese de o contestar.” No entanto, Humberto Costa Leite contrapõe o óbvio: “Fiz cumprir o contrato e a lei, executei a dívida.”
Hoje, Tavares de Almeida socorre-se dos juros de mora como munição contra o primo: “Serviram para o Humberto melhorar, ao longo de vários anos, os resultados do banco.”
A 23 de Fevereiro, o Finibanco divulga as contas de 2009 com lucros de 9,4 milhões, uma inversão face aos prejuízos de 67 milhões de 2008. No quartel-general do Montepio há alguém a sorrir.
O administrador do MG, e ex-presidente da Bolsa e da CMVM, ficou incumbido de garantir que o plano B, ou seja, a OPA, era aceite pelos reguladores. Álvaro Dâmaso e o advogado António Gaio são recebidos por três directores do departamento de supervisão do BdP, onde uma fonte explica: “A nossa preocupação foi garantir que os activos bancários que a Associação Mutualista ia adquirir transitavam correctamente para o banco Montepio, de modo a serem supervisionados.” “E, sim, é verdade, existia consciência do capital circular, mas não na dimensão que se veio mais tarde a detectar.” O BdP tinha desenvolvido duas inspecções ao Finibanco, em 2008 e em 2009.
Para Tomás Correia, “a OPA foi escrutinada pelas entidades que a tinham de escrutinar, totalmente transparente, como todas as operações que dirigi em conjunto com a minha equipa de gestão”. E Dâmaso defende que uma OPA é a solução “limpa”: “O comprador não pode fazer uma pré-avaliação e o preço é suportado nos relatórios de mercado.”
Há outra maneira de olhar para o problema: uma OPA liberta o comprador de responsabilidades por eventuais “esqueletos” que se venham a encontrar no balanço do adquirido [como dívida oculta] e que, ao serem detectados, devem ser no imediato comunicados às autoridades.
Junho
No dia 8 há um encontro entre os dois banqueiros, como confirma Tomás Correia: “Conheço há muito tempo o engenheiro Humberto e tive, de facto, um contacto com ele antes da OPA para saber qual era a disponibilidade da família para vender e seria, até, deselegante não o fazer, pois podia ser interpretada como uma iniciativa hostil.” Recusa “negociações de bastidores, o que seria ilegal”, ou “acordos para resolver os problemas de dívida da Vicaima.”
Julho
Estamos quase no final do mês, 29. Após três dias com a cotação do Finibanco a disparar 22%, a CMVM suspende a negociação em bolsa, o título fecha a 1,48 euros. O que avaliava o banco em 259 milhões. Pouco depois, “fonte conhecedora do processo” dizia à Lusa que o Montepio estava no encalce do Finibanco.
E, finalmente, a 30 de Julho, pelas 16h00, os membros do conselho geral da AMMG são chamados à Rua Áurea para tomar uma decisão inédita na sua história de 170 anos: lançar a OPA. Na sala Costa Leal, Tomás Correia dá os detalhes da operação antes de a oficializar. E nunca fala em negociações prévias com o accionista de controlo, a Vicaima.
As discordâncias entre os presentes ficam-se pelo preço, que consideram alto: um prémio aos accionistas do Finibanco de 31,76%, face ao último valor de mercado, que, recorde-se estava nos 1,48 euros por acção, o que o inflaciona para 1,95 euros por acção. O MG ia pagar pelo Finibanco 341 milhões, mais 100 milhões do que os cerca de 240 admitidos ano e meio antes.
Para um antigo administrador que apoiou Tomás Correia, “foi tudo estranho, pois ele interveio para explicar o racional da OPA e não apresentou papéis. E lutou pelo preço que sustenta na carta de conforto de uma empresa internacional, o que foi importante para eu aprovar”.
Mas há uma voz no conselho geral do Montepio que desalinha das restantes: a do economista Eugénio Rosa. “Depois de, na véspera, ter sabido pelos canais de informação, fui olhar para o balanço do Finibanco e reparei que os activos representavam menos de 20% dos nossos, mas os custos operacionais equivaliam a mais de 50%. Era à partida um mau negócio.”
Às 19h31, o aviso da OPA foi publicado no site da CMVM e é omisso quanto a eventuais entendimentos prévios ou avaliações ao Finibanco. Em ofertas amigáveis, e sobretudo quando há um grande accionista (a Vicaima tinha 63%), são habituais e legais as negociações confidenciais prévias, mas devem constar da documentação ao mercado. E se esses entendimentos não são referidos, em regra, há uma tradução: a existência de cláusulas confidenciais que dão contrapartidas adicionais ao vendedor.
Todo o processo impõe nova pergunta: por que razão não dispararam as campainhas no BdP? Um alto quadro do BdP explica: “Não interferimos entre privados, avaliamos a idoneidade do comprador e as consequências no adquirente. Se o preço é alto ou baixo, é problema de quem paga.” A CMVM quer saber se houve acordos de bastidores o que é na altura negado por Tomás Correia e Costa Leite, posição que hoje sustentam.
A partir dali sempre que os media levantam dúvidas sobre os contornos da operação, os supervisores enviam a resposta: “Estamos a acompanhar.” O que tem uma interpretação: não fazemos a mais pequena ideia, mas vamos ver o que se passa.
Tomás Correia aconselha “a analisar as operações à luz da lei e dos regulamentos existentes no momento em que elas são realizadas e não ao abrigo de novas leis, regulamentos e directivas comunitárias que, entretanto, surgiram”. E mantém os méritos da OPA, “que trouxe mais-valias, permitiu-nos alargar as operações para outros sectores e geografias económicas e, se fosse hoje, com uma ou duas correcções, tomaria precisamente a mesma decisão”.
Agosto
“A operação foi profundamente estudada” e “estimam-se sinergias de 180 milhões no prazo de 18 meses”, avança Tomás Correia à Lusa no dia 2. Mas a agência de rating Fitch vai colocar o Montepio em avaliação negativa pelo “ambiente difícil”, ainda que admita que, “no longo prazo”, há benefícios.
A 16 de Agosto, quando o Estado volta a colocar à venda o BPN, sujeito a um encaixe mínimo de 180 milhões, o MG foi outra vez levantar o caderno de encargos.
Semanas depois de ser conhecida a OPA, Couto Lopes procurou o ainda presidente do Finibanco, a quem sugere que não venda o Finibanco Angola, onde ganha dinheiro. Mas “o Humberto explicou que o Correia não dispensava [o Finibanco Angola] e que era uma das razões para comprar o banco”.
No final de Agosto, a administração do banco portuense aceita a OPA e nem pede subida de preço. E o Finibanco divulga novamente lucros semestrais, a subirem 544%, de 206 mil euros para 1,3 milhões de euros. Três meses depois, a oferta conhece o sucesso.
Novembro
No dia 29, a Vicaima encaixa 216 milhões de euros; o Banif 33,6 milhões; António Oliveira 16,9 milhões; José Pucarinho 6,9 milhões.
Antes de o ano terminar, no conselho de crédito do Montepio, regista-se uma troca de palavras a propósito de um crédito de cerca de 80 milhões ao construtor José Guilherme, cliente da instituição portuguesa e do Finibanco Angola, que acabou por ser autorizado. Recorde-se que este é o mesmo construtor que deu o “presente” de 14 milhões a Ricardo Salgado. Não há crises financeiras graves sem impacto na economia e, oito meses depois do resgate à Grécia, a Irlanda cai. Angela Merkel faz a cura do euro com doses elevadas de autoridade, com consequências, uma delas nos bancos nacionais, que vão começar a apanhar os cacos dos pecados da década de 2000.
2011, Várias irregularidades
O início do ano vai ficar como um dos mais difíceis de sempre. Em São Bento, a finança e a economia vão atreladas a um avião sem piloto no cockpit. E a falta de crescimento da economia não abre boas perspectivas para os investidores.
A 2 de Janeiro, a CMVM detecta indícios de abuso de informação privilegiada no quadro da OPA do Montepio ao Finibanco, que associa, entre outros, a investimentos de Humberto Costa Leite e de Bessa Monteiro dias antes da operação. E participa ao Ministério Público. Alguns dos visados são obrigados a devolver as mais-valias e a contribuírem para obras sociais.
No decurso de 2011, Tavares de Almeida mantém-se nos corpos sociais de sociedades agora na esfera do Montepio SGPS e evoca o que diz ter dito a Álvaro Dâmaso [que, por seu turno, se distancia]: “Tenho curiosidade em saber como é que o Correia vai assumir os cerca de 400 milhões de dívida da Vicaima ao Finibanco oculta das contas, pois não consta da negociação oficial.”
“A soma é claramente exagerada”, corrige um ex-gestor do Montepio: a verba por contabilizar “devia andar à volta dos 130 milhões”, ainda assim, 50 milhões acima dos limites prudenciais ditados pelo BdP.
Já Tomás Correia relativiza e alega que da sua parte não houve falha de comunicação: “A quantia estava registada como crédito do Finibanco a instituições financeiras e dissemos à família Costa Leite que teria de a regularizar, o que ela fez. Pagaram-nos tudo com património próprio.” E os 400 milhões? “Resultam de operações de funding normais. Ainda agora o MG emitiu 200 milhões de títulos nos mercados internacionais”, informa.
Não faltam, porém, evidências de que no grupo mutualista existia, ao mais alto nível, uma preocupação com este tema. E não era pequena. Um director relata que ouviu “Tomás Correia dar instruções para se resolver internamente o problema de incumprimento do reporte; deu também orientações para se lançarem produtos financeiros com boas remunerações para absorver as obrigações da Vicaima.”
Um ex-cliente do Finibanco que, entretanto, se tornou mutualista corrobora: “No final da maturidade dos títulos que subscrevi aos balcões [Finibanco], fui pedir o resgate e foi-me proposto por um gerente do MG que transferisse a aplicação para um produto financeiro da Associação mais atractivo o que, aliás, até fiz.”
Por enquanto, os associados da AMMG não fazem a mínima ideia de que a bola já está a rolar: à medida que a dívida-fantasma dos accionistas do Finibanco vence, é exportada para a esfera da AMMG, sem fiscalização de qualquer entidade.
O principal receptor da dívida dita invisível foi o produto Capitais de Reforma com prazo certo, que até 2008 recebera subscrições de cerca de 100 milhões, e, à medida que o prazo do reembolso das obrigações da Vicaima se aproxima, o valor do produto dispara: em 2012 e 2013, cresceu para cima de 500 milhões. A transferência de risco para um universo de 650 mil associados poderia ter suscitado desconfianças aos supervisores, o que parece não ter acontecido.
Chegados a Abril, José Sócrates deixa de ter condições para continuar a varrer o lixo para debaixo do tapete à espera que a crise lhe passe por cima. A deterioração das finanças públicas leva o país a uma espiral destrutiva. Os juros da dívida soberana a dez anos atingem novos máximos e ultrapassam os 11%. E, a 6 de Abril, Portugal pede ajuda à troika.
No contexto da intervenção externa, a banca é obrigada a revelar todos os desequilíbrios e de uma só vez. Nos anos seguintes, o grupo Montepio contabiliza cerca de 900 milhões de imparidades.
Até que ponto Tomás Correia está consciente das mudanças estruturais no sector, não se sabe. Mas já tem planos para novas aquisições. E a 20 de Julho volta a mostrar vontade de comprar parte dos activos do BPN, como balcões e meios de pagamento. Ofereceu entre 35 e 50 milhões. O BPN seria vendido na totalidade ao BIC por 40 milhões, já no Governo de Passos Coelho.
A deterioração das carteiras de imobiliário dos bancos estava a gerar algum alvoroço. E quando os serviços da Caixa Agrícola, com 100% do fundo CA Imobiliário, convidam o Montepio a tomar posição, Tomás Correia vê ali uma oportunidade de retirar uma chaga do balanço. E vai falar com o presidente da Caixa Agrícola, João Costa Pinto, para saber se este concorda. Há duas versões: Tomás Correia ouviu-o dizer que sim, mas Costa Pinto (hoje no Banco de Portugal) não confirma a resposta.
Entre Novembro e Dezembro, o CA Imobiliário adquire ao Montepio 1830 imóveis por 220 milhões, contabilizados nas contas do grupo mutualista em 148,6 milhões. A operação traduz-se, para o Montepio, numa “reversão de imparidades” de 24,4 milhões “e numa mais-valia” de quase 36 milhões. O Montepio assume 40% do fundo, que se mantinha no perímetro da Caixa Agrícola. A decisão parecia perfeita. Quase perfeita.
2012, Polémicas
Quando a 8 de Janeiro o actual presidente da Caixa Agrícola, Licínio Pina (na altura administrador), olha para as contas do CA Imobiliário, apanha um susto: “Deparei-me com a entrada dos imóveis no fundo, com total desconhecimento meu, pois o movimento teria de ser aprovado pela administração e não foi.” E inquire Costa Pinto, que “garante que não foi informado nem validou a transacção.”
Então, Licínio Pina analisa a carteira de imóveis, como nos conta agora. E ao ler o processo da antiga fábrica de lanifícios de Seia, sua terra natal, tropeça num pormenor. Mas muito intrigante: em Fevereiro de 2011, a unidade industrial já tinha sido vendida por 1,3 milhões a um cidadão sírio. E o Montepio voltava a transaccionar o imóvel agora com o fundo e por seis milhões, mais 4,7 milhões.
À medida que vai puxando o cordão, Licínio Pina encontra outras surpresas: um prédio na Figueira da Foz que abanava com as marés, mas mesmo assim estava ocupado; um imóvel sem valor na Covilhã e que a autarquia decidira até demolir. E todos a passarem a bom preço para o fundo.
O tema é, evidentemente, levantado junto de Tomás Correia numa linguagem crua. E a guerra estala entre instituições, o que exige a mediação da CMVM e do BdP. E advogados dos dois lados. António Gaio, da AMMG, e Daniel Proença de Carvalho, da CCAM, encontraram-se nos corredores dos supervisores.
Tomás Correia vai alegar que a sobreavaliação dos 1830 imóveis vendidos à Caixa Agrícola resultou de um cálculo de avaliadores independentes contratados pela gestora de activos Square.
Em Março, a CMVM ordena uma reavaliação presencial dos activos e, nalguns casos, o valor caiu 80%. “O resultado foi um prejuízo de 50 milhões para a Caixa de Crédito [que consolida o fundo] e um proveito de mais de 60 milhões para o Montepio”, conclui Licínio Pina. O Montepio é obrigado a readquirir os imóveis que tinha transferido para o CA Imobiliário.
Tempo depois da OPA do MG ao Finibanco, em Angola ocorre um episódio que dá origem a uma troca de palavras azedas entre Lisboa e Luanda, devidamente documentadas. Couto Lopes diz que, “por cortesia”, informou Tomás Correia “da relação de prémios a distribuir aos cerca de 20 trabalhadores” da instituição angolana. O banqueiro “disse-me que concordava desde que o António Pontes [o administrador na altura destacado para Luanda] também estivesse”. E Couto Lopes lembra: “Não falarei com o Pontes, que acabou de chegar e não conhece ninguém.” De Lisboa, recebe um recado: “Ou obedece ou substituo-o.” A reacção não se fez esperar: “Faça o que entender, pois não cumprirei.” E Tomás Correia deu por terminado o trabalho de Couto Lopes no Finibanco Angola. O administrador ainda lhe pergunta: “E o que dizem os outros accionistas?” Resposta: “Estão de acordo.”
Ao abordar os investidores locais, Couto Lopes conta que estes lhe explicaram “que o Correia lhes colocou o problema noutros termos: ‘O Lopes quer ir embora e eu vou nomear o Pontes’.” O grupo acabou por vender 30% das suas acções ao Montepio, que assumiu 80% do capital do Finibanco Angola.
Já no Porto, Couto Lopes vai ter com Costa Leite para reclamar o prémio anual de 120 mil dólares, o que ex-presidente do Finibanco confirma ao PÚBLICO. Mas, acrescenta, “o Tomás Correia disse-me que Couto Lopes assumiu um comportamento incorrecto e não o pagou”.
Um ano antes, quando o mediático ex-presidente do Santander Totta, António Horta Osório, foi para o Lloyds Bank, o lugar de cônsul honorário de Singapura em Portugal ficou vago. Algum tempo depois, Tomás Correia é convidado para o substituir. E o consulado passa a funcionar na Rua Áurea, sede do Montepio.
Asim se vê que a cidade-Estado de Singapura não é um local qualquer, pois é trajecto de muitos banqueiros e de muitos movimentos financeiros. E onde há "campo” para se negociarem financiamentos, nomeadamente, por via de emissões obrigacionistas.
Com alguma simultaneidade no tempo, Filipe Costa Leite, filho de Humberto Costa Leite, e que trabalhava na área da banca de investimento, estaciona em Singapura para exercer funções no sector de private banking no Credit Suisse. Um banco que vai ficar, em 2014, no radar das averiguações ao GES/BES por desenhar títulos tóxicos para financiar movimentos sem controlo dos supervisores.
A 3 de Agosto de 2012, João Simeão – mutualista, ex-apoiante de Tomás Correia – analisa os Relatórios e Contas do grupo e coloca no seu blogue Transparência e Escrutínio: “O Finibanco custa ao Montepio mais de 900 milhões: 341 milhões da OPA, mais 300 milhões em Obrigações e Juros e mais de 200 milhões de euros de desvalorização de capital.” Mas, no final de Agosto, o blogue será extinto “através de um acto de pirataria”. “Roubaram-me a administração, impedindo-me de lhe aceder.” E João Simeão, ex-director adjunto do Montepio, acabou “sem actividade, com perda dos extras atribuídos à minha categoria profissional”. A iniciativa traz para o domínio público desconfianças internas sobre o racional OPA, que se vão alargar ainda ao modo singular como Tomás Correia geria a instituição. Senão vejamos: a 24 de Novembro, 15 dias antes das eleições para os órgãos sociais do Montepio, chega ao BdP uma denúncia de Couto Lopes sobre “factos anómalos ocorridos no Finibanco Angola e a pedir a intervenção do supervisor.
Três dias depois, o Correio da Manhã chama à capa “Banqueiro escapa ao IMI de vivenda”. Isto para dizer que Tomás Correia tem uma moradia “de luxo em Tróia” e que por inacção da Câmara Municipal de Grândola, então liderada por Carlos Beato, “o imóvel se encontra registado nas Finanças como terreno para construção”. O presidente do Montepio vem esclarecer: “O meu solicitador vai ver se cumpriu ou não com a diligência a que estava obrigado.” “Eu sou responsável perante as Finanças. Pago tudo, com todo o gosto.”
Entretanto, o roteiro da novela desvia-se para o negócio imobiliário de Coimbra, que continuava sem desfecho à vista mas à beira de envolver o grupo mutualista. Por carta, a nova gerente da Cityprofit, Inês Serra, dirige um pedido ao Montepio a solicitar a libertação de fundos na sua conta para pagar a dívida que a Vilões reclamava, agora de 18,5 milhões. Isto por estar a equacionar levar à assembleia geral uma proposta de dação ou venda ao Montepio das Colinas de Vale Meão, que incluía os lotes devolvidos por acordo à Vilões, mas nunca entregues.
O mês de Dezembro complica-se. Segunda-feira, 3. “Por conveniência de espaço”, a assembleia geral é convocada para a sede da Martifer, em Oliveira de Frades. O incidente desencadeia-se durante a manhã, quando Tavares de Almeida se começa a ver como figura decorativa: “Fui de boa-fé, mas quando chego e vejo que não está lá nem o Humberto, nem o Martins, nem o Pucarinho, desconfiei.” Todos tinham enviado delegados com cartas mandatárias.
Depois de, entre outros pontos, lembrar as recusas da autarquia de Coimbra em aprovar a urbanização das Colinas de Vale Meão e de salientar que os lotes se destinavam à revenda, o delegado da Vicaima, Bessa Monteiro, sugere que se vote a cedência integral à AMMG, ou “a outra entidade indicada, pelo preço equivalente ao valor total em dívida”. E a situação piora, pois Tavares de Almeida é impedido de votar, por não estar devidamente mandatado. Então, dita para a acta: “Vendem-se bens em parte alheios e em parte por pagar.”
Já cá fora, ao entrar no carro, o jurista telefona ao administrador do Montepio Álvaro Dâmaso, a quem dá conta de que o banco vai receber activos da Cityprofit que não pertencem à sociedade. O acesso a Dâmaso resulta do facto de Tavares de Almeida se manter nos órgãos sociais de empresas que passaram para o MG.
Terça-feira, 4 de Dezembro. Por volta das 13h00, três homens estão sentados a almoçar no restaurante Dom Sancho, em Lisboa. Tavares de Almeida e Álvaro Dâmaso, que aparece acompanhado de Pedro Pires, o responsável no banco Montepio pela área das empresas. O encontro serve para o jurista relatar o resultado da reunião de Oliveira de Frades, quando, na sua óptica, foi passado o rolo compressor por cima do acordo imobiliário. Agora, o Montepio teria uma palavra a dizer.
“O Dâmaso concordou que o que se passara não fazia sentido e sugeriu-me que escrevesse uma carta ao Montepio a expor a situação e com uma solução. E garantiu que a proposta seria levada ao conselho de administração”, evoca o ex-auditor.
A 7 de Dezembro, na sexta-feira, os associados reconduzem Tomás Correia na liderança, com quase 73% dos votos. Na administração, ao lado do banqueiro, senta-se Carlos Beato, que deixara a presidência da autarquia de Grândola. E novamente o BdP nada diz.
Na sexta-feira, 28 de Dezembro, está programada a escritura de passagem dos terrenos de Vale Meão para o Montepio. O local seria o cartório da ex-mulher de Tavares de Almeida no Porto. Não aparece ninguém pois, em cima da hora, a escritura passou para a Casa Pronta (serviços públicos que facilitam transacções ou dações em pagamentos de imóveis) em Vale de Cambra, o quartel-general da Vicaima. Com a justificação de que o Montepio (Finimóveis) tem outros contratos a celebrar no local. Na Casa Pronta, procede-se em simultâneo à escritura e ao registo das propriedades e, em matéria de aquisições, prevalece o princípio da prioridade cronológica, ou seja, o activo pertence ao primeiro que o anotar. Caso a escritura tivesse sido feita num notário, Tavares de Almeida teria tido margem para se poder antecipar e fazer o registo dos lotes que reclamava tão-somente em nome da sua empresa, Vilões.
2013, Rebenta a guerra
Depois de vários telefonemas trocados com Pedro Pires, Tavares de Almeida fizera chegar a Tomás Correia uma proposta: a troco do pagamento de 18,5 milhões que diz estar em dívida, desresponsabiliza o Montepio (agora via Finimóveis) de se ter apropriado de lotes sabendo que já pertenciam a terceiros. A missiva não tem resposta. Ainda assim, o MG paga à Vilões seis milhões e esta passa a reclamar o valor que ainda diz estar em falta, ou seja, 12,5 milhões, precisamente o valor que está hoje na origem do contencioso com o banco.
Fonte próxima de Tomás Correia observa que “quando se contrai um empréstimo ele deve ser pago” e se Tavares de Almeida quer “contestar a decisão da assembleia geral da sua sociedade, deve fazê-lo contra os seus sócios e não contra terceiros”.
O jurista contrapõe que “a operação imobiliária foi uma entre várias que na altura tiveram lugar e que visaram passar activos para o perímetro do Montepio para tapar o buraco aberto pela dívida da Vicaima.”
Com o afastamento de Pedro Pires, o gestor Paulo Magalhães assume a condução do dossier e “despacha” para a Cityprofit o diferendo.
E a 24 de Junho, pelas 12h30, o Tribunal de Oliveira de Frades declara a insolvência da Cityprofit, o que impede a empresa de pagar as dívidas. O acto leva Tavares de Almeida a pedir a reversão da decisão e a declaração da insolvência como dolosa. O que a juíza de Oliveira de Frades recusa. O jurista mete recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que ainda não se pronunciou.
Na mesa do director do departamento de supervisão do BdP, Luís Costa Ferreira, continuam as conclusões do relatório de inspecção do BES à conduta de João Neves, que recebera de um conselheiro do MG. E, ao saber que Tomás Correia pretende nomear Neves para a administração do banco Montepio, manda recado: o parecer sobre a idoneidade de Neves será negativo.
O último semestre de 2013 revela as guerras abertas dentro do GES potenciadas pela publicação de que Salgado recebera 14 milhões do construtor civil José Guilherme. Ainda assim, o banqueiro continua a ser visto como um parceiro com peso político e económico. E, quando o GES vai ao Montepio pedir financiamento para a Rioforte e para a área do turismo, Tomás Correia autoriza. O crédito de 150 milhões, em três tranches, é validado por Paulo Magalhães. A primeira é dada em Dezembro e as duas restantes nos primeiros meses de 2014. Hoje, a Rioforte já pagou 90 milhões da dívida e a restante tem vindo a ser liquidada.
2014, GES
O ano é de grande aceleração. E mau para todo o sector, desde logo pelo impacto da Resolução do BES. Para o banco Montepio, torna-se ainda pior, pois às guerras intestinas junta-se o escrutínio cerrado da equipa do BdP. Tudo se precipita para Tomás Correia.
Ao apanhar movimentos financeiros entre o Montepio e o Finibanco Angola, que estava a ser usado para fazer circular fundos e dar maleabilidade aos construtores civis que financiava, o supervisor considera-os com nível de sensibilidade elevado e participa ao Ministério Público por suspeita de possível fraude.
As inspecções surgem já depois do aumento de capital do Montepio, que tinha sido realizado ainda em 2013, quando Tomás Correia convidou clientes para subscreverem parte das 200 milhões de Unidades de Participação do Fundo de Participação Caixa Económica Montepio Geral (CEMG). O construtor José Guilherme e o investidor Brilhante Dias – ambos clientes do grupo Montepio e Finibanco Angola – investem respectivamente 18 e 10 milhões de euros com crédito do Finibanco Angola, garantido pelas Unidades de Participação (as UP são a quota-parte que uma pessoa ou entidade detém num fundo).
A queda do preço de petróleo começa a dificultar a transferência de divisas de Angola para Portugal. Conta um elemento que acompanhou o dossier: “José Guilherme pediu para amortizar parte da sua dívida ao Montepio com estas UP que estavam a garantir o empréstimo dado pelo Finibanco Angola. E propôs substituí-las (as garantias) por moeda local.” O que na prática significava que a dívida seria paga em kwanzas, divisa que teria dificuldade em chegar a Portugal. O BdP não gosta e abre averiguações.
Há outro relato diferente que parte do círculo de Tomás Correia: “A comissão executiva do Finibanco Angola foi confrontada com o desejo da família de José Guilherme em subscrever as UP, pois tinha fundos em moeda estrangeira.” E, como “o euro estava a 1,40 dólares, optou por não fazer a operação cambial e contrair um crédito no Finibanco Angola dando como penhor divisas, nomeadamente dólares. E aplicou os euros em Lisboa na aquisição das UP. Mais tarde, liquidou o crédito junto do Finibanco Angola, ao qual não deve hoje nem um cêntimo.”
Ainda em 2014, o BES deixa cair as conclusões do relatório sobre João Neves e o supervisor fica sem argumentos para não lhe dar o registo de idoneidade. E alega “que os factos eram antigos, remontavam à década de 90”. Hoje, Neves integra a administração do banco Montepio (e a do Finibanco Angola), que tem à frente José Félix Morgado, que substituiu em 2015 Tomás Correia.
2015, Ministério Público
Em Abril e Junho, o BdP emite pareceres negativos sobre vários quadros do Montepio, entre eles, Paulo Magalhães e Luís Almeida (este a acompanhar os movimentos financeiros entre Montepio e Finibanco Angola). O que o BdP quer dizer com “pareceres negativos” é que tem dúvidas sobre a capacidade de estes gestores decidirem “de forma ponderada e criteriosa”.
Um ano depois de terem sido encomendadas à Deloitte inspecções forenses ao Montepio e de os resultados terem chegado, o BdP toma decisões: uma delas é forçar a separação da actividade financeira da mutualista. Pressionado na frente interna, onde é contestado, e na frente externa, pelo supervisor, como se constata na troca de correspondência, Tomás Correia foi substituído por Félix Morgado. Mas 58,7% dos associados que votaram nas eleições para o triénio 2016/2018 nomeiam-no para liderar a AMMG, a dona do banco Montepio.
O MG continua sem reconhecer a dívida reclamada por Tavares e Almeida como sua. E a palavra “desforra” entra no vocabulário do jurista, que leva a artilharia pesada ao Ministério Público.
Mas antes, para evitar os tribunais, fizera tentativas. O então grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, Fernando Lima, é convocado para muitos encontros sociais. Um deles ocorrera em 2014, no restaurante Clube do Peixe, na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa. Foi aí que se deu uma conversa, que todos confirmam, entre Fernando Lima, Álvaro Dias, advogado de Tavares de Almeida, e Paulo Derriça, um gestor hospitalar. A meio do almoço, é pedido a Fernando Lima, do grupo de Tomás Correia, que faça chegar ao presidente do Montepio um recado: “As coisas vão azedar.” Apesar de partilharem uma refeição amena, o grão-mestre corta a conversa: “Tudo ponderado, não falarei [com Tomás Correia], pois posso ser mal interpretado, dado que o tema é delicado.”
E é assim que, no final de 2015, Tavares de Almeida remete extensa documentação para as autoridades, onde procura provar que, “para além do preço conhecido, a OPA [do MG ao Finibanco] teve um outro escondido, em parte repartido e exportado de modo ilícito pelos mais directos intervenientes”, entre os quais, “Tomás Correia, Humberto Costa Leite, José Lemos, Bessa Monteiro, Carlos Martins”. O jurista solicita que se apurem todas as ligações, incluindo a Singapura, o valor da OPA “tão elevado”, bem como os mecanismos usados para regularizar a dívida da Vicaima ao Finibanco que não foi contabilizada.
A 19 de Novembro, ao aproximar-se a data-limite para avançar com a acção cível, o advogado Álvaro Dias pede uma indemnização de 17,798 milhões, entre outros, a Costa Leite, Tomás Correia, José Lemos, Bessa Monteiro ou Paulo Magalhães. No dia seguinte, a 20 de Novembro, o tribunal de Viseu volta a recusar classificar como dolosa a insolvência da Cityprofit e a queixa-crime apresentada pelo jurista no tribunal de Viseu é arquivada. O que dá origem a uma reclamação hierárquica e um pedido ao Ministério Público de transferência do processo para o DCIAP de Lisboa, dado que as autoridades locais “prescindiram de investigar” por proximidade à Martifer.
2016, o Desfecho
Nos últimos dias de Fevereiro ocorre a reviravolta. Em esclarecimentos ao PÚBLICO, a PGR confirma que o procurador da República coordenador do DIAP de Viseu “atendeu parcialmente à reclamação” da Vilões (agora Apícula) e “determinou o prosseguimento da investigação”, contudo, “não pode perspectivar-se se daí advirá ou não a constituição de arguido ou arguidos”.
Simplificando: Tomás Correia, Costa Leite e José Lemos consideram Tavares de Almeida “um erro de coreografia”, “engenhoso” e desvalorizam as suas acções. Detestam tudo aquilo que representa: “A falta de discrição.” Mas nos corredores mostram-se preocupados com o desfecho dos acontecimentos e as suas consequências.
Por sua vez, Tavares de Almeida sente-se enganado por todos. Mas o que ele quer mesmo são os 12,5 milhões que alega que não lhe foram pagos por Costa Leite e Tomás Correia. O resto é um desafecto familiar: amor e ódio ao primo Humberto. E desdenho por Tomás Correia. Já Humberto Costa Leite salvou-se e protegeu o grupo de Vale de Cambra, que continua a contribuir para as exportações nacionais.
No Montepio, há turbulência e grande contestação interna, pois, em 175 anos, a linha vermelha foi ultrapassada: entre 2011 e 2015, o grupo (associação e banco) com 632 mil mutualistas encaixou mais de mil milhões de perdas. Verbas que incluem os dados revelados esta sexta-feira, 18 de Março, em que se ficou a saber que, pela primeira vez na sua história,em 2015, a Associação teve prejuízo e que se cifrou em 393 milhões. E o da CEMG foi de 243 milhões. Mas em qualquer banco o que interessa mesmo é o juízo final dos clientes: no Montepio, os índices de satisfação são altos e os de lealdade elevados. E há que ter em conta a opinião do supervisor, que considera que as irregularidades detectadas até 2015 (créditos de favor, garantias irregulares, má gestão) não tocaram nos alicerces da instituição, o que é o mesmo que dizer que a solidez não está em causa. No fim, sobra sempre a questão: quanto vale uma amizade quando estão em causa milhões? Para uns, talvez o mesmo de sempre, mas para outros não vale nada.