A demissão de pensar
Até o chefe do governo parece defender um outro olhar sobre o monstro da dívida, “se a Europa o consentir”. Nesta posição se resume a nossa desgraça.
Até já falam em comidas suculentas para dar força ao débil organismo da economia. E pasme-se, já se preocupam com o estado geral do doente.
Todavia, as melhoras pouco têm a ver com a terapia. Os mercados que ditaram a nossa desgraça são os mesmos que agora auguram a débil recuperação, tornados tolerantes por fartura de liquidez. O organismo perdeu força muscular, desaprendeu de gerar vigor, continuando em depressão e desengano, ou seja em alto desemprego e imperceptível crescimento. A conta na farmácia e na clínica, isto é, a dívida pública, aumentou sem controlo, apesar de as doses consumidas, isto é o défice orçamental, terem sido dramaticamente reduzidas, sem que as suas causas tenham sido debeladas. Os físicos do reino, quando conferenciavam com os de fora, eram ainda mais reducionistas que os rigorosos tutores, mais papistas que o próprio papa.
Na última conferência de sábios conselheiros, relutantes ortodoxos já admitiram falar em crescimento e emprego, acompanhando os que quebraram de há muito o “tabu”, ao recomendar negociações que reforcem a capacidade de pagamento da dívida. Até o chefe do governo parece defender um outro olhar sobre o monstro da dívida, “se a Europa o consentir”. Nesta posição se resume a nossa desgraça.
A Europa não é um bloco de granito da meseta. A Europa constrói-se de vinte e oito países e das suas opiniões. Quem cala, quando pode e deve falar, dá a entender que consente, diz o brocardo. E já há muitos e bons que falam com voz cada vez mais grossa contra a doutrina destrutiva: desde o presidente reeleito do Parlamento Europeu, Martin Schulz, ao novo presidente do conselho europeu rotativo, o italiano Renzi, desde alguns membros da direita e quase todos os verdes e liberais e espera-se, em coerência com o seu passado, o próprio recém-indicado presidente da Comissão, o luxemburguês Jean-Claude Juncker. Eis por que é tão importante que o País tenha quem o defenda, lá fora, e não quem o enterre, cavando ainda mais na depressão e na miséria. O argumento de que perdemos poder negocial se avançarmos com novas condições, além de timorato é caricato: quem não arrisca não petisca, diz o povo. É certo que Portas bem tentou um frustrado road-show, hoje é fácil concluir que foi apenas um modo de Coelho o encalacrar, isolando-o. A desculpa de que não havia condições para levantar a voz é a confissão da desistência antes da tentativa. A ideia de que a depressão cura é perrice ideológica de quem não reconhece que o garrote mata por asfixia.
Tudo começou na política, mascarada de ideologia. Quando a direita recusa o PEC 4, já aceite pelos credores, não foi atrás da ideologia, mas sim do poder, da política. Conquistado aquele, o excesso de zelo é arvorado em arma ideológica, ineficaz como hoje sabemos. Quando surge a primeira ocasião para virar de bordo e expor aos credores o falhanço da terapia, reconhecido pelo seu principal mentor, Vítor Gaspar, resolve-se quixotescamente, em vez de demonstrar a evidência negativa da experiência natural, cerrar fileiras atrás da muralha de erro, fechar as portas do castelo, deitar solas de molho e caçar os ratos para salgar e comer. E quando surgem do lado dos credores os primeiros sinais de reconhecimento do erro, a vítima complacente, tomando como endógenas as variáveis exógenas, de novo recusa lutar por melhores condições, satisfeita com o crédito a vinte anos e outras trelas. Vem agora o Primeiro-ministro admitir que talvez haja uma aurora de esperança, vinda de dentro do Conselho Europeu. Nem sequer nos diz se para ela espera contribuir, ou apenas se regalar quando ela nos aquecer.
Mas então e a ideologia? Não é ela que nos embaraça? O que é ela senão comunidade de ideais e opiniões baseadas em conhecimento? Quando a realidade se revela e denuncia o falso conhecimento, quando o ajustamento congela e destrói o crescimento, não era boa a altura para se mudar? Parece simples mas não é. Um edifício ideológico que levou trinta anos a construir, não é fácil de desmantelar. Terá que ser pedra a pedra. E não nos esqueçamos que o edifício abriga, protege e acalenta quem o ajudou a erguer. O receio do desconhecido passa a pavor quando as fissuras começam a surgir.
Dir-lhes-ei que nada temam, há sempre um banco amigo para os abrigar, um fundo internacional para continuarem a experimentar, cadáveres frescos para dissecar. Importante é que não se demitam de pensar. Mesmo tarde, podem sempre reconhecer o erro.
Apostilha : Tinha prometido a mim mesmo não escrever hoje sobre o PS. Mas uma intervenção de Seguro em Santarém, tirou-me do sossego: se bem interpreto os excertos televisivos, Seguro conforta os ribatejanos presentes contra a alfacinha dominância (de Costa). A verdade não estaria com os litorais, mas com os montanheiros, a autenticidade mora no interior pobre e desprezado e não na cosmopolita capital de “muitas e desvairadas gentes”. Este discurso é falso, politicamente vazio e demagógico. Além do mais visa criar divisões que nunca existiram. É falso, por estar longe de demonstrada a sua dominância no interior, bem ao contrário. É politicamente vazio, por não defender realmente o equilíbrio territorial, apenas tenta criar capital de queixa, sem uma ideia adiantar. É demagógico, por não acertar nas diferenças entre candidaturas, apenas em supostos comportamentos, onde a história regista um rasto de cadáveres políticos na luta entre jacobinos e montanheses. Finalmente é divisionista por tentar criar a cizania num partido que sempre foi tão interclassista como geograficamente bem distribuído.
Professor universitário reformado