Tiago Monteiro reclama seis milhões de euros que o Estado lhe prometeu
Executivo de Sócrates acordou com empresa do ex-piloto de Fórmula 1 um financiamento de dois milhões de euros anuais. O ex-secretário de Estado do Desporto nega, mas o actual Governo está a par do processo
AOceanational Motor, detida pelo ex-piloto de Fórmula 1 (F1) Tiago Monteiro e pelo empresário José Guedes, reclama uma dívida de perto de seis milhões de euros ao Estado português.
Há quatro anos, o Governo de José Sócrates concordou em financiar a entrada da equipa de Tiago Monteiro nos campeonatos de GP2 (a segunda divisão da F1), como forma de promoção do Autódromo Internacional do Algarve (AIA), que seria inaugurado em Novembro de 2008.
A ajuda seria canalizada por via indirecta, através da Parkalgar, a empresa privada detentora do circuito de Portimão. Esta, por sua vez, pagaria ao ex-piloto. No fim, nem o Estado, nem a Parkalgar cumpriram o acordado.
O processo foi feito nos bastidores, sem escrutínio público nem contratos formais, e surgiu dois anos depois de o Estado ter patrocinado o mesmo piloto, aí, sim, de forma oficial, mas mesmo assim um apoio que mais tarde foi considerado ilegal pelo Tribunal de Contas.
O projecto remonta a Agosto de 2008 e foi prontamente apadrinhado e estimulado pelo então secretário de Estado da Juventude e Desporto, Laurentino Dias, em nome do Governo, segundo revelam documentos consultados pelo PÚBLICO no âmbito do processo judicial de recuperação financeira da Parkalgar. A Oceanational (dedicada à investigação, desenvolvimento, produção de peças e acessórios para o sector automóvel, mas também à realização de eventos e actividades desportivas motorizadas) propunha-se adquirir uma equipa de competição, que se chamaria Ocean Racing Technology, para participar nos campeonatos de GP2 entre finais de 2008 e 2011. Face aos valores envolvidos e ao projecto apresentado, o Governo prometeu contribuir com um financiamento de seis milhões de euros. Mas optou por não o fazer de forma directa e clara.
Isso mesmo ficou expresso num memorando enviado por Laurentino Dias, por correio electrónico, à Ocean, a 2 de Outubro de 2008 (e que se encontra no Tribunal de Portimão), um mês antes da inauguração oficial do autódromo algarvio. "O apoio a conceder a esta empresa [Oceanational Motor], em termos, prazos e condições a estabelecer com a Parkalgar, será no montante máximo de dois milhões de euros por época desportiva, nas próximas três épocas, e decorrerá também do quadro de apoio público ao autódromo", escreve o ex-secretário de Estado. Em nenhum dos documentos consultados pelo PÚBLICO é especificada a forma como o Governo pretendia transferir estes montantes, para além da referência genérica do "apoio público" à Parkalgar.
Financiamento indirecto
Na prática, o Estado encontrava uma via indirecta de financiar, com dinheiros públicos, uma equipa privada de automobilismo, através de um intermediário, também ele totalmente privado (pelo menos em finais de 2008, já que em 2009 entraram no capital social da Parkalgar duas empresas de capital de risco do Estado, com uma participação global de 11,6%), sem formalizar qualquer contrato para o efeito. Na realidade, os únicos contratos-programa que foram celebrados com a Parkalgar, até à data, destinaram-se a comparticipar a realização de eventos desportivos específicos no AIA.
De acordo com documentos oficiais do Instituto do Desporto de Portugal (IDP) - actual Instituto Português do Desporto e Juventude -, dependente da Secretaria de Estado da Juventude e Desporto, foram celebrados com a Parkalgar, entre 2008 e 2010, nove contratos-programa, que envolveram um apoio total de 3,5 milhões de euros. Os mesmos destinaram-se a patrocinar provas de âmbito internacional, como o Mundial de Superbikes ou o Mundial de GP2. Também o Turismo de Portugal, dependente do Ministério da Economia, apoiou algumas destas provas, num total de 4,1 milhões de euros.
Nenhuma destas verbas se destinou, aparentemente, à Ocean. Com várias garantias do Governo, a empresa de Tiago Monteiro assinou um "contrato de patrocínio publicitário" com a Parkalgar, a 26 de Novembro de 2008, com um aditamento rubricado a 4 de Junho de 2009 (com reescalonamento do pagamento das verbas acordadas). A Ocean, que já adquirira uma equipa de GP2, assim como as necessárias licenças para competir, obrigava-se a promover o AIA fora de Portugal, publicitando este equipamento desportivo (muito acarinhado pelo anterior Governo, que lhe atribuiu o estatuto de projecto de potencial interesse nacional, PIN) com grande destaque nos dois monolugares de competição da equipa, comprometendo-se ainda a instalar a sua sede no futuro parque tecnológico do Parkalgar, nas imediações da pista de Portimão. Esta última era uma condição obrigatória no contrato, mas acabaria por não ser também cumprida.
Tudo porque a Parkalgar começou por não satisfazer a sua parte do acordado, falhando logo as primeiras transferências de verbas - ou seja, dos seis milhões previstos pagar à Ocean, acrescidos de IVA, e que serviriam também para suportar a instalação da empresa no complexo do AIA, foi disponibilizado apenas um sexto: pouco mais de um milhão de euros. Apesar do incumprimento, a Ocean Racing continuou a competir nas pistas internacionais, publicitando o autódromo até 2011, altura em que cessou o contrato. Desde então procurou, sem sucesso, cobrar os valores em dívida.
O processo especial de revitalização (PER) anunciado pelo Parkalgar em Outubro deste ano e homologado pelo Tribunal de Portimão, no passado dia 26 de Novembro, deixou a Oceanational numa situação ainda mais delicada. Neste plano de reestruturação financeira, a empresa foi remetida à condição de "credor comum", confrontando-se com uma substancial redução da dívida em 70% (bem como o perdão da totalidade dos juros e eventuais indemnizações compensatórias), tal como a maioria dos restantes credores, aproximadamente três centenas.
Envolvimento do Estado
Convidada a votar este PER há poucas semanas, a Oceanational, que viu reconhecido um crédito de 5,9 milhões de euros (sem IVA), que incluía 900 mil euros de juros de mora - dívida "encolhida" para 1,5 milhões com a aprovação do PER -, absteve-se, enviando ao Tribunal de Portimão uma "declaração de voto" a que o PÚBLICO teve acesso.
Neste documento, a empresa de Tiago Monteiro entende que não pode ser abrangida pelas condições impostas aos restantes credores comuns, já que considera o Estado português "co-responsável" pela dívida da Parkalgar.
"A Oceanational não pode, portanto, tomar uma decisão no sentido de aprovar ou de rejeitar o plano de recuperação em causa, uma vez que a mesma, directa e inelutavelmente, haveria de bulir com obrigações creditícias do Estado português sobre as quais a Oceanational não pode, nem quer, livremente dispor", lê-se na declaração, que remete mais detalhes para os documentos entregues ao Tribunal de Portimão, no âmbito do processo de reclamação de créditos sobre a Parkalgar.
Aqui, a Ocean pormenoriza a intervenção do Governo de José Sócrates em todo o processo. "O Estado português, reconhecendo a importância que aqueles campeonatos [GP2] assumem como veículo privilegiadíssimo para divulgar o nome de Portugal e, especificamente, da Parkalgar e do seu Autódromo do Algarve pelo mundo fora, decidiu empenhar-se fortemente para assegurar a presença de uma equipa portuguesa", revela a empresa, referindo-se a uma "abundante troca cartular" que manteve com os responsáveis governamentais.
A Oceanational identifica especificamente Laurentino Dias, que, garante, "acompanhou, interveio e conduziu o projecto da constituição da equipa portuguesa", assim como as negociações "que viriam a culminar na celebração do contrato" com a Parkalgar. Nos documentos consultados pelo PÚBLICO no Tribunal de Portimão, a empresa de Tiago Monteiro e José Guedes refere ainda que o ex-secretário de Estado da Juventude e Desporto assegurou que "o pagamento do valor das sucessivas prestações do patrocínio publicitário seria realizado e estaria devidamente acautelado".
Laurentino Dias nega
Contactado pelo PÚBLICO, o ex-secretário de Estado da Juventude e Desporto afirmou que o anterior Governo não teve "objectivamente nenhum envolvimento no processo", para além de ter "acompanhado a presença" da Oceanational na Parkalgar: "Nunca o Estado interveio no sentido de contratualizar ou protocolizar o que quer que fosse com essa empresa." Confrontado com a existência do memorando enviado à empresa de Tiago Monteiro, Laurentino Dias afirmou não se lembrar de ter escrito tal documento. "O que eu estou a dizer é verdade. Não houve nenhum tipo de compromisso, fosse garantia ou protocolo. Conversei várias vezes com eles e não mais do que isso. Nunca houve da parte do Estado mais nada", garantiu.
"Eu tinha uma relação com a Parkalgar desde a sua inauguração e, portanto, tinha a obrigação de fazer aquilo que me fosse possível para promover o desenvolvimento deste projecto, ajudar à sua promoção e fazer funcionar o autódromo. Essa empresa [Oceanational Motor]quis instalar-se lá [no parque tecnológico] e, portanto, teve contactos comigo e com a Parkalgar para fazer essa exploração. Foi nesse quadro que eu intervim e em mais nenhum, já que eu não podia apoiar nenhuma destas empresas", pormenorizou.
"A Parkalgar construiu aquele autódromo, uma instalação desportiva do mais alto nível, praticamente sem nenhum apoio directo do Estado. O que fiz com esta empresa foi conceder alguns apoios para a organização de provas desportivas internacionais, via IDP. E estes foram diminuindo face às dificuldades financeiras", reiterou. "Houve algumas entidades que eu impulsionei para ali se instalarem e para trabalharem na Parkalgar e a Ocean foi uma delas. De resto, não tive mais nenhum envolvimento, nem nunca contratualizei nada com a Parkalgar, nem com mais ninguém", assegurou.
Interpretação bem distinta tem José Guedes que, contactado pelo PÚBLICO, manteve integralmente a versão da Ocean que se encontra no Tribunal de Portimão. "Confirmo que o projecto Oceanational Motor e Ocean Racing Technology não teriam existido sem as garantias do Estado, através da Secretaria de Estado da Juventude e do Desporto. O seu apoio foi uma condição imposta desde início. Este é um assunto sensível e, para já, não quero tecer mais comentários, mas acredito que o Estado é uma pessoa de bem e ainda acredito que tudo será resolvido", resumiu.
O actual Governo também já está a par, conforme confirmou ao PÚBLICO o secretário de Estado do Desporto. "Tenho conhecimento deste processo e bastante informação sobre o mesmo, mas não quero adiantar nada", limitou-se a dizer Alexandre Mestre.
A relação entre Laurentino Dias e Tiago Monteiro iniciou-se bem antes deste capítulo da Oceanational. Quando o actual deputado do PS chegou à Secretaria de Estado da Juventude e Desporto, no primeiro Governo de Sócrates, que tomou posse em Março de 2005, deparou-se com um compromisso assumido pelo anterior executivo, liderado por Pedro Santana Lopes, de apoiar uma presença do piloto portuense no Mundial de F1. Um projecto que acabou também por ser abraçado pelo novo poder socialista.
Em cartas enviadas à equipa de Tiago Monteiro, a Jordan (que passaria depois a designar-se Midland), Laurentino Dias manifestou o apoio do Governo português, garantindo a participação do piloto nos campeonatos de 2005 e 2006. Ao abrigo de um contrato-programa assinado entre o Instituto do Desporto de Portugal (IDP) e Edmar Monteiro, pai de Tiago Monteiro, na qualidade de seu representante legal, a 1 de Agosto de 2006 (após despacho do então secretário de Estado de 27 de Julho desse ano), foram creditados dois milhões de euros na conta do grupo inglês CSS Stellar, que geria a carreira do piloto.
Essa verba, garantiu Laurentino Dias, em Abril de 2008, em declarações ao PÚBLICO, foi "a única e a última". Este financiamento era muito inferior àquele que fora inicialmente prometido, segundo revelou Edmar Monteiro, na mesma ocasião. O acordo inicial, estabelecido pelo Governo social-democrata, através do ex-ministro adjunto Rui Gomes da Silva, envolveria o pagamento de seis milhões de euros, divididos por quatro tranches de 1,5 milhões a liquidar ao longo de 2005. A primeira dessas prestações, a 28 de Janeiro de 2005, não foi cumprida, acabando por ser o próprio pai do piloto a suportar o encargo. Para esta falha contribuiu um cenário político de instabilidade, que culminaria com a convocação de eleições antecipadas pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio.
Anos depois, em 2009, o subsídio de dois milhões de euros atribuído em Agosto de 2006 a Tiago Monteiro acabaria por ser considerado uma "despesa ilegal" pelo Tribunal de Contas, nas conclusões de uma auditoria feita aos exercícios de 2006 e 2007 do IDP. Este organismo considerou que nem Laurentino Dias, nem o IDP tinham competências para assinar contratos em nome da "marca Portugal", do Ministério da Economia, que era publicitada no monolugar do piloto, como contrapartida do apoio do Estado.