Soares e Carlucci Reencontro com a História
Em 1975, no Verão Quente, o líder do PS que haveria de derrotar os comunistas e o embaixador americano que haveria de convencer Kissinger de que Portugal não era uma causa perdida encontravam-se regularmente no mais improvável dos locais. Hoje, os dois homens de cujo encontro dependeu, em boa medida, o destino da revolução portuguesa aceitam recordar esses tempos. Por Teresa de Sousa (texto) e Enric Vives-Rubio (fotos)
O encontro está marcado para as três horas da tarde de sábado, 16 de Setembro, depois de um almoço oferecido pelo embaixador americano em Lisboa, Alfred Hoffman, na sua residência da Rua de Sacramento à Lapa. A mesma onde Frank Carlucci chegou há mais de 31 anos, enviado por Henry Kissinger para uma missão que o secretário de Estado norte-americano - que serviu com os presidentes Richard Nixon e Gerald Ford - chegou a considerar "impossível": tentar salvar Portugal para o Ocidente. Vivia-se, nesse ano de 1975, um período difícil da guerra fria. Depois do escândalo Watergate que afastou Nixon da Casa Branca, depois da derrota do Vietname, a América estava na defensiva. Paralisada. Nada disto parece hoje ocupar o espírito dos dois homens. "Quando cheguei, sabe o que era isto? Uma lavandaria. Pareceu-me um enorme desperdício. Com esta vista..." Carlucci, de pé, faz um gesto largo sobre a ampla e deslumbrante vista de Lisboa, o rio, o casario, as cúpulas das igrejas, o mar da Palha, a outra banda. Uma cidade solar e tranquila. "Bom, naquela altura talvez fosse um pouco menos tranquila."
Acabaram de almoçar, ele e Mário Soares, na mesma pequena sala envidraçada onde se costumavam encontrar no ano em se decidiu o destino da Revolução portuguesa. O líder do PS que haveria de fazer frente à ofensiva comunista e derrotá-la e o embaixador americano que haveria de convencer Henry Kissinger de que Portugal ainda não era uma causa perdida. Longe dos olhares e dos ouvidos indiscretos.
Mas primeiro é preciso dizer onde estamos. Sobem-se os três lanços de escada da grande moradia onde fica a residência do embaixador americano desde antes do 25 de Abril. Falta ainda outro, de degraus mais estreitos e íngremes, vai ser preciso baixar a cabeça até desembocarmos numa pequena cúpula no telhado, alta e recuada. Quase imperceptível para quem olha da rua. Mário Soares precisa: "A isto chama-se um zimbório."
Porquê aqui? Para conspirar? Não é essa a palavra. Nenhum a aceita. Carlucci limita-se a dizer que o lugar os inspirava, na sua troca de ideias sobre o melhor caminho para "não deixar a revolução portuguesa descambar para uma nova ditadura". Era este, afinal, o propósito que tinham em comum. Soares acrescenta uma explicação porventura mais lógica. "Sucede que nesta rua se tinham fixado algumas embaixadas de Leste e havia a ideia de que poderia haver por aqui algumas escutas indesejáveis." Mas afasta imediatamente qualquer ideia de secretismo. "Eu entrava sempre pela porta da frente. O meu carro ficava estacionado à porta. Era tudo público, que era a melhor maneira de fazer as coisas."
A pequena mesa redonda onde almoçaram ainda está posta. O embaixador despede-se, depois de ter propiciado este reencontro com a História. Carlucci, mais desgastado pela passagem do tempo do que o seu interlocutor português, não desvia os olhos da luz de Lisboa. Porquê ali? "O dr. Soares e eu passávamos aqui muitas horas a conversar sobre os problemas políticos portugueses, sobre as relações entre os nossos dois países e como seria possível fazer de Portugal uma democracia de tipo ocidental. Falávamos horas e horas..." Soares pega-lhe na palavra: "Estar aqui ajudava a perceber o que era Portugal e que talvez não fosse assim tão fácil alterar a sua natureza. Como os comunistas pensavam."
Missão impossível?No sétimo andar do edifício do departamento de Estado, em Washington, prevalece ainda uma linha radical em relação à revolução portuguesa. Kissinger pensa que Portugal está perdido para o campo soviético. Elabora a célebre "teoria da vacina", segundo a qual um regime comunista em Lisboa seria a melhor garantia de que a França, a Itália e a Espanha ficariam imunes ao risco de contágio. Isso sim, seria uma desgraça para a NATO.
O que o leva, então, a decidir mandar para Lisboa uma equipa de luxo, chefiada por um embaixador testado em casos difíceis?
Frank Carlucci chega em Janeiro de 1975. "Ele não descreveu a minha missão em termos específicos. Tratava-se de vir para cá e de ver se era possível que Portugal avançasse no sentido de uma democracia ocidental e como havíamos de lidar com a possibilidade de vir a ser dominado pelos comunistas - que ramificações isso teria para a NATO e para o Ocidente." Nunca tinha estado em Portugal. "Nos primeiros dois meses, passei a maior parte do tempo apenas a ouvir. Os líderes da sociedade portuguesa, as pessoas do Governo, o dr. Soares e outros ministros, os militares - lembra-se de Rosa Coutinho -, a Igreja." Para chegar a uma conclusão: "Portugal não se tornaria comunista."
O embaixador enumera as cinco razões pelas quais achava que isso nunca iria acontecer. Fá-lo de uma forma que é, certamente, resultado da sua reflexão posterior, contando pelos dedos. "Geografia, ligações económicas, NATO, a natureza conservadora de um povo orgulhoso da sua independência e, em quinto lugar, a influência da Igreja."
Em Portugal não se passava nadaNão conhecia Soares. Sabia apenas que, em Washington, não gostavam dele. Hoje garante que isso nunca o preocupou. "O que me interessava era trabalhar com uma pessoa que percebi que era extremamente corajosa e que estava absolutamente comprometido com os valores democráticos."
Soares quer voltar atrás. Às primeiras reacções internacionais à revolução. "Os Estados Unidos foram totalmente surpreendidos com a Revolução dos Cravos. Foi uma revolução feita por Portugal, por portugueses, sem qualquer ajuda externa." Carlucci concorda. Soares continua: "Estava aqui um embaixador americano muito simpático e inteligente, Stuart Nash Scott, advogado nova-iorquino e amigo pessoal de Nixon, que o tinha mandado para cá, dizendo-lhe que vinha para um país adorável, com muito boa comida e onde não se passava nada." Passou-se a revolução, apenas alguns meses depois.
Quer desfazer a ideia de que só Washington estava mal informada. "Eu estava exilado e tentei dar a conhecer aos meus amigos socialistas da Europa Ocidental que alguma coisa iria acontecer e que era preciso que eles nos ajudassem, porque os comunistas iriam de certeza receber auxílio da União Soviética e dos países de Leste. Avisei-os de que isso poderia alterar a relação de forças na Europa."
Levou a James Callaghan, o então chefe do Foreign Office britânico, um relatório com os factos e as informações. "Ele confessou-me mais tarde que apenas o tinha lido depois da revolução." Fez o mesmo com Olof Palm, o primeiro-ministro sueco, a quem confessa que chegou a pedir um barco, "para andarmos por aqui, em águas internacionais, a emitir para Portugal". Falou com Willy Brandt, o chanceler da Alemanha. "Todos me diziam que eu era um idealista, que o marcelismo estava para lavar e durar."
O regime caiu como um castelo de cartas.
Os "marines" e o "embaixador da CIA" Já podemos avançar para o primeiro encontro? Ainda não. Antes, é preciso dizer que a "fama" do novo embaixador americano o precedeu. Foi anunciado como o "embaixador da CIA" - "estava escrito nas paredes".
Soares "não esperava nada." "Quando começaram a dizer que era da CIA, fiquei um pouco aflito, devo confessar. Ele chegou e houve logo manifestações hostis." Uma delas deixou o Presidente da República, general Costa Gomes, alarmado. Otelo Saraiva de Carvalho, o chefe do Copcon (Comando Operacional do Continente), frisa publicamente que o novo embaixador não é bem-vindo. "Costa Gomes telefonou-me para o ministério, muito aflito, e disse-me que eu tinha de falar imediatamente com o novo embaixador americano." "Telefone-lhe e diga-lhe da minha parte que nós lhe garantimos a segurança absoluta, porque, se ele é atacado, esse é um dos casos em que os "marines" podem intervir."
Soares telefona para a embaixada: "O embaixador veio ao telefone e falou-me num português perfeito. Pedi-lhe para vir ao ministério, o que ele fez imediatamente." Foi aí, mesmo antes de Carlucci ter apresentado as suas credenciais, que se encontraram pela primeira vez. Começa então a explicar-lhe, "com muitos rodeios, muitas cautelas", a situação do país. "Com grande surpresa minha, ele diz-me o seguinte: "Ouça, isso não tem importância nenhuma. Eu até já fui almoçar com o Otelo."" Soares confessa hoje que foi nesse exacto momento que entendeu "que ele já tinha percebido tudo".
O homem que tinha estado no Congo, quando do golpe que derrubou Patrice Lumumba, ou no Brasil, na altura do golpe militar que derrubou João Goulart, não resiste a uma sonora gargalhada. "Não me preocupei muito com isso, de facto. Falei ao Otelo e disse-lhe que, realmente, não deveria fazer ameaças daquelas. Pediu-me a direcção da minha casa e mandou logo alguns soldados para fazer a minha segurança." Os olhos iluminam-se com uma recordação. "Na minha primeira noite na embaixada havia uma manifestação à porta. Eu tinha trazido uma velha carrinha para utilizar nas minhas deslocações pessoais, vesti uns jeans e uns ténis, pus um boné, entrei na carrinha e saí pelo portão. Disse-lhes adeus e eles retribuíram."
A "solução chilena" nunca existiuDois meses depois da sua chegada um acontecimento haveria de tornar a sua tarefa ainda mais difícil. Carlucci diz que continua a não entender o que se passou no dia 11 de Março, quando o general António de Spínola alegadamente prepara um golpe que corre mal e vê-se obrigado a fugir para Espanha. Soares concorda: "Foi uma armadilha em que provavelmente Spínola caiu. Houve coisas muito suspeitas... uma alegada tentativa de assassínio de Vasco Gonçalves que ninguém chegou a explicar."
O Diário Popular, citando o Temoignage Chrétien, escreve: "Os EUA deram luz verde a Carlucci para tentar inverter a revolução." A imprensa portuguesa persegue-o com a mesma pergunta: "Onde é que estava no 11 de Março?" "Fui acusado de estar por trás do 11 de Março. Estavam sempre a acusar-me de me encontrar com Spínola. Nunca o conheci."
A aposta - para ele e para Soares - é agora a realização de eleições. Mas há factores que perturbam esse objectivo. O embaixador lembra-se de repente de um, que lhe deu enormes dores de cabeça. Volta a Washington para insistir que "seria um desastre" apoiar o separatismo nos Açores. "Andei de gabinete em gabinete a vender a minha ideia."
A mesma preocupação vai levar Soares a Washington para falar com Kissinger: "Alertei-o para o facto de isso ser mortal, que o apoio deles ao separatismo dos Açores seria a única coisa que nos faria sair da NATO." Disse-lhe que, numa tal hipótese, "deixaríamos de ter qualquer mão sobre a situação." Vai a Boston falar com o cardeal Medeiros, açoriano e muito influente.
Ambos tinham outra grande preocupação: evitar que os Estados Unidos apoiassem qualquer aventura de Spínola. "Disse também a Kissinger que o pior que poderia fazer, depois do 11 de Março, era apoiar o general Spínola. Lembrei-lhe Cuba e a Baía dos Porcos." Ninguém apoiou Spínola. "Só a França de Giscard d"Estaing chegou a apoiar um pouco o general."
Em Washington, no entanto, as coisas não eram assim tão claras. Kissinger pedia "cenários alternativos". Os jornais americanos começavam a falar num chamado "cenário chileno". Frank Carlucci não põe as mãos no fogo. Mas de uma coisa diz ter a certeza: ninguém lhe pediu a sua opinião sobre isso. "Se me tivessem pedido, eu ter-me-ia oposto." Soares afasta totalmente esta hipótese: "O que eu temia, naquela altura, era exactamente o contrário, era um golpe comunista."
Os aviões de Lemos Ferreirae o agente do MI6
Mas as eleições não tinham afastado o cenário da confrontação. Que planos tinha a embaixada para essa eventualidade? "Nenhum. Nós tentámos sempre manter-nos de fora das lutas internas entre os militares. Se houvesse a mais ligeira indicação de que estávamos envolvidos em alguma coisa, isso seria muito prejudicial para as forças democráticas." Reconhece, depois de alguma insistência, que tentou "identificar" alguns militares. Lembra-se de Ramalho Eanes, "que pensámos que poderia ser um futuro líder". Pede, então, ao general Alexander Haig, seu amigo e comandante supremo da Aliança, que "o convide a ir até à NATO".
No dia 25 de Novembro o embaixador está em Lisboa. "Não havia muito a fazer. A situação tinha a sua própria dinâmica. Se houvesse qualquer intervenção da nossa parte, só iria piorar a situação. Mas claro que prevíamos os vários cenários, dificuldades, que constavam das nossas informações para Washington. Honestamente, não tínhamos qualquer plano de contingência." Soares vai para o Porto na noite do dia 25. Por estradas secundárias. "O general Lemos Ferreira tinha levado os aviões para o Norte. O general Pires Veloso comandava as forças militares no Norte e o grupo dos Nove conspirava activamente." Admite que, em caso de as coisas correrem mal, havia alguns apoios preparados. "Sobretudo dos ingleses." Um agente "simpático" do MI6 , enviado por Callaghan, estivera em Portugal a ver o que era preciso. "Era preciso combustível para os aviões do Lemos Ferreira e isso eles podiam garantir."
E se tudo tivesse corrido mal?Carlucci dá mais uma sonora gargalhada. "O departamento de Estado demitia-me imediatamente. Os duros ter-se-iam regozijado por terem tido razão..." Soares: "Para mim teria sido um bocadinho pior."