Os cognomes de um Presidente

Que Cavaco existe no olhar de seis figuras públicas?

Maria de Belém

"O Professor"

Tendo em atenção a extensa carreira politica do professor Cavaco Silva e a natureza diferente dos cargos com notoriedade pública que foi chamado a desempenhar, considero ser este o cognome que melhor o acompanha nesse percurso.

Tendo em conta a sociologia da geração a que pertence, penso que, no quadro em que se desenvolveu, era natural a diferença de estatuto entre professor e aluno, muito centrada na autoridade natural do professor na sua quase infalibilidade, num certo temor reverencial de relação.

Parece-me que estas marcas se têm transmitido no seu exercício político, traduzidas, por exemplo, na frase "nunca me engano e raramente tenho dúvidas", no cultivo de uma certa forma de relação com os interlocutores, ou no estilo literário das suas mensagens políticas. Refiro-me designadamente, no que a estas respeita, às que têm sido dirigidas à Assembleia da República.

Surgiu-me este cognome também porque, entre nós, é corrente o aforismo "falar de cátedra" para alguém que considera ser o detentor da razão ou que não admite réplica. Isto acompanhado por um estilo muito afirmativo e parco em palavras.

Nunca convivi com o professor Cavaco Silva o suficiente para saber se no espaço privado mantém estas características de formalismo da relação, da expressão e da palavra. Por isso, capto apenas aquilo que me é dado ver no espaço público.

E percepciono a sua postura como correspondendo a uma certa leitura das hierarquias sociais, que existem sempre como forma de organização de relações, mas que nem sempre se exprimem da mesma maneira, ou de acordo com a mesma interpretação. Ou não convivessem sempre, na mesma contemporaneidade, variadíssimas gerações. Presidente do PS

Manuela Ferreira Leite

"O Estadista"

Pedem-me para olhar para o mandato do actual Presidente da República com o objectivo de o caracterizar e de o baptizar.

Começo por afirmar que a forma como tem exercido esta função confirma o estilo que tem marcado toda a sua vida pública e privada - na política, na universidade, na família ou como cidadão.

Na verdade, em todas as situações se pressente uma enorme exigência para consigo próprio e para com os outros, o rigor nas análises, a lucidez de raciocínio e o bom senso das opiniões.

E é isto que faz com que a sua presidência não seja meramente institucional, cumprindo apenas uma agenda de representação.

Também aqui a sua honestidade intelectual exige-lhe o estudo profundo de todos os dossiers que lhe permitem construir as suas opiniões de forma fundamentada.

As crises políticas que têm ocorrido no País e a difícil situação económica que enfrentamos, para além da instável envolvente europeia, têm constituído um enquadramento muito pouco tranquilo aos seus mandatos.

Neste contexto de enorme tensão política e social, é fácil criar incompreensões, uma vez que cada grupo gostaria de ver o Presidente da República intervir a seu favor, mesmo que isso perturbasse gravemente o jogo democrático e ilibasse de responsabilidades os outros agentes políticos.

O difícil é neste mundo, profundamente dominado pelo imediato e superficial, e pela cultura da imagem, abdicar de possíveis louros resultantes de actuações importantes e decisivas para, em vez disso, influenciar decisões no silêncio dos bastidores.

No entanto, sempre se tem manifestado publicamente quando entende que há desvios ao que considera ser bom para o país, princípio a que se tem mantido inabalavelmente fiel.

Não se tem também inibido de manifestar frontalmente as suas ideias para a Europa, usando o prestígio que granjeou para influenciar as decisões. Em resumo: nunca troca uma posição isenta por outra mais popular, nem o que julga ser o interesse nacional por qualquer outro. Economista

José Gil

O Presidente

Impossível ter uma ideia de como Cavaco Silva será julgado pela história. Porque tal ideia seria a projecção da ideia que hoje se tem dele num futuro sem data. O que é, de resto, essa "História" em que ficariam gravados juízos como "juízos finais"? Existe só numa escatologia ou no fim do movimento da humanidade; ora, enquanto fim, ele apaga toda a inscrição possível. Aliás, como se sabe, o passado histórico muda à medida que o futuro avança. Nunca teremos uma imagem objectiva, segura de Cavaco Silva, definitivamente imóvel, deposta numa jazida da História. É verdade que pode parecer que ele tudo faz, hoje, para deixar uma imagem única: de Presidente intocável, invulnerável, apenas preocupado com a situação dramática dos portugueses e o equilíbrio institucional. De essência "providencial", eterno, é presidente desde que nasceu e sê-lo-á até à morte. Presidente-monumento. Como julgar u m monumento que, enquanto tal, é a própria encarnação, para memória infinita, do mais alto juízo da história? Cautelosamente mas firmemente obcecado com as impurezas que possam vir a erodir a Estátua-imagem-pura do Estadista-acima-do-tempo, isso, pa radoxalmente, torna-o m ais vulnerável ao tempo. Por estas razões é, pois, impossível presumir com que imagem Cavaco Silva "ficará na História" (expressão absurda). Porque esta imagem - por mais que se queira não ser a do presente projectada em todos os futuros, quer dizer, no mito - é facilmente virada do avesso por qualquer abanão ou tropeção da história. Assim, não se lhe pode atribuir um cognome, nem sequer o de "o Escondido" ou "o Sem-Cognome". Tem o cognome escondido, para uma epifania no fim dos tempos. Filósofo

Lídia Jorge

"O Crente"

Mitterrand lamentava não ter havido um grande conflito durante o seu consulado para poder mostrar à História o nível do seu talento. Não acredito que Cavaco Silva tenha desejado esta crise, mas pelo menos oportunidades para mostrar as suas capacidades, não lhe vão faltar. Em face do actual desnorte, o Presidente tem dado razão àqueles que sempre disseram que é um homem localizado ao centro. Mas não é por ocupar esse espaço que deve passar à posteridade como "o Crente". É simplesmente porque Cavaco Silva, antes de mais, acredita em si próprio.

Julgo mesmo que foi essa a causa do seu sucesso junto do eleitorado. Quem conhece o perfil do português médio, circunspecto e estóico, que passados cem anos substituiu o antigo zé-povinho, compreenderá por que razão a figura do homem que se fez a si próprio se tornou numa espécie de símbolo heróico do povo. Paredes meias com esta razão está uma outra. O político que acreditou em si mesmo também acreditou no país, ou, se não acreditou, escondeu-o bem. Pelo menos em público, Cavaco Silva acreditou nas forças regeneradoras da "sua nação". Além disso, não sendo um visionário, é um homem com instinto de futuro. As reformas que fez enquanto primeiro-ministro, e muitos dos diplomas que promulgou enquanto Presidente, ainda que embrulhadas em palavras tácticas, revelam que Cavaco Silva não gosta de retroceder em relação às tendências do seu tempo. Cavaco Silva é um crente da sua própria sobrevivência, e por isso um crente na sobrevivência do Mundo. Ou o contrário, o que lhe daria mais motivos para passar à posteridade com o cognome que proponho.

Mas ainda existe um outro motivo para lhe ser atribuído esse epíteto. É que o actual Presidente é um crente indefectível na fidelidade dos amigos, a ponto de se deixar acompanhar por algumas das figuras mais sinistras da nossa democracia, sem nunca se lhe ouvir uma palavra a propósito, nem mesmo quando lhe deixam chamuscada a bainha do seu casaco. Sou daqueles que entendem que o faz por crença, e não por defeito. Escritora

Jaime Nogueira Pinto

"O Prudente"

Cavaco Silva foi o primeiro líder da III República a quebrar o monopólio dos antifascistas na política portuguesa: não tinha nem inventou as credenciais resistencialistas ou esquerdistas exigidas pela jovem democracia.

Trouxe um discurso patriótico e popular misturado com alguma tecnocracia, desmontando algumas das míticas "conquistas de Abril". Daí o seu sucesso em 1985 e a maioria absoluta de 1987. O país estava farto do PREC.

Cavaco usou o poder do Estado para domesticar o partido e os barões. Mas, nos finais do segundo mandato, os vícios da partidocracia local - iliteracia, caciquismo, clientelismo, promiscuidade negócios/política - chegaram ao PSD e ao poder através de personalidades, hoje notórias. Daí também a derrota do PSD nas legislativas de 1995, seguida pela derrota de Cavaco Silva em Janeiro de 1996.

Dez anos se passaram. Em Janeiro de 2006 foi eleito Presidente por maioria absoluta. E reeleito, outra vez, em Janeiro de 2011.

O Presidente tem pouco poder executivo e, para a dissolução, precisa de um enquadramento complicado. Mas pode aconselhar, prevenir, advertir e até intervir para evitar o pior.

Cavaco Silva cultivou uma imagem de patriotismo e competência profissional. As suas convicções têm uma base de cristianismo social, interesse nacional e justicialismo. Demonstrou integridade pessoal, embora não se livre de ter tido entre os seus colaboradores próximos algumas criaturas isentas dessa virtude.

Nas funções, procurou equilibrar a reserva e o low profile , que a Constituição impõe ao "Presidente de todos os portugueses", com o dever de alertar, moderar e denunciar quando o bem público a tal obriga.

Chamar-lhe-ia "o Prudente". A prudência era a grande virtude dos governantes segundo os canonistas e politólogos do século XVII.

Hoje já não será bem assim. Num tempo em que a Nação perde força e poder, centros de decisão e soberania, onde assistimos à tentativa irresponsável de banir símbolos nacionais - como o feriado do 1.º de Dezembro, dia da Independência - espera-se que o Presidente da República intervenha se e quando for preciso. Professor

Octávio Teixeira

"O Incoerente"

A incoerência entre o discurso e a acção é uma das principais características de Cavaco Silva na sua já longa vida política.

Não quero fazer processos de intenções sobre as razões últimas para essa incoerência, que pode ser, por exemplo, o querer aparecer bem na fotografia, aparentando estar de acordo com Deus e o Diabo ou da opção ideológica se sobrepor à racionalidade.

O que me parece inequívoco é que essa incoerência é persistente no tempo e que, por norma, a acção contraria o discurso. São múltiplos os exemplos que se podem apresentar para sustentar esta asserção. Registo quatro.

Um primeiro é o de muitas vezes pretender no discurso fazer crer que não é político, que não pertence à "classe" política, que está acima da política, quando na acção já leva 18 anos de político como ministro, primeiro-ministro e Presidente da República.

Outro, o de enquanto professor de Finanças Públicas considerar estúpidos "o mito do perigo do défice orçamental" e "a teoria do equilíbrio orçamental" e, enquanto político, ter sido subscritor do Tratado de Maastricht e defender o cumprimento das condições da troika , que sufragam e impõem aqueles disparates.

Assim como o enfatizar, no discurso, a necessidade do aumento da produção agrícola e do aproveitamento do mar, em contraste com a acção dos seus Governos de colocar as terras em pousio e de promover o arranque de vinhas e olivais e o abate da frota pesqueira.

E, mais recentemente, o discurso repetido de que a austeridade orçamental só por si nada garante, que são necessárias medidas para o crescimento económico, que a austeridade tem limites, que é necessário evitar uma injusta distribuição dos sacrifícios, que o corte dos subsídios de férias e de Natal viola o princípio da equidade fiscal, etc. Mas a sua acção é a de aceitar passivamente tudo o que o Governo lhe apresenta em sentido contrário, designadamente o último Orçamento do Estado, e de apoiar o acordo com a troika.

Para se ser um bom Presidente, a coerência é essencial. Economista

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