O poder de Alberto João à lupa: obras, subsídios, propaganda e a bênção da Igreja
A força eleitoral de Jardim na Madeira é comandada com mão-de-ferro por um núcleo restrito de pessoas cuja influência agarra milhares e se alarga a todos os sectores de actividade
Alberto João Jardim é um caso de longevidade política. Líder do Governo Regional da Madeira há 33 anos, corre para mais uma reeleição e vai a meio da campanha como sempre esteve quando está em causa uma eleição: rodeado de um núcleo duro que não é muito grande mas cujo poder chega longe, ajudado por uma máquina mais extensa de colaboradores. A imagem de um conjunto de cromossomas serve como uma luva: cada qual com as suas proteínas, cada qual com a sua função, todos contribuem para a sobrevivência de um mesmo organismo - neste caso, o poder de Jardim e do PSD/Madeira.
No topo da pirâmide, o líder regional, de 69 anos, com o seu estilo sempre ao ataque - "truculento", segundo disse o próprio, numa entrevista em 2004 à revista do Expresso. Como presidente da comissão política, Jardim não está porém em condições de ser o estratega da máquina que o ajuda incansavelmente no exercício do poder. Aí entra em cena Jaime Ramos, 63 anos (faz 64 a 3 de Novembro). Há quem diga que Jardim gere as intervenções públicas e que Ramos é o homem que gere as decisões - da política à economia. Ramos é secretário-geral do partido, líder da bancada "laranja" na Assembleia Legislativa Regional e um industrial da construção civil. Uma recente investigação do Diário de Notícias da Madeira identificou entre 40 e 50 empresas que, directa ou indirectamente, fazem parte do portefólio empresarial deste homem que, segundo a biografia publicada no site do parlamento regional, é gerente comercial e tem como habilitações literárias o 5.º ano do antigo liceu. "Ele é o gajo que controla a economia da Madeira", diz ao PÚBLICO um dirigente de um clube desportivo do Funchal.
Descodificar o código Jardim é trabalho para um livro. As ramificações, os pontos de contacto entre diferentes figuras de diversas áreas da sociedade são de tal modo numerosas que seria necessário escavar bem mais que os 65 túneis que o governo da Madeira construiu na ilha. Desfiar esta meada que levou 33 anos a engrossar implicaria ter acesso livre aos protagonistas e a documentos. Nos dias que correm, isso é virtualmente impossível.
O Jardinismo - termo que Jardim dizia abominar, mas que é útil como identificação de uma certa forma de exercício do poder - não se coíbe de condicionar o trabalho dos jornalistas, de os expulsar até de conferências de imprensa ou de comícios. Foi isso que aconteceu, na semana que passou, ao fotógrafo enviado à ilha pelo International Herald Tribune, do grupo do New York Times. Na passada quarta-feira, foi expulso, pelos numerosos seguranças que rodeiam Jardim em todos os actos de campanha, quando tentava fotografar o líder insular no meio do povo que participava no comício.
É a este ambiente que uma análise ao mapa de poder da Madeira tem de se confinar. Entrevistando gente ligada ao poder - que é contundente na defesa de Jardim, mas se fecha rapidamente em copas quando se tenta mergulhar no interior da máquina. E ouvindo as oposições, que denunciam, aos quatro ventos, os casos de nepotismo, as redes clientelares, que apelida Jardim de "ditador", "criminoso político", "comprador de consciências", como o faz o padre Martins Júnior.
Este pároco da Ribeira Seca, concelho de Machico, foi autarca duas vezes, a primeira pela UDP e depois pelo PS, na década de 1990. Nessa altura foi o único líder camarário que não representava o PSD. Era a excepção e foi tratado como tal. "Para o Machico, nem um tostão", prometeu Jardim. E, durante muito tempo cumpriu.
Actualmente, todas as 11 câmaras do arquipélago (dez na Madeira e uma no Porto Santo) são presididas pelo PSD/M, que tem sedes em todas as 54 freguesias - no continente, o normal é haver sedes concelhias. Não há associação de bombeiros, banda de música ou casa do povo que não tenha uma figura política ligada ao PSD/M.
Cabral Fernandes, advogado, deputado da primeira legislatura (1976-1979), na Assembleia da República, pelo CDS, considera que além da teia do poder que, desde 1978, se alimenta do "voto garantido pela muita gente que depende do Governo", há um aspecto cultural que justifica a perpetuação do Jardinismo: é "o espírito da colónia", diz Cabral Fernandes, aludindo ao regime extinto em 1977 e que era específico da Madeira, consistindo num contrato de terras em que o dono do terreno dispunha do poder, unilateral e discricionário, de pôr fim ao contrato quando e nos termos que quisesse.
"Jardim captou um eleitorado muito conservador e utilizou um sentimento de subordinação do madeirense que já vem de longe, vem da colónia. Este regime parecia saudável, por ser uma espécie de parceria, mas o colono era um dono precário das suas coisas e não há nada mais frustrante do que ser um dono precário. Isto cria um sentimento de subjugação ao senhorio e foram quatro ou cinco séculos desta cultura na Madeira", sustenta este antigo deputado. "Jardim captou isto, percebeu e manteve este sentimento. Quem precisa tem de estar ao lado dele", vinca.
Segundo o Censo 2011, o arquipélago tem 262.456 habitantes. A população activa ronda os 130.000, e os funcionários públicos são entre 27.000 e 30.000. Ou seja, pouco menos de um quarto da população trabalha para a administração pública, factor que deve ser tido em conta quando se analisa a força eleitoral do PSD/M e de Alberto João, argumenta por seu lado Emanuel Jardim Fernandes, antigo líder do PS da Madeira e que concorreu diversas vezes contra o líder do Governo, contra Jardim, que gosta de zurzir na "falta de qualidade da oposição". Para Jardim Fernandes, que coleccionou derrotas na terra natal e terminou a carreira política como eurodeputado em Bruxelas, a vida da oposição não é fácil na Madeira, porque ali "o regime não é uma democracia". "Não se respeita as poucas leis que existem, o presidente do governo não responde à assembleia e tomou conta, domina a economia", sustenta este antigo responsável socialista.
Do outro lado da barricada, Luís Filipe Malheiro, um dos homens da máquina do PSD, ex-jornalista e chefe de gabinete do presidente da Assembleia Regional, recusa a famigerada ideia do défice democrático e prefere sublinhar que o PSD enche comícios porque "sabe como se faz uma campanha". "A oposição não tem comícios porque não consegue motivar os eleitores. Dá muitos tiros nos pés", advoga Malheiro, considerado pelos detractores como mero defensor público do governo regional. Pelo contrário, o PSD "tem uma máquina, um núcleo do qual já fiz parte, que trabalha nisto [campanhas] há mais de 15 anos".
É na liderança desta máquina posta no debate pelo próprio PSD que a história regressa a Jaime Ramos. O todo-poderoso secretário-geral do PSD/M, que tem interesses na construção civil, nos media (área em que tem uma empresa a meias com Joaquim Oliveira, da Controlinveste) e noutras áreas tão diversas que vão desde o aluguer de automóveis ao tratamento de águas. Com Alberto João e Miguel Albuquerque - líder da Câmara do Funchal -, Ramos dirige a Fundação Social Democrata da Madeira, uma entidade que é dona de todas as sedes do PSD/M e da generalidade do património do partido.
Quem manda nos púlpitos?
Outro nome vinculado a esta fundação e à cúpula do partido era o de António Candelária, autarca de Santana que deixou de ser visto na Madeira. José Manuel Coelho, o pintor de construção civil que concorreu à Presidência da República e se candidata nestas eleições regionais pelo Partido Trabalhista Português (PTP), acusa Candelária de ser o dono da empresa Sermaquipa, cuja sede funcionaria numa garagem da Fundação Social Democrata da Madeira e que, segundo Coelho, era um instrumento usado pelo partido de Jardim para obter financiamento. Pouco depois de ter sido constituído arguido, num caso de alegada prevaricação, abuso de poder, burla qualificada e corrupção, que envolvia a construção de um campo de ténis da União Desportiva de Santana, Candelária deixou a Madeira rumo ao Brasil e nunca mais terá voltado. Neste mesmo caso, o Ministério Público acusou, entre outros, Jaime Lucas, que dirigiu o Instituto de Desporto da Madeira (IDRAM), uma ferramenta importante do poder jardinista. Independentemente de quem o lidera - actualmente é Carlos Norberto Catanho José -, este instituto tutelado pela Secretaria Regional da Educação gere as ligações do governo ao desporto, área na qual pontificam os dois grandes clubes da ilha, Marítimo e Nacional.Na presidência do primeiro está Carlos Pereira, empresário cujo universo laboral se estende a 12 empresas - ao passo que o segundo é liderado por Rui Alves, também com ligações ao imobiliário. Pereira garante que não trabalha directamente com o governo, mas uma das suas principais actividades - a extracção de inertes como brita - situa-se no perímetro da construção civil que é, segundo os adversários de Alberto João, "a grande beneficiária" do Jardinismo. Questionado pelo PÚBLICO, Carlos Pereira admite que algumas das suas empresas trabalham para empresas do governo regional.
No sector público empresarial da região incluem-se quatro empresas-chave, as sociedades de desenvolvimento (ver texto nas páginas seguintes), criadas por Jardim, com o objectivo de fazer obras sem onerar directamente o orçamento do governo regional. São tuteladas pelo vice-presidente do executivo, João Cunha e Silva, um político que o jornalista Albino Ribeiro Cardoso, autor do livro Jardim, a grande fraude - uma radiografia da "Madeira Nova" (Caminho, 2011),descreve nessa obra como "calculista e impiedoso" e que também tutelava o Jornal da Madeira, único jornal pago pelo Estado em Portugal.
Este título é outra carta do baralho de Jardim, que o dirigiu na década de 1970, imediatamente antes de passar para o governo regional. O jornal era da diocese, mas actualmente a igreja detém apenas uma ínfima parte do capital social. O que não quer dizer que a igreja tenha deixado de ser vista como outra peça do puzzle de poder do Jardinismo.
Foi a igreja, através do bispo Francisco Santana, quem lançou Jardim para a ribalta e, ao longo dos anos, tem sido acusada de nunca se ter separado desse homem político. Há porém uma diferença: "Antigamente, nos púlpitos da ilha pedia-se apoio para Jardim. Agora, Jardim tomou conta dos púlpitos", sustenta o padre Martins Júnior, argumentando que, enquanto director de jornal, Jardim não publicava sem consultar a diocese, sendo que agora é a igreja que não toma decisões sem consultar Jardim. "Os padres podem aliar-se com quem quiserem, com Deus ou com o diabo. Mas nunca em nome de Cristo", critica Martins Júnior com veemência.
Mais do que ligar os nomes e apelidos que ocupam cargos-chave na administração pública regional - um exercício que muitos blogues fazem, na tentativa de denunciar publicamente os tentáculos do Jardinismo e uma suposta política de nomeações assente em redes familiares e trocas de favores - o poder de Jardim reside, por certo, no voto dos eleitores, que serão chamados às urnas daqui a uma semana. Mesmo com a abstenção elevada, as maiorias têm sido de Jardim. Talvez porque os eleitores sejam "egoístas", decidindo em função dos seus interesses particulares, refere o ambientalista Raimundo Quintal, crítico incansável da política no arquipélago.
Quem vai do Funchal à Ribeira Brava encontra pelo caminho pequenas hortas junto à estrada, com bandeiras do PSD/M espetadas na terra ao lado de vegetais. As bandeiras, dizem alguns dos contactados pelo PÚBLICO, sinal do apoio eleitoral daqueles que foram ajudados, através de um subsídio, de uma casa, uma estrada.
Entre a oposição local, aponta-se também o dedo aos políticos do continente, porque permitiram este exercício de poder. O alvo actual é Cavaco Silva, porque o silêncio do chefe de Estado em relação ao que se passa com as contas da Madeira é "inaceitável numa sociedade democrática".