Firmas de consultoria fiscal participam na elaboração do OE
O recurso a consultoria legal externa é usual no Estado. A explicação é a fragilidade dos serviços, o risco é a promiscuidade
Fiscalistas das firmas de consultoria têm participado na elaboração das leis fiscais do Orçamento do Estado (OE), em conflito de interesses com as suas actividades profissionais, soube o PÚBLICO de diversas fontes. No Ministério das Finanças, apenas se assume que "o Governo não recorre a consultores externos para a elaboração do OE", mas nada se respondeu sobre a razão de diversas firmas de consultoria estarem na posse da lei do OE para 2013, aprovado na passada quarta-feira em Conselho de Ministros.
As firmas de consultoria estão no mercado para prestar serviços de apoio nomeadamente fiscal a contribuintes singulares e empresas, seus clientes. As principais são multinacionais e têm nos seus quadros peritos bastante qualificados, muitas vezes usados pelo Estado para a formulação da lei do OE. Na recta final da elaboração dos orçamentos, o tráfego de informação entre fiscalistas é habitual e, dias antes da entrega do OE no Parlamento, várias versões da lei estão em poder desses técnicos.
Após a divulgação da lei, e dada a sua expertise, as firmas são consultadas pela comunicação social. Algumas firmas pagam mesmo para o seu trabalho aparecer destacado nos jornais (não é o caso do PÚBLICO). As firmas elaboram simulações e analisam o impacto do OE.
Apesar do desmentido oficial, o recurso ao outsourcing de produção legal não é caso único nos ministérios, ainda que os seus responsáveis nunca publicitem quais as leis que foram encomendadas e qual o preço pago. Essa produção legal é, contudo, criticada por especialistas, como o catedrático da Universidade de Coimbra Casalta Nabais, como "produção integrada de litigação": os autores materiais da lei acabam por beneficiar desse conhecimento legal por si criado e beneficiar os seus próprios clientes, muitas vezes contra o próprio Estado.
Mas porquê recorrer a estes especialistas para a produção do OE quando os próprios serviços das Finanças são, muitas vezes, colocados à margem? O PÚBLICO ouviu ex-responsáveis do Ministério das Finanças sobre esta questão.
Especialistas contestam
"Creio que durante muito tempo o apoio principal na produção legislativa provinha da Administração, em particular do Centro de Estudos Fiscais (CEF) ou/e de gabinetes formados essencialmente na base de funcionários da DGCI ou da IGF", afirma António Carlos Santos, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (SEAF). "Como tudo na vida, havia vantagens e inconvenientes. As vantagens eram o conhecimento dos dossiers e das negociações (comunitárias ou internacionais) e o menor custo. O principal inconveniente seria o risco de uma certa captura do corpo político pelos agentes administrativos. Não é raro a administração propor soluções legislativas idênticas a governos de cor distinta ou procurar mudar a seu favor interpretações dos Tribunais que lhe são contrárias". Apesar disso, acrescenta, "diferente é o recurso sistemático a consultoras ou gabinetes externos, situação que, em meu entender, deveria ser evitada pela promiscuidade que pode acarretar".
Outro ex-responsável, que preferiu o anonimato, admite que esse recurso tente ultrapassar a incapacidade dos serviços, atenuar a filosofia de que estão imbuídos - a de "cobradores de impostos" - ou a dificuldade de consultoria técnica do CEF: "Nunca estão". Algo que explica que os gabinetes do SEAF criem estruturas paralelas aos serviços.
António Carlos Santos reage: "Se essa é a razão, o que deveria fazer-se seria melhorar a formação, em matérias de política fiscal e orçamental e não apenas de direito ou de finanças públicas".
Para Vasco Valdez, ex-SEAF do Governo Durão Barroso, foi uma novidade. "O que posso dizer, é que nos seis anos e meio em que fui SEAF nunca tal aconteceu, socorrendo-me dos serviços da então DGCI e da DGAIEC e, especialmente, do CEF". Mas a ser verdade, "considero um verdadeiro escândalo e de facto tal mereceria uma investigação aprofundada".
Pedro Amorim, consultor fiscal, é ainda mais peremptório. "Admito que, nos tempos mais recentes, tenha aumentado o outsourcing legislativo em matéria fiscal, ainda que tais tarefas sejam cometidas a certas sociedades de advogados ou consultores de uma forma quase sempre informal, o que a torna muito difícil, senão impossível, de controlar e avaliar. Os fortes aplausos que mereceram certas medidas (como sobre residentes não habituais, tributação efectiva em IRC, arbitragem, etc.) parecem pelo menos indiciar que a influência de certos consultores fiscais e advogados junto da SEAF terá aumentado significativamente nos últimos tempos".
Na sua opinião, diversas razões contribuem para isso: "O progressivo enfraquecimento do CEF", "a diminuição das regras do Estado de Direito" na actuação do Fisco, a escolha de advogados ou consultores para o cargo de SEAF que "deveria ser sempre evitada", "os bons contributos" dos grupos de trabalhos nomeados pelo Governo (o mais recente é o relatório para o Estudo da Política Fiscal, de 2009) serem quase sempre ignorados pelo legislador; e, por último, "é evidente que nos últimos anos não há qualquer espécie de "política fiscal" minimamente coerente ou sequer digna de tal designação".
O PÚBLICO tentou falar com dois responsáveis de duas das maiores firmas de consultoria, mas não obteve resposta até ao fecho da edição.