Ensaio para o golpe
De 12 para 13 de Novembro de 1975 os deputados passaram a noite no Palácio de São Bento, cercados por uma manifestação de trabalhadores da construção civil. O cerco à Assembleia Constituinte foi como que o início do fim do "Verão quente" e um prenúncio do 25 de Novembro. Os sete constituintes que actualmente são deputados recordam como o país se preparava para a guerra civil e comparam a Assembleia de há 25 anos com a de hoje. O PÚBLICO inicia hoje a publicação de uma série de trabalhos sobre "o principio do fim da revolução".
"Houve vários ensaios de golpe e o cerco da Constituinte foi um", diz hoje Manuel Alegre. "O cerco da Constituinte foi o ensaio civil, o 25 de Novembro foi o ensaio militar", afirma Helena Roseta. Alegre e Roseta são dois dos sete deputados eleitos à Assembleia Constituinte que actualmente são também deputados à Assembleia da República. Com eles, também António Reis, Medeiros Ferreira, Mota Amaral, Pedro Roseta e Basílio Horta recordaram os dez meses em que foi feita a Constituição e, em especial, um momento, considerado por todos de fundamental: o cerco à Constituinte.O cerco, levado a cabo, entre 12 e 13 de Novembro de 1975, na sequência de uma manifestação de operários da construção civil, deu início à semana mais longa do "Verão quente", que só viria a terminar no 25 de Novembro, e terá sido o momento mais alto de uma luta que atravessou todo esse Estio: a da legitimidade revolucionária contra a legitimidade democrática. A ameaça à democracia que o cerco representou foi tal que PS, PSD e CDS transferiram logo no dia 14 os seus grupos parlamentares e as direcções partidárias para o Norte. Mas fizeram mais do que isso: prepararam-se para a guerra civil. Ainda foi feita uma tentativa para reunir a Constituinte no Porto. No entanto, Pires Veloso, comandante da região militar do Norte, disse que não havia garantias de segurança. "Então cada um foi para as suas terras preparar a resistência armada." A frase é de Basílio Horta, que assume assim a preparação para o que quer que acontecesse, ou melhor, para o temido golpe que poderia lançar Portugal na guerra: "Foi o momento em que o país esteve mais próximo da guerra civil."Os socialistas estavam preparados e organizados para a guerra civil. "Tínhamos casas clandestinas para cada dirigente do PS. Fui eu que tratei disso", disse Manuel Alegre ao PÚBLICO, explicando que o PS havia distribuído "mais de 500 armas". A distribuição de armas a civis, nomeadamente a militantes do PS, fazia, aliás, parte do plano de operações do 25 de Novembro. E Alegre assume a colaboração entre o PS e Ramalho Eanes, que teve como intermediário Álvaro Guerra: "O Eanes teve o mérito de, numa altura em que as Forças Armadas estava completamente desmanteladas ter vindo colaborar com o PS"."Constituímos milícias", diz ainda Alegre. Essas milícias, segundo António Reis, "deviam funcionar enquadradas pelos militares e como espécie de guerrilha de apoio". Isto, se tivesse eclodido uma guerra civil, como este deputado considera que teria, se no 25 de Novembro tivesse ganho o golpe de esquerda. Mas, aí, analisa Alegre, "o PCP teve o bom senso de parar". "O PCP não quis a responsabilidade da guerra civil e percebeu que nós estávamos preparados para isso", acrescenta este deputado. Alegre entende que havia uma diferença de estratégia entre o PCP e a extrema-esquerda: "O PCP queria paralisar a Constituinte, os governos provisórios e fazer aluir o poder; a UDP e o PRP queriam tomar o poder pela força." E observa: "A estratégia da extrema-esquerda, com que o PCP alinhou, era de repetir a revolução russa." Também Pedro Roseta viu naquelas semanas de Novembro, e em especial no cerco à Constituinte, "uma tentativa de repetição" da revolução russa: "Lenine dissolveu a Constituinte em Petrogrado pela força."Eleita em Abril e tendo começado os seus trabalhos em Junho, a Assembleia Constituinte era o único órgão escolhido democraticamente, ainda por cima num acto eleitoral em que a participação dos votantes tinha sido esmagadora. Tal como esmagadores tinham sido os resultados, nomeadamente para o PCP e a extrema-esquerda. "As eleições desmistificaram a correlação de forças, mostrando que o MDP não existia e que o PCP e a UDP tinham uma fraca dimensão", considera Manuel Alegre. Acrescenta as forças que acabaram por sair vencidas optaram por uma estratégia de desvalorização das eleições, tentando "sobrepor uma pretensa legitimidade revolucionária à legitimidade democrática". A luta seguinte foi à volta da Constituinte, mais uma vez numa lógica de oposição entre legitimidade revolucionária e legitimidade democrática. "Era uma luta constante para manter a Constituinte e preservar a legitimidade democrática, enquanto o PCP e Vasco Gonçalves lutavam pela desvalorização da Constituinte." As palavras são ainda de Alegre, que, na altura, além de deputado, era o responsável pela mobilização na estrutura do PS: "Era uma batalha de vida ou de morte e não é em sentido figurado que o estou a dizer."Nessa luta valia tudo, ou quase tudo - incluindo não pagar ordenados aos deputados nos primeiros meses. Porquê? "Porque não havia vontade política. Eram os governos de Vasco Gonçalves", responde Helena Roseta, então deputada do PPD, hoje no PS. "Mas, quanto mais tentavam asfixiar a Constituinte, mais a gente sentia que tinha de resistir." E resistir era discutir. Discutir tudo, os comícios, os governos que caíam, as manifestações e a Constituição que iria enformar o país saído da revolução."A Constituinte era um lugar onde se reflectia toda a situação política do país, era um reflexo verdadeiro do que se estava a passar no país. Toda a luta política passava por aqui. Havia uma grande ligação entre a Constituinte e a rua", recorda Helena Roseta.Mas, entre 12 e 13 de Novembro, a luta foi entre a rua e a Constituinte. "O PCP declarou que se tratava de uma assembleia de características burguesas e que a revolução devia prosseguir na rua", aponta Mota Amaral, para quem "o cerco foi apenas o epifenónemo" de toda contenda à volta da Constituinte.A iniciativa teve, aliás, um efeito surpresa. "Sabia-se que ia haver uma manifestação da construção civil, mas nunca pensámos que a organização era tão perfeita, que o Governo e a Assembleia ficassem cercados", afirma Basílio Horta. Recorda que o primeiro-ministro à época, Pinheiro de Azevedo, também estava cercado, embora inicialmente não o soubesse.Depois de perceberem, no final da sessão plenária de dia 12, que estavam sitiados e não podiam sair de São Bento, os deputados ainda quiseram voltar a reunir-se, mas, segundo Basílio, "temeu-se uma atitude violenta irreversível": "As ameaças era que, se tal acontecesse, eles [os manifestantes] entrariam.""Houve deputados mais afoitos que tinham estado na guerra colonial e que foram pedir armas ao primeiro-ministro", diz, por seu lado, Mota Amaral, que, ainda cercado, a primeira coisa que fez foi marcar viagem para os Açores, onde, depois, convocou uma manifestação em todas as ilhas ao mesmo tempo, que se realizou a 17 e assustou o continente: "Aqui pensavam que íamos proclamar a independência.""A situação estava a atingir o clímax", diz António Reis, lembrando que o cerco pôs a nu "a impotência, a inexistência do Estado em Portugal". Isto, porque, denuncia Alegre, as Forças Armadas estavam "em fanicos", ou melhor, "as Forças Armadas não existiam"; o que havia era "uns batalhões ao serviço de forças políticas".Sequestrados, os deputados pediam ao Presidente da República, Costa Gomes, para intervir, mas, continua Reis, "do lado do Presidente da República havia também uma grande dificuldade em repor a legalidade democrática e a autoridade do Estado". Há um momento particular daquelas horas e daqueles dias, em que Portugal esteve "à beira da passagem para outra ditadura", que este deputado não esquece. Foi a "dor da divisão da esquerda": "Quando saímos, o que mais me custou foi do lado dos manifestantes ver colegas de luta que me trataram como se fosse um fascista."Essencial para o desenrolar dos acontecimentos foi, segundo Manuel Alegre, o facto de Mário Soares ter saído da Assembleia: "Houve um instinto que nos permitiu sair aos dois. Ele conhecia o corredor que ia dar a São Bento [residência oficial do primeiro-ministro]. Ainda me mandou chamar o Jaime Gama, mas o Gama disse que precisava de ir buscar uns papéis. O Mário Soares disse: 'Não espere, não espere.' Quando saímos os dois os portões de São Bento, já eles [os manifestantes] estavam a subir a rua [de São Bento]." Uma saída providencial, que lhes permitiu dar o alerta nacional e internacional, pôr em marcha uma campanha de apoio à Constituinte e manter os contactos com Costa Gomes, para levantar o cerco. Ao fim da manhã de dia 13, os parlamentares saíam do palácio, por entre filas de manifestantes. Deputados e direcções partidárias partiram para o Norte, de onde só voltaram a 17. No dia seguinte, a Constituinte reuniu-se. Os manifestantes já não ocupavam o largo e as ruas à volta do palácio. Mas o cerco ainda não tinha terminado.