Bush foi ferido e Rumsfeld é a primeira vítima da nova ordem
O anúncio da demissão do chefe do Pentágono foi feito horas depois de os democratas terem colocado um ponto final na "revolução republicana" e reconquistado o Congresso ao fim de doze anos, em eleições intercalares onde a rejeição da guerra no Iraque teve um papel central nas opções dos eleitores. Bush, "desiludido", promete trabalhar com os novos líderes do Congresso. Por Rita Siza, em Washington
A tremenda vitória eleitoral dos democratas nas eleições intercalares para o Congresso dos Estados Unidos resultou numa profunda alteração no equilíbrio do poder em Washington. E as ondas de choque sentiram-se de imediato: demitiu-se o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, símbolo da política da Administração para o Iraque - desastrosa segundo o veredicto de uma maioria do eleitorado. "Os dois concordámos numa conversa [na terça-feira] que este era o momento apropriado para aceitar a sua demissão", explicou o Presidente George W. Bush, que ao início da tarde apresentou a sua própria análise eleitoral."Estou obviamente desiludido com o resultado, e assumo a minha quota-parte de responsabilidades. Os americanos votaram numa nova direcção na Câmara de Representantes, e apesar de não haver resultados finais no Senado é muito claro que tiveram um óptimo resultado, tenho de lhes dar os parabéns", acrescentou. O Presidente usou um tom positivo para falar da nova maioria democrata e assinalou que "com o novo papel vem uma nova responsabilidade", prometendo trabalhar com os novos líderes do Congresso para estabelecer uma plataforma comum e avançar legislação em áreas como a educação, a imigração ou a economia.
Cooperação no dossier IraqueNa madrugada da vitória, a congressista da Califórnia Nancy Pelosi, que entrará na história como a primeira mulher a assumir o cargo de speaker do Congresso, o terceiro cargo institucional na hierarquia dos EUA, proclamara que "os americanos votaram na mudança. Agora chegou o tempo de os democratas liderarem".
A vitória do Partido Democrata foi histórica, significou a recuperação da maioria na Câmara dos Representantes - que lhe escapava desde 1994 - e pôs fim ao ciclo de vitórias consecutivas dos republicanos que alguns baptizaram como "revolução conservadora". No Senado, tudo permanece suspenso do resultado no estado da Virgínia, onde o duelo entre o democrata Jim Webb e o republicano George Allen só será decidido - mas nunca antes de Dezembro - por uma recontagem (Webb tinha sete mil votos de avanço num total de 2,3 milhões e se a sua vitória se confirmar os republicanos perderão também o controlo da maioria do Senado, uma vez que os candidatos liberais conseguiram conquistar os estados de Rhode Island, Pensilvânia, Ohio, Missouri e Montana).
O discurso democrata foi no mesmo sentido do de Bush - compromisso, moderação e bipartidarismo -, com Nancy Pelosi a considerar que os eleitores manifestaram o desejo de um "novo rumo", em que o interesse público se sobrepõe às estratégias partidárias.
Mas o que todo o país quer ver Bush discutir com os democratas é a situação no Iraque. "Sei que há muita especulação sobre as consequências desta eleição na estratégia para a guerra. A eleição mudou muita coisa em Washington, mas não mudou a minha responsabilidade de proteger o povo americano. E a guerra no Iraque é a frente mais importante da nossa guerra global contra o terrorismo", sublinhou o Presidente. "Não há política que mais precise de um novo rumo do que o Iraque. Os americanos sabem que a nossa estratégia não está a resultar. Temos todo o interesse em trabalhar com a Administração para alcançar uma solução", repetiu Nancy Pelosi.
Sobre a demissão de Rumsfeld, o Presidente esclareceu que os dois tinham chegado a acordo que era tempo de apresentar "uma perspectiva fresca" para a guerra. Há uma semana, quando perguntado sobre a sua confiança em Rumsfeld, Bush tinha garantido que ele cumpriria o mandato até ao fim; ontem, explicou que tinha decidido não falar sobre a possível saída do seu amigo e conselheiro, que já estaria a ser ponderada, para não interferir na campanha eleitoral. Para substituir o seu homem de confiança, Bush escolheu Robert Gates, um antigo director da CIA com três décadas de experiência na área da segurança nacional (ver perfil).
Como se salvarão os republicanos?Para muitos analistas, o regresso aos princípios fundamentais do republicanismo (na tradição de Rockefeller, Ford e Reagan) poderá ser a salvação desta Administração e possivelmente do partido, que tem pela frente uma difícil digestão da derrota eleitoral. Os comentadores debatiam apaixonadamente se os resultados das eleições deviam ser interpretados como um enorme sucesso democrata ou um espectacular falhanço republicano, e em especial da Administração de George W. Bush, consumida pela cada vez maior oposição pública à guerra no Iraque.
"Politicamente, chegámos ao momento em que a coligação entre os conservadores sociais e os conservadores económicos, que foi forjada por esta Administração, deixou de produzir resultados para os republicanos", considera Jerry Hagstron, editor do National Journal e autor do livro The Book of America: Inside Fifty States Today. "Definitivamente, este resultado poderá ser o fim do mito de que os republicanos são melhores gestores. E parece ser uma aposta do eleitorado nos democratas, que quando controlaram o Congresso durante 40 anos, sempre mantiveram a reputação de serem práticos, de fazerem as coisas, de produzirem resultados."
"Estamos a assistir à fase final de um realinhamento político regional que começou há 50 anos com a reconversão do Sul para os republicanos. Algumas das transformações de agora têm a ver com o Sudoeste, onde os republicanos fiscalmente prudentes e socialmente tolerantes foram penalizados", comenta Thomas Schaller, professor de Ciência Política da Universidade do Maryland. "A ironia", prossegue, "é que este ciclo vai acabar com a saída de republicanos moderados - que por causa da unidade do partido tinham estado a votar a favor da agenda evangélica do Sul - e a sua substituição por democratas progressistas."
Como assinala Schaller, dos 58 democratas que estavam a disputar lugares detidos por republicanos moderados, todos são contra a guerra no Iraque, todos são contra a privatização da Segurança Social, todos são a favor do aumento do salário mínimo, todos são a favor da investigação com células estaminais e só nove são contra o aborto. E todos ganharam. "Vamos ter um Congresso muito mais polarizado e com muito maior tensão política entre os republicanos mais conservadores que permaneceram e os novos democratas progressistas. A narrativa que tem vindo a ser apresentada, de uma maior convergência para o centro e a moderação, não corresponde à realidade", diz.