Um laboratório capaz de encontrar agulhas num palheiro

Em Karlsruhe trabalham os cientistas atómicos da UE, que garantem a segurança do combustível nuclear, e investigam casos de tráfico de materiais radioactivos

a Entrar nos laboratórios de investigação nuclear do Instituto de Elementos Transuranianos (ITU), em Karlsruhe (Alemanha) não é nada fácil. Ali querem ter a certeza de que nada entra - nem sai - que seja radioactivo. Bata branca e protecções de plástico sobre os sapatos, pelo menos, dosímetro ao peito para medir a radiação gama a que o visitante esteve submetido e absoluta obediência às máquinas que nos medem sinais de contaminação de radioactividade nas mãos, nos pés, no corpo todo são imprescindíveis. E não é para menos: ali trabalham os detectives atómicos da União Europeia. Entre árvores e campos verdes, este laboratório do Centro Conjunto de Investigação da União Europeia é um dos mais avançados no mundo desta área. A ciência forense nuclear é uma espécie de CSI para materiais atómicos, e pretende ser eficaz como os investigadores da cena de crimes na série de televisão.
Como é que determinado material radioactivo chegou ao local onde foi encontrado - a um ferro--velho na Holanda, por exemplo? De onde veio? Para que servia? Por que estava no sítio onde foi encontrado? E que idade terá? Estas são as perguntas para quais as cerca de duas centenas de cientistas europeus que ali trabalham procuram encontrar respostas, utilizando técnicas de análise física e química. Usam por exemplo sofisticados espectrómetros de massa, capazes de identificar partículas individualmente, partindo de um lenço de papel sujo com pó e algumas poeiras radioactivas - é o equivalente microscópico a encontrar uma agulha num palheiro.
Sem casa-de-banho
Os corredores da ala de laboratórios do ITU são anódinos, como os de qualquer universidade. Mas há um pormenor importante: nada de casas-de-banho. Isto porque seria preciso guardar e analisar todos os dejectos de quem a usasse, explica Franck Wastin, do gabinete de coordenação do ITU. "Isso seria muito caro", conta. Portanto, há que ser previdente, contar com todos os controlos pelos quais tem de passar, que incluem cabinas de metal onde temos de nos encostar, primeiro de costas, depois de frente, até chegar a uma casa-de
-banho.
Até os caixotes de lixo são de um amarelo impossível de passar despercebido, com o símbolo de perigo da radioactividade e as palavras, em alemão: radioactive abfaelle (lixo radioactivo).
É preciso um cartão com identificação pessoal para lá entrar. Toda a zona tem pressão negativa - para impedir que eventuais poeiras radioactivas saiam para a área de escritórios. E quando se abandona um dos laboratórios, é preciso parar numa antecâmara e pôr as mãos numa maquineta que vai fazendo uma contagem decrescente, de 10 para 0 (se não se estiver contaminado com radiação, claro), antes de poder sair.
Estas precauções todas são necessárias, embora o instituto de Karlsruhe esteja vocacionado para o controlo da segurança dos combustíveis nucleares civis - para produção de energia eléctrica, e não de armas. Somos um laboratório de investigação nuclear envolvido sobretudo na investigação da segurança e desenvolvimento do ciclo de combustível nuclear, para aplicações civis. O nosso foco é em materiais nucleares e parâmetros para o caracterizar", explica Karl Mayer, o responsável pelo programa de ciência forense nuclear do ITU, um dos vários institutos de que se compõe o centro de investigação da União Europeia.
"O Laboratório Nacional Lawrence Livermore, nos Estados Unidos, é que tem uma grande tradição de análise de materiais nucleares, mas trabalha com o programa de defesa dos Estados Unidos. Tem experiência em análise de materiais pós-detonação, para chegar a conclusões sobre a sua origem, análise do desenho das armas. Nós não, não é competência nossa nem da Comissão Europeia", clarifica, em declarações ao PÚBLICO.
Contra o tráfico
"Esta ciência começou na Europa, porque foi aqui que se verificaram os primeiros casos de contrabando de materiais nucleares, após o desmantelamento da União Soviética", explica Karl Mayer. "Foi concebida e desenvolvida na década de 1980, no contexto de casos de tráfico de materiais nucleares".
O ITU é a entidade de referência para o cumprimento das regulamentações do tratado europeu sobre a energia nuclear, o Euroatom. Mas lutar contra o tráfico nuclear é então uma das principais funções do ITU, ao qual chegam materiais suspeitos detectados em qualquer porto, aeroporto ou até sucata europeia, em especial nas zonas limites de Shengen. De 1993 a 2006, registaram-se 275 incidentes que envolveram a posse ilícita de materiais radioactivos, de acordo com a base de dados da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA). Destes, 15 envolveram urânio altamente enriquecido, como é usado nas bombas atómicas.
"Somos um laboratório de investigação nuclear envolvido sobretudo na investigação da segurança e desenvolvimento do ciclo de combustível nuclear, para aplicações civis. O nosso foco é em materiais nucleares e parâmetros para o caracterizar. O Laboratório Nacional Lawrence Livermore [EUA] é que trabalha com o programa de defesa dos Estados Unidos, e tem um foco diferente", explica Karl Mayer.
"As ciências forenses nucleares podem fornecer muita informação sobre a origem dos materiais radioactivos, para refazer o seu percurso. Mas também tem potencial dissuasor. Se o perpetrador tiver consciência de que pode ser encontrado através da análise de materiais, espera--se que isso evite que use esses materiais. Há, claro, um elemento forte de dissuasão", considera o cientista alemão. No entanto, para que isso aconteça, há que divulgar esse potencial. "Acho que não é muito conhecido. Toda a gente conhece a série de televisão CSI, mas o nosso trabalho é muito específico". O próximo passo é, por isso, fazer com que todos saibam o que podem fazer os detectives atómicos.

Sugerir correcção