Uma Copa de rara beleza. De certeza?

Juca Kfouri é um dos mais reputados comentadores desportivos brasileiros. O seu filho, Daniel Kfouri, é um fotógrafo premiado pela World Press Photo. Pedimos a ambos que olhassem para o Brasil e para a Copa que está aí à porta.

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Tinha tudo para ser uma Copa de rara beleza, com certeza. Dificilmente será, a 20.ª Copa do Mundo, a segunda no Brasil, 64 anos depois do Maracanazo, quando o Uruguai ganhou a final como se fosse a Grécia em Portugal.

Então, e durante oito anos, os brasileiros, segundo o dramaturgo Nelson Rodrigues, passaram a padecer do complexo de inferioridade, “complexo de vira-lata”, isto é, de cachorro sem pedigree.

De lá para cá, no entanto, a seleção brasileira ganhou nada menos que cinco Copas do Mundo, mais de 1

4 de todas já disputadas sempre sem uma derrota sequer.

A missão possível, agora, é o sexto título, o hexacampeonato, comandada pelo mesmo Felipão que conduziu ao penta em plagas asiáticas e que mexeu com os brios lusos na primeira década deste século.

Tarefa árdua, sem dúvida, pois não há mais Pelé nem Garrincha, tampouco Romário ou Ronaldo, embora haja Neymar, por mais que ainda longe de ser um Cristiano Ronaldo ou um Lionel Messi.

O Brasil receberá não uma, mas duas Copas do Mundo, concomitantes e complementares. A dos gramados, festiva, multicolorida, e a das ruas, vermelha e, certamente, preta. A primeira fará tremular a bandeira da FIFA. A segunda faz a FIFA tremer. Como tremeu, e por pouco não a suspendeu, na Copa das Confederações, em Junho

Julho do ano passado, o evento-teste que precede as Copas do Mundo. Copa que foi vencida pelo Brasil, por paradoxal que pareça, graças também às ruas, que inflamaram como nunca os torcedores mais abastados e presentes aos estádios.

Partiu deles o combustível, ao cantar o Hino Nacional à capela, que incendiou uma seleção que andava por baixo e que voltou a ser protagonista.

Para a surpresa da imprensa estrangeira, o país foi às ruas para protestar. O alvo não era a FIFA nem o futebol. Mas era também, simbolicamente, a transnacional do futebol, e seu padrão, o padrão FIFA.

Gota d’água que transbordou o copo da insatisfação popular: os estudantes, os sem-teto, os sem-terra, quando viram a suntuosidade dos estádios, que passaram a ser chamados de “arenas”, todos de padrão FIFA, se deram conta de que querem escolas, hospitais, segurança e transportes públicos da mesma qualidade.

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O Brasil que quer ser potência, que tirou mais de 30 milhões de pessoas da faixa de extrema miséria nos últimos anos, quer mais. Não basta ter escolas, é preciso ter boas escolas. Não basta poder comprar um automóvel, é preciso poder se deslocar em vias não congestionadas. O Brasil vive também o que se pode chamar de uma “crise do sucesso”. Quem não tinha nada agora tem e quer mais. Tudo indica que na Copa do Mundo o clima será o mesmo, agravado pelo não atendimento das reivindicações de um ano atrás.

Felizmente, ao menos, a democracia brasileira já não se assusta com o vermelho, de resto a cor do partido que está no poder, o Partido dos Trabalhadores, o PT de Lula e Dilma Rousseff.

Os black blocs, à caráter [mascarados] de preto, é que são elas, num país que tem como herança da ditadura que o infelicitou entre 1964 e 1985 polícias militares, treinadas para reprimir e jamais para prevenir.

Lula está tão preocupado que tem procurado os jornalistas da área esportiva e pedido moderação. A Presidenta tem se perdido em declarações que revelam a sua ignorância sobre as coisas do futebol, ao, por exemplo, exaltar as “cinco taças Jules Rimet ganhas pelo Brasil”, quando a seleção a conquistou por três vezes, não cinco, e obteve sua posse definitiva. Ou ao apostar numa propaganda simplória e prometer a “Copa das Copas”, por ser a primeira com oito seleções campeãs mundiais.

Fato é que o Brasil errou ao escolher os caminhos que escolheu para fazer a sua Copa.

A começar por ter prometido a “Copa do Mundo do capital privado” e estar organizando a Copa do Mundo do dinheiro público, num empreendimento que custará mais que as últimas três Copas somadas — a da Ásia (quase três bilhões de euros), a da Alemanha (dois bilhões) e a da África do Sul (mais de 5 bilhões de euros). Sim, a Copa brasileira custará mais de 10 bilhões de euros.

Porquê?

Porque o Brasil escolheu fazê-la em 12 cidades, mesmo que à FIFA bastassem oito.

O país, em vez de fazer a Copa do Mundo do Brasil no Brasil, optou por fazer a da Alemanha, a da Ásia. Mas fará a da África do Sul, com parcos legados em aeroportos e mobilidade urbana e com, pelo menos, quatro elefantes brancos em Brasília, Cuiabá, Manaus e Natal, onde nem sequer times da primeira divisão há.

Numa sucessão de absurdos como aconteceu na África, e em Portugal no Euro 2004, a festa das empreiteiras culminará com gastos de manutenção insuportáveis para as prefeituras que acabarão por querer implodir as novas arenas.

A desculpa também é velha: são palcos multiusos.

Pois os portugueses sabem muito bem que Madonna, Paul Maccartney, U2 não frequentam a simpática Leiria e que até o Michel Teló prefere se apresentar na Praça de Touros do Campo Pequeno e que nem Ivete Sangalo se apresentará em Cuiabá, fora do circuito do showbiz.

O país mais rico do planeta, os Estados Unidos, em 1994, sediou uma Copa do Mundo sem construir nem sequer uma nova praça esportiva. A França, quatro anos depois, construiu apenas uma, nos arredores de Paris, em Saint-Denis, o Stade de France. Então, a seleção brasileira jogou em Marselha no mesmíssimo palco que havia jogado 60 anos antes, na Copa francesa de 1938.

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Não bastasse, nós, brasileiros, partimos para bizarrices estarrecedoras.

Na França, em 1998, o presidente do Comitê Organizador Local (COL) da Copa do Mundo foi Michel Platini, que não era o presidente da Federação Francesa de Futebol. Na Alemanha, oito anos depois, Franz Beckenbauer, que também não presidia a Federação Alemã, emprestou sua imagem ao COL.

No Brasil, ironia das ironias, certamente por faltar uma grande estrela internacional do esporte mais popular da Terra, o presidente do COL é o presidente da CBF, a Confederação Brasileira de Futebol. Nem Pelé, nem Romário, nem Ronaldo, nem Zico, mas Ricardo Teixeira que, como seu ex-sogro João Havelange, teve de renunciar a tudo, ao cargo no Comitê Executivo da FIFA, inclusive, por ter recebido propinas da falida ex-gigante de marketing esportivo ISL, como comprovou a Justiça da Suíça. Pior: em seu lugar, tanto na CBF quanto no COL, assumiu José Maria Marin, octogenário filhote da ditadura brasileira, de péssima imagem pública e que, para desespero da cúpula da FIFA, que finge fazer um trabalho de purificação, ficou mundialmente conhecido ao embolsar uma medalha numa cerimônia de premiação aos campeões de um torneio de juvenis em São Paulo, no estádio do Pacaembu. O goleiro campeão, do Corinthians, ficou sem sua medalha...

Como dizia Tom Jobim, o Brasil, definitivamente, não é um país para principiantes e não é fácil entendê-lo.

Por exemplo: jornalistas do mundo todo presentes à Copa das Confederações mostraram-se perplexos com a magnitude das manifestações de protesto. Ruiu a falsa imagem do país do futebol, do Carnaval, das mulheres seminuas, do homem cordial. Porque o Brasil é muito mais o país que parece inesgotável na produção de jogadores talentosos do que, propriamente, o país do futebol. Até foi mesmo a pátria do “beautiful game”, como os ingleses rotularam. Mas que tem médias baixas de comparecimento de torcedores em seu principal campeonato, menos de 15 mil por jogo, inferior às médias das segundas divisões alemã e inglesa, abaixo da média do campeonato, pasme, dos Estados Unidos. Quaisquer pesquisas sobre tamanho de torcidas no Brasil dão como resultado que o primeiro contingente, 26%, 27%, é de pessoas que dizem não se interessar por futebol. Em segundo lugar, vem a torcida do Flamengo, seguida pelo do Corinthians.

Na Argentina, cuja escola de futebol é do mesmo nível, com quantidade menor porque, num país de população cinco vezes menor que a brasileira, pesquisas iguais revelam que o primeiro contingente é de torcedores do Boca Juniors, seguido pelo River Plate e só em terceiro os que não se interessam por futebol.

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Além do mais, é incomparável a reverência dos ingleses ao jogo confrontada com a brasileira.

O fato de o Brasil ser pentacampeão mundial, de ser o país do Rei Pelé e de tantos gênios do futebol, além da ocupação das praias, várzeas e ruas em torno de uma bola até mesmo de meia, reforça uma imagem que conduz ao exagero.

Outra compreensão equivocada é a do homem cordial, entendida como sinônimo de simples alegria, hospitalidade, boa educação e... passividade. Nada mais falso.

O cordial, na acepção do termo, vem do coração, do predomínio da emoção sobre a razão, não fosse o Brasil desde os tempos coloniais e do Império, assim como do período Republicano, um país repleto de conflitos regionais, como a Sabinada e Canudos, na Bahia, chimangos e maragatos, no Rio Grande do Sul — disputas entre brasileiros que poderiam ser comparadas, guardadas as devidas proporções, às guerras civis dos Estados Unidos ou da Espanha.

Quantos países, nos últimos 30 anos, puseram mais de um milhão de pessoas nas ruas como o Brasil, em 1984, clamando por eleições diretas para Presidente da República? Ou que, oito anos depois, voltou às ruas para depor o Presidente eleito?

Este Brasil está mais perto do da “Copa das Manifestações” do que o idealizado fora dele.

É preciso, ainda, para ser justo, lembrar que por mais que a FIFA mereça críticas, a entidade não pediu ao Brasil para sediar a Copa, ao contrário, foi o Brasil que se ofereceu e aceitou todas as condições, por mais leoninas que sejam.

Como já diziam nossas avós, o combinado não é caro nem barato.

A verdade é que o Brasil está em vias de fazer um anúncio de si mesmo por 30 dias e corre o sério risco de fazer um mau anúncio, de transformar o dito privilégio de receber o megaevento num tiro a lhe sair pela culatra.

Nada, porém, por contraditório que pareça que deva fazer desistir quem estiver resolvido a torcer por Portugal no Brasil.

Nós, brasileiros, haveremos de saber separar as coisas e receber bem quem nos visitar.

Afinal, torcemos por Cristiano Ronaldo&C.ª no embate contra a Suécia de Ibrahimovic, por mais que tenha sido lá, em Estocolmo, que o Brasil venceu sua primeira Copa, em 1958, e curou o “complexo de vira-lata”.

Os patrícios da pátria-mãe serão muito bem-vindos e sempre haverá uma combuca de tremoços para ser dividida entre copos de cerveja.

E se alguma piada de português chegar ao seu ouvido, não titubeie e pergunte: “Quer dizer que em vez de Pelé é Marin quem comanda a Copa e nós é que somos objeto de anedotas?”

Ou se alguém falar de seu “sotaque”, faça como o imortal Raul Solnado: “Ah, e nós é que temos sotaque?”     

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