“FC Porto foi fundado em 1906 (e não 1893) e não há indícios de Cosme Damião ter sido fundador do Sport Lisboa”

Historiador Ricardo Serrado diz que "a história dos clubes está por fazer".

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Ricardo Serrado Miguel Manso
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A acta de fundação do Sport Lisboa DR
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Fundação do FC Porto em 1893 DR
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Prova da actividade do FC Porto de 1983 DR

PÚBLICO: Há muitas diferenças nas origens e na história de FC Porto e Benfica?

Ricardo Serrado: Do ponto de vista histórico, há diferenças substanciais. As maiores diferenças existem entre Sporting e Benfica, porque são duas fundações quase antagónicas. Um nasce em berço rico e outro nasce com origens muito mais humildes. Mas no caso de Benfica e FC Porto também há muitas diferenças. Os fundadores de Benfica e FC Porto são pessoas com origens sociais, convicções políticas e comportamentos culturais substancialmente diferentes. O Benfica nasce de uma diversidade social, onde podemos encontrar pessoas de classe média alta, classe baixa e até órfãos, enquanto o FC Porto tem uma realidade mais regionalista e em que a sua base assenta numa classe média, uma certa burguesia portuense, liberal e republicana. O FC Porto surgiu com uma elite mais informada, alguns fundadores são activistas republicanos, enquanto o Benfica não está tanto ligada a uma componente política.

O que é que as fundações dos clubes permitem saber?

São importantíssimas. Os clubes são fundados por pessoas e com objectivos. O Sporting, por exemplo, nasce com objectivo de praticar ténis, porque era o único obrigatório nos estatutos. O Sport Lisboa nasce para praticar futebol. E o FC Porto nasce para jogar futebol e para se assumir como clube da cidade. Percebe-se para que se fundou uma determinada colectividade e percebe-se que identidade têm.

E a data de fundação, por que é tão importante ser o primeiro?

Essa é, para mim, uma questão secundária. Percebo que para um adepto seja uma coisa muito importante. Nascer primeiro que o outro é mais uma manifestação de uma extrema rivalidade. É mais um argumento para reforçar que determinado clube é melhor ou mais antigo.

Tem contestado alguns “factos” sobre a fundação dos clubes…

Há duas ideias basilares que gostava de destacar. Uma é que a história do Benfica, FC Porto e Sporting está por fazer. As histórias que existem, embora algumas tenham algum rigor e seriedade, são na sua maioria realizadas por sócios dos respectivos clubes, os quais, não obstante a sua competência e qualidades, não possuem metodologias científicas para produzir um trabalho historiográfico. E falta-lhe ainda isenção e idoneidade e o distanciamento devido para analisar e criticar de forma objectiva. Por outro lado, a maior parte dos trabalhos não se baseia em fontes coevas [da época], mas em referências bibliográficas que, por seu turno, já contêm erros. O caso mais evidente é o livro das Bodas de Ouro do Benfica, escrito por Mário de Oliveira e Rebelo da Silva, que é tido como uma bíblia por todos os autores benfiquistas, mas que, não obstante um trabalho notável do ponto de vista documental, é uma obra com muitos anacronismos e insuficiências ao nível do rigor histórico. Os erros contidos nesta obra reproduzem-se em todas obras do Benfica. E o mesmo acontece com obras em relação ao FC Porto e Sporting, embora o Sporting seja o clube com a história da fundação mais próxima da realidade. E esta é uma das razões por que o futebol é um terreno fértil em mitos. A segunda ideia é que ciência se caracteriza pelo rigor, isenção, idoneidade e honestidade intelectual. Para a ciência ser profícua é necessário evolução, mudança, abertura e busca do conhecimento. Eu próprio escrevi um livro sobre Cosme Damião e agora encontrei novos dados.

No seu livro sobre História do Futebol Português, contesta a data de fundação do FC Porto, considerando que a data real de fundação do clube é 1906 e não 1893. Em que se baseia?

A ideia de 1893 não resulta de um trabalho historiográfico, resulta de um trabalho de uma série de pessoas que são adeptos do FC Porto e que na minha opinião carece de validade. Existiu de facto um Futebol Clube do Porto em 1893, fundado aparentemente em Setembro. Existem referências nos jornais a esse clube, fundado por António Nicolau de Almeida, e que disputou a Taça do Rei de 1894, contra o Lisbonense. Este FC Porto durou cerca de um ano. Os adeptos e autores benfiquistas apontam duas questões para a não validade deste FC Porto, dizendo que não existem referências em jornais e que, mesmo tendo existido, não teve actividade. Nenhuma delas é verdade, porque o FC Porto fez pelo menos um jogo “oficial”.

Então por que diz que o FC Porto não deve assumir 1983 como data de fundação?

Em 1906, o FC Porto é fundado por José Monteiro da Costa, que tinha ido a Inglaterra e veio entusiasmado com o futebol. No livro da história do FC Porto de 1933, há um fundador, que é o António Martins, que diz: “O desconhecimento completo por parte dos sócios de tal jogo e a falta de dinheiro foram entraves. Como se sabe, o futebol no Porto era quase desconhecido.” Ou seja, na fundação do FC Porto de 1906 não há nenhuma referência a um clube anterior. Estamos a falar de dois clubes diferentes com o mesmo nome, embora eu admita estar errado se surgirem provas em contrário. Não encontrei nenhuma e fiz um trabalho profundo sobre esta questão. Nos próprios estatutos dos FC Porto, desde os primeiros estatutos até bem recentemente, assumia-se que o clube tinha sido fundado em 1906. Dizer que foi fundado em 1893 é uma revisão histórica forçada e sem fundamento científico.

Em relação ao Benfica, também contesta alguns dados?

Antes de mais devo repetir que a ciência se caracteriza pelo rigor, isenção e honestidade intelectual. Como tal, devo dizer que o meu livro sobre Cosme Damião contém alguma informação que carece de revisão. Isto é, necessita de ser actualizada, nomeadamente um maior questionamento sobre a fundação do Benfica. Fiei-me em demasia nas obras já escritas. Deve-se também a informação errada que consta histórias dos clubes, que são, muitas vezes, mitificadas por má interpretação de uma fonte, desconhecimento da realidade da época ou anacronismo. Sempre tive algumas dúvidas sobre a acta da fundação do Sport Lisboa de 1904. Dúvidas que mantenho e que com o tempo tive tempo de reflectir e de maturar.

O que contesta em concreto?

O Sport Lisboa foi efectivamente fundado em 28 de Fevereiro de 1904. Todos os documentos públicos o comprovam. A acta que fala de uma reunião na farmácia Franco, essa sim, deixa-nos algumas dúvidas. Não posso pronunciar-me sobre a veracidade, porque isso diz respeito ao Benfica, mas esse documento é público e deve ser olhado com visão crítica. A primeira vez que esse documento aparece é no livro dos 50 anos do Benfica, em 1954. Toda a gente sabe como se escrevia farmácia em 1904.

Com “ph”… [era com ph e na acta está com f]

O mito diz que essa acta foi escrita por Cosme Damião e que ele por modéstia não assinou. Esta explicação sempre me fez confusão, porque ou ele já sonhava que Benfica ia ser um grande clube ou não há nenhuma razão para não a assinar. Por outro lado, basta comparar a letra desta acta com outros escritos de Cosme Damião para perceber se foi ele ou não que escreveu a acta.

E foi?

Não posso dizer. Basta fazer a comparação. Até 1907 e 1908, quase todos os documentos do Benfica que são públicos são assinados por Manuel Gourlade, este sim o grande timoneiro do Sport Lisboa entre 1904 e 1908. Ele, José Rosa Rodrigues e Daniel Santos Brito são os três grandes mentores do Sport Lisboa. E não Cosme Damião. Não há nenhum documento do Sport Lisboa assinado por Cosme Damião. A acta está toda escrita com a mesma letra e não tem assinatura. Dá para perceber que não foi escrita por Manuel Gourlade. Cosme Damião também não comparece em nenhum treino de 1904 e os documentos disponíveis sobre os treinos não contêm o nome dele. Nunca encontrei qualquer indício de Cosme Damião ter sido fundador do Sport Lisboa. O que ele foi sim foi o grande impulsionador do Sport Lisboa e Benfica e talvez por isso tenha nascido o mito de que ele foi fundador do Sport Lisboa.

Quer dizer que Cosme Damião passa a ter papel relevante só em 1908, quando o Sport Lisboa se funde com o Grupo Sport Benfica, dando origem ao Sport Lisboa e Benfica?

Ele tem um papel importante a partir de 1907, quando o Sporting vai buscar oito jogadores do Sport Lisboa. Cosme Damião, Félix Bermudes e Marcolino Bragança apercebem-se da gravidade situação. No Verão, vê-se uma foto de dois deles com a camisola do Sport Benfica, que tinha sido fundado em 1906. É possível que eles tenham pensado em fechar o Sport Lisboa e ficar só com Sport Benfica. Mas acabam por fazer fusão entre os dois clubes em 1908, dando origem ao Sport Lisboa e Benfica. Tratando-se de uma fusão, parece-me correcto considerar 1904 a data da fundação, porque alguns elementos como o equipamento, a equipa de futebol e os sócios vêm de 1904. Há uma ligação entre o Sport Lisboa e o Sport Lisboa e Benfica.

Sei que colaborou com o museu do Benfica. Houve alguma resistência em aceitar estas novas informações que recolheu e que contradizem a história oficial?

Antes de mais, gostava de dizer que o Benfica tem um projecto muito ambicioso e muito interessante para o museu. É um projecto inovador do ponto de vista tecnológico. Vai deixar todos os benfiquistas extasiados. Colaborei com o Benfica durante dois anos. Foi uma honra, assim como seria trabalhar com Sporting e FC Porto. Quanto à pergunta, só queria dizer que a verdade vem sempre ao de cima. A minha saída deveu-se a incompatibilidades intelectuais, sou um historiador e acima de tudo defendo a verdade e o conhecimento, acima de qualquer clube. Nenhum clube está acima do rigor histórico e do conhecimento científico.

As diferenças na fundação tiveram impacto no rumo que os dois clubes seguiram?

Penso que sim. O FC Porto nasce como o clube da cidade. Logo desde 1906, nasce para jogar futebol e representar a cidade. Essa base vai se prolongar na história até aos dias de hoje e tem o expoente máximo com [o treinador] José Maria Pedroto e com Pinto da Costa, no final da década de 1970, em que aproveitam esse carácter mais regional para encetar uma luta contra o Sul, onde consideram que havia um sistema montado para promover a cidade de Lisboa. Esta rivalidade Porto-Lisboa já vem de longe, desde o século XIX, mais no campo político-económico. E o FC Porto passa essa rivalidade para o campo do desporto. E essa rivalidade Porto-Lisboa passa a ser mais uma rivalidade FC Porto-Benfica-Sporting.

Visto de fora parece que o FC Porto se assume mais como representante da cidade do Porto do que o Benfica como porta-estandarte de Lisboa…

Sim. A grande força do FC Porto assenta na vertente regionalista, um pouco à imagem do Barcelona. Representa não só a cidade, mas até a região Norte. O Benfica tem um carácter diferente. A diversidade social abre os horizontes e permite a inclusão de outro tipo de pessoas. E o facto de ter só jogadores portugueses nas suas fileiras até 1979 faz com que o clube tenha uma projecção mais nacional. Outro facto importante foi que o Sport Lisboa conseguiu no início do século XX vitórias importantes contra os então principais clubes criados por ingleses, como o Carcavelos em 1907, que estava invencível há cerca de dez anos, e isso vai fazer com que o Benfica recolha muita simpatia. Algo também gerado por o Benfica ter conquistado o primeiro campeonato de Lisboa. O Carcavelos e o Oporto Cricket, ambos ingleses, eram os clubes que mais ganhavam e essas vitórias ajudaram o Benfica a cimentar a sua vertente nacional, a sua portugalidade, que é um traço identitário do clube.

Será que o discurso regionalista do FC Porto travou algum crescimento nacional do clube?

Como muitas coisas, favoreceu e prejudicou simultaneamente. Por um lado, esse discurso regionalista dotou o FC Porto de uma identidade e deu-lhe uma grande força. Ainda hoje os jogadores que vão para o FC Porto sentem a mística de representar a cidade, de serem quase “anti-sulistas”. Existe uma bandeira pata defender, como os rebeldes que lutam contra o poder instituído. Isso deu um sentido para a existência do FC Porto, que até 1976 era o terceiro clube e às vezes até o quarto. Esse sentido ajudou-o a transformar-se no dominador dos últimos 20 anos. Por outro lado, esse regionalismo tira-lhe alguma dimensão nacional e internacional. Os emigrantes são maioritariamente benfiquistas, mas também não é em 20 anos que se muda uma realidade destas.

Em relação ao Benfica, um dos traços identitários é a portugalidade. Hoje temos uma equipa quase sem portugueses. Isso afectou a identidade do clube?

Penso que afectou fundamentalmente os sócios, que durante muitos anos se habituaram a ter uma equipa só com portugueses e a ter a base da selecção nacional. Conheço muitos benfiquistas que se sentem defraudados com isso, mas é algo que emerge nos momentos maus e também tem a ver com um certo nacionalismo que ainda existe. Na minha opinião, as equipas terem muitos estrangeiros é um sinal da globalização e os clubes têm de se adaptar. Ser português não é melhor nem pior do que ser brasileiro, ucraniano ou moçambicano.

Como é que a águia surge associada ao Benfica e o dragão ao FC Porto?

A águia no símbolo do SLB aparece pelo menos em 1908 (no ano da fusão), embora seja muito provável que a mesma conste na altura da criação do Sport Lisboa, embora não tenha isto como certo. A versão oficial diz-nos que a águia vem desde 1904, no entanto, nunca encontrei nenhum símbolo do SL em fontes coevas. Segundo alguns autores do SLB, a águia foi sugerida logo nos tempos iniciais por simbolizar glória, altos voos, que era o que se desejava para a nova agremiação.

O caso do FCP é muito pertinente, porque o próprio Dragão simboliza a união do Clube com a cidade. Em 1906 o símbolo do clube é apenas uma bola de futebol com as siglas FCP - a bola que ainda hoje serve de base ao símbolo. Em 1922, o clube recebe as armas da cidade e com elas o dragão (representado em vários monumentos da cidade) - segundo Joel Cleto, as armas e o dragão fazem parte da cidade invicta desde 1837.


O dragão e as armas da cidade do símbolo do FC Porto desde 1922 são uma clara demonstração da umbilicalidade do FCP com a cidade do Porto.


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