Classes e rebeliões sociais no Brasil
O Mundial pode tornar-se uma montra não da “potência emergente”, mas do potencial de rebelião popular que este país encerra.
Deixando de parte a pequena e super-rica elite económica (que, como sabemos é, de facto, quem domina), podemos dizer que, quer a classe média, quer a classe trabalhadora brasileira passam por uma profunda recomposição, a qual se reflete nas orientações, subjetividades e dinâmicas de ação de diferentes segmentos dentro desses conjuntos mais vastos. Dir-se-á que tanto a “classe média” como a “classe trabalhadora” se subdividem internamente, cada uma delas, entre um setor estabelecido e acomodado e um setor em movimento que se debate hoje pela redefinição da sua condição e estatuto. A classe média tradicional (estabelecida), constituida por grupos poderosos e de elevado estatuto social, defende os seus privilégios, que deixa transparecer através dos seus preconceitos, comportamentos arrogantes e tiques de despotismo para com os mais humildes e pobres, aos quais, em geral, nega o direito a terem direitos. Por isso erguem em seu redor barreiras de opacidade e estigmas de todo o tipo. Mesmo aqueles que, tendo saído da miséria, ambicionam ou reivindicam o acesso a bens de consumo e a um estilo de vida mais digno, são rejeitados e olhados de lado. Nas suas múltiplas obsessões, essa classe tem como principais inimigos o PT (Partido dos Trabalhadores, de Lula da Silva) e as camadas mais pobres e miseráveis que, com a ajuda do “petismo”, já frequentam os Shoppings, já compraram carro, os seus filhos já frequentam a escola até à universidade e começam a viajar de avião, coisa que este grupo (habituado a recrutar aí as suas domésticas e serviçais) considera um sacrilégio.
À sombra deste segmento, e, de certo modo, em disputa com ele, encontra-se uma “classe média emergente” (uma nova camada da classe trabalhadora, qualificada e com emprego formal), que descolou da situação de miséria à custa dos programas sociais e do crescimento económico, e que ganhou consciência de que pode, finalmente, aceder a direitos e a uma condição social confortável. Segmentos jovens, que trabalham, estudam, ou trabalham e estudam, vivendo nas periferias das principais cidades, que aprenderam a socializar-se e se aproximaram das novas modalidades de ativismo por via das redes sociais e da linguagem da Internet. Trata-se de um precariado rebelde, mas por outro lado sensível aos instintos consumistas e individualistas da classe média. Foram sobretudo estes novos setores emergentes que, em junho de 2013, encheram as ruas e praças de centenas de cidades brasileiras clamando por mais reformas, por mais transparência e o fim da corrupção, por melhores transportes e qualidade de vida urbana, enfim por verdadeiros sistemas de saúde e de educação públicas no Brasil. Essa foi a primeira onda de rebeliões mobilizada não só contra os aumentos do custo dos transportes urbanos mas contra os gastos sumptuosos então anunciados para a organização dos grandes eventos (em especial o Mundial de Futebol de 2014). É claro que nos momentos mais intensos de contestação, esses movimentos foram “cavalgados” pelos grandes média e a própria classe média estabelecida veio também para a rua gritar que “o gigante acordou”, mas por motivos contrários, visto que a mudança que pretendiam (e pretendem) é arredar o PT do poder para impor o seu programa neoliberal puro e duro, e o regresso da velha ordem da violência contra o povo e os ativistas (em geral acusados de “vândalos”).
Se é verdade que este último segmento é parte da classe trabalhadora, ele distingue-se, no entanto, por um lado, do proletariado subalterno, que sobrevive à custa de programas como o bolsa família, que permanence nas franjas da informalidade e próximo da miséria, composto por varredores de lixo, pelo setor dos seguranças privados, em regime de trabalho temporário (e subcontratado), domésticas e empregados precarizados e pouco escolarizados dos mais diversos serviços, e, por outro lado, distingue-se ainda da classe operária tradicional, organizada, simbolizada pelos trabalhadores metalúrigicos do ABC, onde o PT e a CUT têm a sua origem e mantêm as suas mais sólidas bases de apoio.
O mesmo que se disse para as classes médias, pode dizer-se da classe trabalhadora, também ela dividida entre uma facção mais “acomodada” e outra mais “indignada” e rebelde. Desde o início deste ciclo que o Brasil assistiu a grandes mudanças, principalmente as promovidas pelos governos do PT. Ora, tais mudanças, independentemente do seu impacto progressista na economia e na sociedade, deram lugar à formação de novos setores profissionais e quadros dirigentes, com origem no campo sindical, os quais corporizam o já referido segmento da classe trabalhadora organizada e “acomodada”, não tanto porque seja anti-reformista, mas porque se deixou “anestesiar” pelo poder (simbólico e real) das instituições que dirige e onde obtêm algumas “benesses”, reconhecimento e protagonismo que nunca tiveram. É contra esta camada que a classe média estabelecida (sobretudo a que se concentra na região de São Paulo) está crispada e inquieta porque foi ela que – apesar de tudo – abriu novas perspetivas à classe trabalhadora e aos antigos “caipiras” miseráveis, disponíveis para qualquer tarefa. Mas, por outro lado, estes setores mais ou menos acomodados no aparelho de Estado, ou ocupando lugares de relevo no sistema político, debatem-se com a estagnação económica e os bloqueios face às promessas e expectativas que criaram, muitas delas inscritas na própria constituição brasileira. O sistema democrático do país desenvolveu desde o início da década de 1990 um conjunto de mecanismos de “blindagem” apoiados em alianças iníquas entre partidos, e que, de certo modo, estabeleceu uma barreira intransponível entre as reivindicações e necessidades das diversas camadas da força de trabalho e da base da sociedade, ao mesmo tempo que parece prisioneiro de forças ocultas, de interesses económicos poderosos, dos mais diversos e sórdidos tráficos e redes de influência, inclusive parecendo rendido ou impotente perante o poder esmagador dos meios de comunicação social, antigos aliados desses interesses e pouco disponíveis para a construção de um efetivo espaço público democrático que dê expressão à pluralidade da sociedade brasileira em toda a sua complexidade.
Apesar das divisões entre esses grupos e classes sociais, o descontentamento pode virar-se contra um sistema que se mostra incapaz de dar o salto em frente. E o cenário da Copa 2014 pode servir de pretexto. É nesse sentido que nos últimos tempos se vêm observando repetidos sinais de agitação de diversas camadas sociais desprotegidas, como aconteceu em fevereiro passado com a greve “selvagem” dos Garis (varredores de rua) no Rio de Janeiro, que, passando por cima da direção sindical conseguiram negociar e obter uma vitória clara numa série de reivindicações salariais e de condições de trabalho, na mesma linha das grandes rebeliões operárias em 2012 no Complexo de Suape (no Recife, NE do Brasil) envolvendo cerca de 40 mil trabalhadores, ou dos protestos de junho de 2013 e, nas últimas semanas, com várias situações de revolta e greves clandestinas no sector dos transportes públicos em São Paulo (além de outros, como os metalúrgicos), cujas ações incluíram diversos cortes de vias públicas e lançaram o caos na cidade. Neste contexto, uma sondagem do passado dia 22 de maio revela que: para 90% dos paulistas há corrupção na organização da Copa; 76% acham que o Brasil não está preparado; 45% são a favor da copa, mas 43% são contra (e 10% indiferentes); e mais, 52% são a favor dos protestos mais recentes (em junho de 2013 as manifestações de então tiveram o apoio de 89% dos paulistas). Tudo isto faz crer que o descontentamento pode ampliar-se com o início do Campeonato Mundial de Futebol, e conjugar-se com iniciativas de outros grupos no terreno, como os movimentos dos “trabalhadores sem teto” e ativistas anti-Copa, que desde o ano passado vêm programando ações de protesto. O Mundial pode tornar-se uma montra não da “potência emergente”, mas do potencial de rebelião popular que este país encerra.
Professor da Faculdade de Economia; investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra