A Bélgica uniu-se em redor dos red devils

Selecção de Marc Wilmots é apontada como a grande candidata a surpreender no Brasil e é um dos raros factores de coesão entre flamengos e valões. A comunidade belga de São Paulo reforçou o apoio no treino deste sábado.

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Kompany, um jogador símbolo da unidade da Bélgica Nacho Doce/Reuters

Nas últimas décadas, os belgas têm discutido até à exaustão a possibilidade do país dividir-se, com a separação da Valónia e da Flandres. Entre os raros factores de coesão das duas comunidades destacam-se a monarquia e os êxitos desportivos, com a selecção de futebol à cabeça. Nos tempos mais recentes, os êxitos da equipa nacional, alcunhada de “Red Devils”, mobilizaram os belgas para pouco habituais manifestações de orgulho patriótico sob uma bandeira comum. Formada por uma “geração de ouro” de jovens e talentosos jogadores, a selecção alcançou um apuramento sem mácula para o Mundial, sendo agora apontada como a principal candidata a surpreender no Brasil. As expectativas são altas e o êxito ou fracasso promete ter repercussões em casa.

Totalmente confiante no sucesso da equipa está a comunidade belga residente em São Paulo que “invadiu”, este sábado, o último treino dos “Red Devils” em Mogi das Cruzes, na região metropolitana paulistana, antes da partida para Belo Horizonte para defrontarem hoje a Argélia (17h, em Portugal), na partida de estreia do Grupo H. Em clima festivo, adeptos flamengos e francófonos, equipados a rigor com as cores da selecção, entoaram cânticos, gritando palavras de apoio aos jogadores.

Um ambiente idêntico, mas em muito menor dimensão, aquele que se assistiu em Outubro do ano passado, quando a Bélgica bateu a Croácia (2-1), em Bruxelas, garantindo o primeiro lugar invicto na sua qualificação e a presença directa no Brasil. Nesse dia, milhares de belgas festejaram na Grand-Place da capital. Nessa noite, em declarações ao jornal Flanders News, um jovem interpretou o êxito: “Na selecção temos jogadores de diferentes origens e culturas. Mas, pelo menos, eles cooperam e jogam como uma grande equipa. Os nossos políticos podem aprender uma lição com isto.”

“Geração de ouro”
Com a braçadeira de capitão, Kompany é uma das grandes estrelas do grupo. As suas qualidades como líder e o comportamento modelar rendem-lhe igualmente a admiração geral de adeptos belgas e companheiros de equipa. Neste sábado, em Mogi das Cruzes, foi um dos jogadores com quem o seleccionador Marc Wilmots mais falou durante o treino. Ele é o “patrão” e o homem de confiança do técnico dentro das quatro linhas. Um exemplo que vai para além dos relvados. Embaixador da FIFA para a organização SOS Children, participa também em múltiplas acções na Bélgica junto de adolescentes desfavorecidos. A par destas actividades filantrópicas, juntam-se uma grande habilidade e versatilidade em campo. Mas o seu talento está longe de ser um caso isolado na actual fornada de “Red Devils”.

Nomes como Thibaut Courtois (Atlético de Madrid), Jan Vertonghen (Tottenham), Kevin De Bruyne (Wolfsburgo), Marouane Fellaini (Manchester United), Moussa Dembelé (Tottenham), Axel Witsel (Zenit), Romelu Lukaku (emprestado pelo Chelsea ao Everton), Christian Benteke (Aston Villa, mas que ficou de fora do Mundial devido a lesão) ou a sua estrela maior Eden Hazard (Chelsea) colocam bem altas as expectativas. E tudo sem política à mistura, em contraste com um passado não muito distante na equipa nacional, em que eram nítidas as divisões entre os jogadores das duas grandes comunidades do país.

Para esta harmonia contribuiu também o treinador Marc Wilmots, ex-glória da selecção, que assumiu os “Red Devils” em Maio de 2012, rendendo Georges Leekens, após o falhanço na qualificação para o último Europeu. “Política e ego não têm espaço nesta equipa”, garantiu recentemente o técnico, durante uma entrevista ao jornal brasileiro Lance. “Eu mesmo sou da Valónia francófona e a minha esposa é flamenga. Os nossos filhos estudam numa escola do Norte, ou seja, são educados em holandês. A nova selecção é bem-sucedida porque combina o que temos de mais forte, sem jamais fazer política. Todos trabalhando juntos. Não importa se são da Valónia ou da Flandres (…) Defendemos uma só bandeira”, garantiu o ex-internacional belga que, tal como Kompany, domina as três línguas oficiais do país e tem até uma curta experiência política no currículo. Em 2003, após pendurar as chuteiras, candidatou-se e foi eleito para o Senado.

Conduzida por Wilmots, a selecção belga dominou a fase de qualificação para o Mundial, superando a Croácia, Sérvia, Escócia, País de Gales e Macedónia. No final, os “Red Devils” só cederam dois empates, vencendo as restantes oito partidas, com 18 golos apontados e apenas quatro sofridos. Confirmava-se o regresso a uma fase final de uma grande competição, após um jejum de 12 anos. E, para muitos analistas, esta geração de estrelas é superior à que foi vice-campeã europeia em 1980, alcançando os quartos-de-final do Mundial de 1982 e semifinalista em 1986, no México, sob a batuta de jogadores como Pfaff, Scifo, Gerets, Renkins, Vercauteren, Coek, Vanderberg e Ceulemans.

Revolução na formação
O actual potencial futebolístico belga começou a desenhar-se no início do século XXI, após o desaire no Euro 2000, organizado conjuntamente pela Bélgica e Holanda. Os “Red Devils” caíram logo na fase de grupos e soaram os alarmes na federação. Foi elaborado um plano detalhado para o desenvolvimento do futebol de formação, estabelecendo-se um compromisso com os clubes para uniformizar o sistema de jogo nas camadas jovens:  um 4-3-3, com extremos, potenciando a técnica individual, maior controlo táctico e qualidade de circulação da bola a meio-campo. A componente do futebol de rua foi também valorizada, aliando a técnica ao prazer de jogar, o que captou jovens promissores dos subúrbios das principais cidades, muitos deles filhos de imigrantes.

O modelo funcionou como o comprova o interesse de grandes clubes europeus nas jovens promessas do futebol belga. A experiência adquirida por esta exportação prematura de talentos está a gerar dividendos para a selecção nacional e receitas para os cofres dos clubes formadores. Wilmots em particular tem sabido aproveitar o elevado nível competitivo a que os seus jogadores se adaptaram nos principais campeonatos do continente.

Mas, no Brasil, a mente de Wilmots não estará apenas virada para o presente promissor. O treinador quer também acertar contas com o passado. Enquanto jogador, este antigo médio ofensivo contribuiu para outro capítulo virtuoso da história dos “Red Devils”, com presenças nos mundiais de 1990, 1994, 1998 e 2002, apesar das classificações modestas nas fases finais. O último grande torneio, disputado na Coreia do Sul e Japão, tirou muitas horas de sono ao agora seleccionador.

Nos oitavos-de-final da prova, a Bélgica enfrentou o Brasil. Pouco impressionados com as camisolas amarelas, treinadas por Luiz Felipe Scolari, que iriam conquistar dias depois o quinto título mundial do seu historial, os europeus abriram o marcador, aos 35’, mas o árbitro jamaicano Peter Prendergast anulou o lance sem razão aparente. Os canarinhos acabaram por vencer por 2-0, mas o resultado nunca convenceu o capitão Wilmots, autor do golo “fantasma”. Doze anos depois, já admitiu que o primeiro objectivo da sua equipa é ultrapassar a fase de grupos (que disputa com a Rússia, Coreia do Sul e Argélia) é voltar a alcançar os oitavos, mas aposta agora num desfecho diferente. E Portugal pode ser um dos possíveis adversários no caminho belga.

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