Wolinski, Cabu, Charb, Tignous: mortes choradas com lápis que sangram

Entre as vítimas do ataque ao Charlie Hebdo estão "referências extraordinárias" do cartoon político. "Tiros disparados no coração de uma tradição muito importante, absolutamente libertina", diz João Paulo Cotrim.

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Uma imagem de Wolinski numa manifestação em Marselha esta quarta-feira BORIS HORVAT/afp
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Jorge Sampaio em 2006 no Museu de Imprensa no Porto com uma caritcatura de Wolinski Nelson Garrido

"Não conheciam nem deus nem mestres", continua o antigo director da Bedeteca de Lisboa, "e isso é um oxigénio importantíssimo". A morte destes quatro cartoonistas  o director do jornal satírico, Stephane Charbonnier (ou Charb), e alguns dos seus fundadores e dos nomes mais importantes do cartoon político como Georges Wolinski, Jean Cabut (que assinava como Cabu) e Bernard Velhac (Tignous) – está a ser chorada com lápis que sangram. Ilustradores e desenhadores de todo o mundo como Zep ou Plantu partilham nas redes sociais a sua visão do ataque ao Charlie Hebdo e quase todos escolhem esses elementos para o lamentar.

Outro símbolo do "massacre", nas palavras de Luís Humberto Marcos, director do Porto Cartoon, que teve Wolinski como presidente do seu júri na última década, é o desenho em fundo negro que proclama: Je suis Charlie. Nele, a boca de uma espingarda é estancada com um lápis.

O Museu Nacional da Imprensa, organizador do Porto Cartoon, decretou quarta-feira uma semana de luto pela morte de Wolinski e seus colegas. Georges Wolinski tinha 80 anos e ganhou o Grande Prémio do importante Festival de Angoulême em 2005. "Perde-se uma voz que sempre se manifestou intranquila, um grande defensor da liberdade mais livre que soube dessacralizar alguns preconceitos", lembra Luís Humberto Marcos. Recebeu a Legião de Honra francesa apesar de considerar, como disse ao PÚBLICO em 2009, que o talento da sua profissão "é mostrar bem as diferenças entre o que os políticos dizem e o que eles fazem, entre o que parecem e o que são". Tinha como temas fétiche as mulheres e o sexo, "um humor ousado, mas sempre fino" nas palavras de Luís Humberto Marcos. Em 2014, recebeu o título de cidadão honorário do Porto Capital do Cartoon.

Cabu faria 77 anos no dia 13 e afirmava-se politicamente à esquerda. Apaixonado pelo jazz – era a única música que ouvia –, era colaborador do Charlie Hebdo desde 1970. Tal como Wolinski, era um polinizador do humor, espalhando os seus desenhos por várias publicações ao longo das décadas, satíricas e generalistas, diários e revistas. Hara-Kiri Hebdo, Pilote, Le Canard Enchaîné, Le Nouvel Observateur, Paris Match, Le Monde ou Le Figaro são alguns dos títulos que acolheram desenhos de Cabu ou Wolinski. Eram, respectivamente, "o deão e o pai espiritual de muitos ilustradores e caricaturistas de hoje", como postulou quarta-feira o Le Monde.

São os nomes mais conhecidos de um grupo de profissionais mortos no seu local de trabalho por homens armados. "Perdas avassaladoras no meio do cartoon", categoriza a crítica e comissária de BD Sara Figueiredo Costa, "mas sobretudo um ataque à liberdade de expressão e ao exercício livre do jornalismo".

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O último cartoon de Wolinski foi para o Paris Match

O mês de Maio de 1968 é uma data incontornável nas carreiras de Wolinski e Cabu, mas também nas das outras vítimas deste tiroteio. Há um traço geracional destes desenhadores e destas publicações "directamente ligadas à tradição libertária e ao Maio de 1968", recorda João Paulo Cotrim. Nos seus traços, liam-se ideias e ideais. Cabu estreou em 1963 uma das suas personagens mais conhecidas, Le Grand Duduche um jovem utópico de óculos redondos, muitas vezes confundido com um alter-ego do seu autor, cuja história, à medida que entrava na década seguinte, era cada vez mais de consciencialização política, nomeadamente antimilitar. Já Wolinski, na sequência do Maio de 1968, fundou com o cartoonista Siné o jornal de intervenção L’Enragé, por exemplo.

"São referências extraordinárias porque além do humor de intervenção tinham uma visão muito surrealista da vida", diz Osvaldo Macedo de Sousa, especialista em cartoon político e comissário do festival AmadoraBD. "Desde 1968, a sátira e a intervenção têm descambado para o politicamente correcto e eles nunca se dobraram. Eram pedagogos que estavam alerta e que nos punham sempre alerta. Não podemos ficar cegos e estes assassinatos são para tentar cegar-nos", frisa.

Tal como Cabu, um dos pioneiros do género a que se viria chamar a reportagem em banda-desenhada e que se destacou pela cobertura do processo Ben Barka, Tignous, de 57 anos, era um apaixonado pelo noticiário, pela actualidade. Um dos seus trabalhos editados em livro é exactamente a compilação do acompanhamento diário do caso Colonna, um militante independentista corso que assassinou um prefeito (equivalente a um governador civil) da Córsega.

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E depois havia Charb, o director-ilustrador de 47 anos cuja rubrica fixa no Charlie Hebdo se intitulava "Charb não gosta de pessoas" e que desde 2009 dirigia o atribulado jornal. Tinha duas personagens de uso frequente: o gato Maurice e o cão Patapon, unidos pelo seu anticapitalismo e pelas piadas a puxar à escatologia. O seu traço distintivo eram as personagens de tez amarela, olhos esbugalhados e moral a condizer. "Era a alma, nunca se vergou. Independente, era um baluarte como chefe de uma linha política", recorda Macedo de Sousa, que conhecia muitos destes desenhadores.

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Desenhadores de imprensa, cartoonistas, autores de BD, ilustradores. Além do Charlie Hebdo, tinham outros elementos em comum. Traços próprios, específicos de cada autor, mas um ethos comunitário. Wolinski, recorda Luís Humberto Marcos, "tinha sempre uma frase oportuna para além do desenho que nos suscitava uma gargalhada". "Todos são unidos pelo estilo suportado pela rapidez, tem de ser rápido no comentário", escolhe João Paulo Cotrim. No caso de Wolinski, "é como se desenhasse as ideias. E [há] a omnipresença da palavra. Os cartoons são palavrosos, são gritos, são asneiras, e todo o desenho obedece a isso". No centro de tudo, "a figura humana, o indivíduo".

Pedro Moura também identifica esse "desenho de uma linha simples" – "é quase uma assinatura caligráfica que faz o desenho". Esse é um dos papéis fundamentais destes cartoonistas, dos mais velhos e dos mais jovens, diz o crítico. O outro é o "cultivo de um determinado tipo de cartoon crítico, muito agressivo em termos políticos, económicos e que ao mesmo tempo é mal comportado – o que é necessário, muitas vezes ultrapassa o decoro burguês". O gosto, o limite. A imagem de um grande café na página de jornal que João Paulo Cotrim evoca para descrever um espaço de liberdade em que "é muito importante o lugar do humor, do riso, da liberdade de rir, mesmo que parvamente, das coisas mais importantes". Para Cotrim, essa "é outra das lições que nos deram, são mártires disso mesmo".

O último cartoon de Charb, publicado na edição desta quarta-feira, fez-se de uma figura amarela, com os olhos esbugalhados e desencontrados, vestido como um guerrilheiro e que atentava, perante a verdade que o titulava "Ainda não houve atentados em França" – "Esperem, temos até finais de Janeiro para dar os votos de Ano Novo". Em 2012, na sequência do atentado que teve como alvo a redacção do jornal, no final do ano anterior, Charb disse ao Le Monde: "Não tenho filhos, não sou casado, não tenho carro, não devo dinheiro ao banco. O que vou dizer pode parecer um pouco pomposo, mas prefiro morrer do pé do que viver de joelhos."

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