Regressemos à interessante questão formulada por José Pacheco Pereira: uma vez que durante a nossa vida não temos tempo para ler as grandes obras do passado, valerá então a pena ler livros novos? A pergunta funda-se numa razão lógica e pragmática: sendo limitado o tempo de uma vida, o tempo gasto nas novidades é tempo roubado ao investimento nos valores seguros e consagrados. Assim colocada, a questão deixa entrever uma grande desconfiança em relação à literatura do nosso tempo, avança com a ideia explícita de que fracas são as possibilidades de acrescentar o que quer que seja ao que já foi escrito e pensado. Este discurso vai desaguar naquele que, em todas as épocas, nos diz que os livros e a literatura chegaram ao seu fim e para o qual serviria como epígrafe estas palavras de Beckett: “Fini, c’est fini, ça va finir, ça va peut-être finir”. Ora, todos esses discursos da morte que se comprazem numa estética do fim tiveram sempre que se confrontar com eloquentes desmentidos. Recordemos que o jovem Rimbaud disse que “depois de Racine, o jogo começou a abolecer”; e que uma figura ilustre da vida literária francesa proclamou em 1834 com grande aprumo: “A grande literatura morreu: eis um facto que não precisa de ser provado”. E no artigo Littérature da Encyclopédie procurava-se “as causas da decadência da literatura, cujo gosto desce todos os dias mais, pelo menos na nossa nação”. Hoje sabemos que ao mesmo tempo que se faziam estas proclamações vigorosos muitos desmentidos estavam a surgir. Deve ser dito que o discurso de Pacheco Pereira não coincide exactamente com estes discursos que hoje tanto nos divertem. Mas tem algumas afinidades. Desde há quase dois séculos que cada época vê o mundo como esgotado; e a nossa época vê-o a chegar a um fim que é o do espectáculo integral, inimigo das coisas da literatura. Mas é preciso contar com os erros de perspectiva, com o facto de, obrigatoriamente, estarmos demasiado imersos no nosso tempo para perceber o que se vai destacar por não coincidir totalmente com ele. Pacheco Pereira reivindica a prerrogativa de voltar as costas ao seu tempo para se alimentar – com grande vantagem – do património do passado. Mas isso foi o que sentiram os homens cultos em todas as épocas. Neste aspecto, difícil é dizer que houve, perto de nós, uma catástrofe histórica. O que houve, isso sim (e podemos medi-la objectivamente com instrumentos precisos), foi uma subida em flecha do teor da tagarelice, que cria a ilusão de que nada há para além dela. Por exemplo, a “magia negra” do jornalismo (e refiro-me sobretudo àquele que as televisões nos proporcionam) é hoje muito mais negra do que era no tempo de Karl Kraus e é dotada de um poder muito mais invasor. Tão invasor que até dá a impressão de que o jornalismo está a engolir a literatura. Não o jornalismo que se apresenta enquanto tal, institucionalizado e profissional, porque esse está em declínio, como sabemos, mas o jornalismo que passou a estar em todo o lado, com a sua linguagem servil, pré-fabricada, imediata. Neste sentido, a maior parte da produção literária é da ordem do jornalismo, limita-se a amplificar a “reportagem universal”. Proporcionalmente, o débito desta literatura-jornalismo é com toda a certeza muito maior do que era no tempo de Mallarmé; mas, em termos absolutos, não podemos afirmar com segurança que a nossa época é mais pobre. Só podemos afirmar que o ruído é muito maior e que, por isso, se torna muito mais difícil perceber onde se eleva a potência silenciosa da literatura e do pensamento que dá forma e firmeza ao silêncio.
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