Quando há tantos problemas pelo mundo, pode parecer estranho voltar à língua, em particular a língua escrita, mas este ano é apropriado. É que, embora tenham espalhado que só em 2016 é que o acordo ortográfico (AO) de 1990 entra em vigor em todo o país, a data é uma falácia. Na verdade, o dito AO já contamina quase tudo: escolas, meios de comunicação social (exceptuando alguns heróicos resistentes), instituições estatais e privadas e um sem-número de alegres seguidores da coisa. Dir-se-ia portanto que, tal como pagamos a dívida pública a juros mais altos do que os outros e ainda louvamos tal solução, nos embrenhámos na novidade ortográfica desejosos de colher os seus tão apregoados benefícios. Mas, se já tantos o aplicam e tão afincadamente, não deveriam esses benefícios ser visíveis? Não deveríamos ter já a tão apregoada “ortografia comum” nos países onde o português é usado como língua oficial ou de trabalho? Teoricamente sim, na prática… Não. Ainda agora se anunciou que a (excelente) Companhia das Letras brasileira vai começar a ter edições portuguesas. Pergunta: para quê? Por que não vender em Portugal as edições brasileiras a preços normais? Não é, afinal, a mesma língua? A mesma ortografia?
Vejamos um exemplo. Ainda há dias, o ciclo do cinema de expressão alemã em Lisboa abriu com um filme, As Irmãs Amadas, baseado no trio amoroso que teve como centro o poeta Friedrich Schiller. Era legendado em português, sim, mas do Brasil. A dada altura, uma das irmãs pergunta à outra (em alemão, naturalmente) o que foi traduzido deste modo: “E já falou pra mamãe?” Se a tradução fosse em português europeu, seria: “E já contaste à mãe?” Ou: “E já disseste à mamã?” Claro que no Brasil estas últimas expressões soariam ridículas. É por isso que, no capítulo das traduções, tal como sempre sucedeu, há e continuará a haver versões diferentes consoante os países. Apesar da língua. O problema é que Portugal, no seu afã de eterno subserviente, há-de dispensar a pouco e pouco as traduções e legendagens próprias (e isso, infelizmente, já está a suceder no mercado videográfico) a pretexto, estúpido pretexto, de que falamos a mesma língua, logo entendemos tudo o que está escrito. Entendemos, claro, tal como os brasileiros entendem o português europeu grafado, mas estaremos assim a minar de forma irreversível a nossa cultura porque abdicaremos de uma expressão própria que nos acompanha, evoluindo, há séculos.
A pretexto desta tal “unificação” impossível, o AO impôs uma reforma ortográfica perversa que, sem explicação, procedeu ao que pode classificar-se de chacina familiar. Um livro recente, Por Amor à Língua Portuguesa (ed. Piaget, 2015), assinado pelo filólogo Fernando Paulo Baptista, vem recordar-nos, num excelente ensaio teórico, isso mesmo: o corte com a etimologia torna, em termos de ensino científico, impossível explicar a origem e filiação de milhares de palavras, num caos desordenado e ilógico. Por exemplo: o AO admite, em paralelo, “setor” e secção, “espetáculo” e espectador, “percetível” e perceptual (veja-se o Houaiss “atual”), ignorando olimpicamente que a omissão da chamada “consoante muda” (c ou p, neste caso) destrói a ligação natural, familiar, entre elas, devida aos seus étimos helénicos ou latinos. Ignora, além disso, que, por força do nosso sistema vocálico, o “e” das três palavras “acordizadas” só será aberto na leitura por força do hábito, não por naturalidade da regra. Exemplo: no discurso de Ano Novo de Cavaco Silva, juntavam-se na mesma frase as palavras “atração” e criação. Foneticamente, o “a” central é lido em português de Portugal do mesmo modo em ambas as palavras (como “â”). Mas o AO diz que o de “atração” se lê “á”. Como nada graficamente o indica, é preciso confiar na memória. E, dizem os defensores do AO, também no contexto. Mas há casos em que o contexto nada resolve. Como explicar, por exemplo, a quem lê, que “para o baile!” (sem acento no “a”, mas para parar de dançar) não é a mesma coisa que “para o baile!” (ou seja, vamos dançar)?
Hão-de dizer-nos, talvez, que “isso agora não interessa nada”. Uma forma de esconder que esta chacina familiar (que apela ao desprezo pela ciência etimológica e pelas raízes da palavra escrita) está a aviltar a literacia e o conhecimento, a bem de uma classe que ao português disse nada e que para tratar dos seus negócios escolhe, “patrioticamente”, o globalizado e irreformável inglês.