Um teatro entre a cena e a escultura
Seita, grupúsculo, snobismo? Vamos chegar mais perto do Projecto Teatral... com o olhar, o olfacto ou, simplesmente, com a memória e a imaginação.
Na Culturgest, em Lisboa, um grupo de espectadores contempla um pano branco que repousa, iluminado, sobre um estrato de madeira. Aguardam um acto que se inicia com a entrada de uma mulher. Esta ajoelha-se e começa, discretamente, a manipular uma tesoura. Coloca-a sobre o pano em busca de uma linha imaginária e corta um fragmento que guardará entre os dedos. Repetirá o acto em cinco partes do pano, movendo-se à volta do estrato e expirando lentamente em cada pausa. Ao fim de 15 minutos de silêncio, que só o som da tesoura contrariou, abandona a sala semi-escurecida deixando aos espectadores o recorte de uma figura geométrica. É nesse instante que, num ecrã, aparecem imagens de um filme: vêem-se túmulos, construções de areia, uma cascata.
Sob o título de Dom, as obras e o acto performativo (apresentado todos os domingos, às 16h) integram a apresentação do projecto teatral organizada pelo Teatro Maria Matos e a Culturgest de Lisboa até 23 de Dezembro. Trata-se de uma iniciativa inédita que permite a aproximação dos espectadores às ideias, e à materialização destas em objectos e actos, de um conjunto de pessoas que desde 1994 tem vindo a interrogar as fundações do teatro. Com um trabalho discreto, alheio às convenções e expectativas que normalmente se associam a essa arte. Em palco, o Projecto Teatral apresentar-se-á no Maria Matos, com Coro (hoje e neste sábado às 21h30) e Transiberiano (17, 18 e 19 de Dezembro, às 21h30) e no Teatro Nacional D. Maria II com Lion Noir (27 e 27 de Novembro, 21h). Na Culturgest, estão sete obras, algumas das quais podiam ser consideradas esculturas, e em momentos distintos repetem-se actos com a presença de intérpretes.
Dentro e fora de cena
São momentos que tornam acessível, porventura como nunca antes, o Projecto Teatral. Mas o que motivou a programação que os organiza? Porquê? “Parece evidente que passados 20 anos de trabalho [do Projecto Teatral] terá chegado o momento de fazerem uma operação desta dimensão e escala, sobretudo se tivermos em conta que não deixam nada por mãos alheias”, responde Miguel Wandschneider, programador de artes da Culturgest. “Muitas pessoas acham que eles têm gosto em fazer um percurso que não chega a um grande público, que têm comportamento de seita, grupúsculo, que há snobismo da parte deles. Não tem nada a ver com isso. Há sim uma consciência ética do seu trabalho e da posição que querem ocupar e que vão construindo. Uma posição radicalmente individualizada que não cede à tentação de notoriedade ou visibilidade. É muito surpreendente este programa em face da recepção do seu trabalho”.
A ideia de convidar o colectivo partiu de Mark Deputter. Viu pela primeira vez um espectáculo do Projecto Teatral em 2006 no Festival Alkantara e nos anos seguinte foi descobrindo um projecto sui generis, que não era possível comparar com qualquer outro. “Eles colocam-se num sítio entre as artes visuais e o teatro. A sua obra tem características das duas áreas, mas sem se comprometer definitivamente com um lado ou outro”, diz o director artístico do Teatro Maria Matos. “O que acho de interessante nesse percurso é que as obras vão à procura de elementos que são o grau zero do teatro, o que chamaríamos as condições mínimas para fazer o acto dramático e teatral. Isso faz com que cada apresentação ainda seja teatro, mas que já não pareça teatro”.
Esclareça-se: habitualmente os trabalhos do Projecto Teatral não têm texto, actores, voz, personagens, enredos. Não que o grupo (constituído por Helena Tavares, João Rodrigues, Maria Duarte, André Maranha, Gonçalo Ferreira de Almeida) não reconheça a existências desses elementos. Com efeito, por vezes, evoca-os discreta e acertadamente mas, apenas, a fim de mostrar actos, acções, pequenas cenas, imagens ou de confrontar o espectador com uma espécie de “pré-história” do teatro, solicitando-lhe a contemplação, o olhar, o olfacto ou, tão simplesmente, a memória e a imaginação.
A compasso deste entendimento está a atitude que rejeita certos protocolos. Acrescenta Mark Deputter “Querem o mínimo de mediação entre as obras e quem as vê. Não falam sobre elas, não procuram a mediatização da sua produção. Um pouco como os artistas medievais, são amadores no sentido antigo da palavra. Não se deixam conhecer, são quase anónimos. Consideram que as obras não vivem pelo artista, que têm de encontrar o seu espectador imediatamente. Há um certo pudor em colocarem-se lá fora”. O resultado tem sido o desconhecimento das actividades do Projecto Teatral por um público menos atento, situação para a qual também contribuem a apresentação em espaços não convencionais e a efemeridade dos actos. O programa vem amenizar a “timidez” do grupo, bem como responder a um desejo de Mark Deputter: “Quis mostrar estes trabalhos todos juntos, num período de tempo relativamente curto, porque sinto que há uma grande consistência em tudo o que fizeram ao longo de 20 anos. Vai-se percebendo a consistência da obra, mesmo nos materiais que utilizam. Está lá a terra, a textura, a utilização da luz. São elementos que voltam e achei muito bonito ver essa consistência, que faz sentido, que liga as coisas entre si”.
Um teatro que constrói lugares
A passagem do tempo (em Bouvard e Pécuchet, a partir do livro homónimo de Gustave Flaubert) a relação entre o texto e a textura (em “ditado” ou em “coro”), a indissociabilidade entre a morte e a condição humana (em “dom” ou em “ostra) constituem-se como temas possíveis de um pensamento em torno das condições do teatro fora e dentro de cena. E descobrem-se na exposição da Culturgest, que assinala uma divisão inédita: “Podes ver as obras num tempo muito mais longo. Normalmente não era isso o que acontecia. As peças eram feitas uma a uma. Quando se ia ver um trabalho deles, via-se uma obra, num dia, numa certa hora. Agora a experiência [na Culturgest] é completamente diferente. A duração da experiência é outra, quando antes havia um momento que acontecia e mais nada. Porque a obra deles também adquiria e adquire uma unicidade de uma peça de teatro”.
Na Culturgest, o carácter da apresentação é assumidamente expositivo, pese embora a realização dos actos de “Dom” e a actuação, sem hora marcada, de dois intérpretes de Bouvard e Pecuchet. Trata-se de um momento atípico na carreira do grupo, que não têm recorrido com frequência ao formato expositivo e quando o fez não foi para mostrar uma constelação de peças. A ocasião tem contudo, enfatize-se, a vantagem de aproximar os públicos tradicionais do teatro e da arte contemporânea de um percurso e um trabalho bastante discretos, quase secretos.
Quem entra nas salas da Galeria 1, descobre, sob uma iluminação pontual, peças de claras formas geométricas, feitas de farinha, madeira, terra, gesso. Miguel Wandschneider rejeita classificar de artistas os membros do Projecto Teatral, mas não consegue evitar descrever o que vê como uma exposição de escultura. “Os objectos que aqui vemos constroem lugares. Há a construção de um lugar. Vejo várias peças que estão aqui como esculturas que constroem um lugar. Não são apenas objectos ou construções depositadas. Aliás foram construído aqui neste espaço. Não é apenas a relação simples entre o conteúdo e um contentor. Constroem um lugar próprio, despojado”.
O comissário refere-se por exemplo ao Moinho, a extensa e circular peça de farinha que sugere relações formais com o gira-discos de “Imaginação morta imaginem”. Ou ao diálogo conceptual que o espectador pode desenhar entre “ostra”, duas esculturas em forma de paralelepípedos, e o impressionante “vazio do teatro. Mas, atalha o programador, “o trabalho do projecto não se acantona neste ou noutros contextos, embora tenha o teatro como horizonte da sua prática. Esta exposição não o confinará ao contexto da arte contemporânea”. Tal nota não impede a condição presente que as peças constroem no espaço. Serão, talvez, obras de arte de um grupo de não artistas, de um colectivo alheio a classificações. “É composto de pessoas com experiências e trajectórias diferentes que convergem num projecto. O próprio nome desde logo enuncia uma dimensão conceptual e projectual que está presente em todo o trabalho e há a definição do teatro como horizonte para o pensamento e para a prática do projecto”. Daí a ausência do texto, da voz, do actor. E quando há texto ou voz, não há actor.
Miguel Wandschneider considera, todavia, a existência de uma cena, não no sentido estrito de espaço cénico ou de situação narrativa, que pode ser permutada pelo lugar. “E não deixa de ser curioso, no entanto, como o projecto se dá tão bem com esta situação expositiva”, insiste. “Aparece como uma exposição strictu sensu. O trabalho é muito contextualizável aqui. Podemos até fazer relações com a escultura minimalista. O vocabulário que o Projecto Teatral utiliza foi muito utilizado pelos escultores minimalistas, mas não tem nada ver com o trabalho deles. Não se encontra um substrato comum, os modos de fabricação são completamente diferentes. A fabricação era industrial, as superfícies eram uniformes. As obras não possuíam referências à realidade exterior, ao contrário do que aqui vemos. Estas remetem para as origens, para os fundamentos do teatro, para formas concretas, para a materialidade das coisas”. Aguardam a entrada de um actor e de um espectador.