Um dueto de titãs em Lisboa faz-se com poemas

O que acontece numa tarde quente de sábado quando um dos maiores escritores brasileiros se encontra com o maior poeta árabe vivo?

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Milton Hatoum e Adonis este sábado na Fundação Gulbenkian Daniel Rocha
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O poeta sírio Adonis e o escritor brasileiro Milton Hatoum no Programa Futuro Próximo da Gulbenkian Daniel Rocha

Neste sábado, a Fundação Gulbenkian trouxe a Lisboa este escritor brasileiro que já ganhou os prémios Jabuti e Portugal Telecom de literatura e o sírio Adonis, considerado o maior poeta árabe vivo. A conversa fez parte do ciclo Grandes Lições, do Programa Próximo Futuro, comissariado por António Pinto Ribeiro.

Na sala lotada não se falou apenas de poesia, mas recitaram-se poemas, como num dueto. Hatoum, que escreveu a apresentação da primeira tradução de Adonis do árabe directamente para o português (do Brasil), Adonis, Poemas (edição Companhia das Letras), lia um poema do sírio em português, e Adonis respondia-lhe recitando outro em árabe.

“A língua francesa é intelectual. Para escrever poesia em francês é preciso travar uma guerra com a língua”, explica o poeta sírio que adoptou França como casa, arrancando risos do público. “Para escrever em árabe, travamos outra guerra. Não é uma língua intelectual, é corporal, escreve-se com o corpo, com os sentidos, com o ritmo do coração, com a pele. É uma força carnal.” O que a plateia parece, a esta altura, já ter compreendido depois de o ouvir recitar dois poemas em árabe. São as mãos de Adonis que se mexem em direcção ao rosto, são os gestos que parecem contar o que se passa. Não se percebe o significado das palavras mas sente-se a poesia no ar.

Milton Hatoum tem curiosidade. O que sente Adonis quando ouve um poema seu em português? Uma língua familiar ou distante? "Não sinto propriamente através da língua, sinto através da voz, dos gestos, a unidade com os outros", diz. “Se sou um nativo do Oriente é porque, antes de mais nada, invento meu próprio Oriente”, escreveu uma vez Adonis, lembra o brasileiro, Milton Hatoum, de origem libanesa, cujo primeiro livro - Relato de um certo Oriente - é a confluência do Amazonas com o Médio-Oriente.

Mas o Oriente real é motivo de crítica por parte da voz independente que os estados autoritários do Médio-Oriente preferem ignorar. “Nunca se estudou a estética da língua árabe – afirma Adonis -  como nunca se fala de mudança no Médio-Oriente do ponto de vista das sociedades, apenas de governo, do poder, dos conflitos religiosos. Como se mudar uma sociedade fosse mudar de mãos o poder. Nunca falamos do direito das mulheres, nem do estado laico. Como imaginar uma revolução num país que impõe uma religião e que não quer libertar a mulher? Então o que é uma revolução?"

Inevitável a pergunta: Como vê o que se está a passar no seu país de origem, a Síria?

“Quanto tempo tenho para responder?” São 10 minutos. “É pouco para uma resposta que teria que ser longa.”

" Você não é muito querido pelos religiosos mais ortodoxos", comenta Hatoum. "É o preço a pagar pelo pensamento independente"?

“ Não sou contra as religiões. Mas sou contra as religiões impostas pelos Estados e o monoteísmo – do Islão, do Cristianismo, do Judaísmo. Religião é um assunto pessoal. Sou contra a imposição de uma religião sobre toda uma sociedade. Não se pode criticar o monoteísmo dos países árabes. Muita gente pensa como eu mas é marginalizada… E o papel do Ocidente? O Ocidente joga contra a sua própria História", defende o sírio.

Depois de uma hora de conversa é a cantora de fados Mísia, na plateia, que faz Adonis voltar à poesia. “E esta força carnal de que o Adonis fala quando descreve a poesia árabe não podia talvez estar na música, mesmo na europeia?”  Poesia, pensamento cantado, gestos, sentidos, força carnal mais uma vez. “ Poesia é como o amor. Começa de estalo mas depois tem que ser construída.”

O que acontece mesmo quando um dos maiores escritores brasileiros se encontra com o maior poeta árabe vivo numa tarde quente de Lisboa?

Poesia.

Vida. 
 
 
 
 
 

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