Tudo gajas
Primeiro, João Canijo quis ver o que acontece quando onze mulheres estão juntas 24 sobre 24 horas. Depois, tudo mudou. Ámen é um filme sobre a relação com a fé e os seus estranhos caminhos.
João Canijo janta muitas vezes no restaurante Comercial, na rua principal de Vinhais. É lá também que vai tomar o primeiro café, às seis da manhã – o estabelecimento abre cedo porque vende bilhetes para as camionetas regionais. São 18h30, está com um prato de rancho à frente. E a televisão em ruído de fundo, com o Preço Certo.
Aos 58 anos, o realizador de Noite Escura, Sangue do Meu Sangue e É o Amor está a poucos dias de começar a rodagem de um novo filme. Fez o que costuma fazer: trouxe a realidade para o argumento e não ficaremos surpreendidos se a devolver em forma de murro no estômago. Canijo fala-nos de Ámen – título que “deu muito trabalho a encontrar, simples e conciso” – e de como uma ideia antiga está prestes a fazer-se à estrada. Mais que um road movie, este será um foot movie.
O que lhe interessa no tema da peregrinação?
Razões pragmáticas: onde meter um grupo de mulheres, 24 sobre 24 horas? Esta foi a ideia inicial. Depois andei à procura do que poderia ser e de repente lembrei-me de uma excursão. E da excursão veio a peregrinação a pé a Fátima. Aí juntou-se a fome com a vontade de comer, porque isto é uma coisa fundamental da humanidade, a relação com a fé, com a crença. E isso, neste momento, transformou-se mesmo no essencial. A parte da relação entre as mulheres é pano de fundo. O fundamental é o sofrimento a que se está disposto pela fé, ou a que a fé nos leva – mas não do ponto de vista crítico, não faço juízos. Porque é que a necessidade da fé leva as pessoas a uma coisa tão sofrida como uma peregrinação a Fátima a pé desde Trás-os-Montes, que é a maior de todas [400 quilómetros]?
Já encontrou a resposta?
Não, nem vou encontrar, nem isso me preocupa. Posso é dizer que é um renascimento diário: chega-se ao fim morto e a pensar como vou conseguir fazer no dia seguinte. Está-se mesmo no limite de exaustão e da resistência física.
Também fez?
Fiz, mas não como a que elas fizeram.
Qual foi o seu percurso?
Pouquinho, de Coimbra a Fátima: 42 quilómetros num dia, 38 no outro. Mas na chegada a Fátima já pensava que morria. Não conseguia dar mais um passo, que é o que acontece todos os dias durante nove dias, a estas mulheres. E elas já fizeram todas uma romaria a sério.
Isso foi absolutamente necessário?
Se não fosse isso não tinha história. Como diz o Sócrates, não tinha narrativa.
E porquê as mulheres como ponto de partida?
Porque são mais interessantes que os homens. Dão mais trabalho, mas são muito mais interessantes. São mais disponíveis, entregam-se mais e têm mais disposição ao sacrifício e ao esforço. Eles são muito mais preguiçosos.
É religioso?
Não sou, de forma nenhuma. Mas parte delas são e isso é que interessa. Como é que a religião leva a um esforço destes com prazer? Como é que a religião se torna uma razão maior do que o sofrimento?
Elas terem vindo para aqui dois meses antes das filmagens…
Não seria realista que numa peregrinação vinda de Trás-os-Montes elas fossem lisboetas. A antecedência é para poderem perceber o que é ser de Trás-os-Montes. Perceber o que é estar tão longe de Lisboa. O que o actor faz é adaptar-se às circunstâncias da personagem, e as circunstâncias da personagem é ser transmontano, transmontano de Vinhais, que é mais longe do que Chaves. E bastante mais longe do que Vila Real.
E porquê Rio de Fornos [aldeia ao lado de Vinhais onde as actrizes estão a viver em várias casas]?
Porque a peregrinação original em que nos inspiramos é de pessoas de Rio de Fornos. É de onde tiramos os conhecimentos das pessoas que participaram na peregrinação real que inspira este filme - inspira!
Não imita.
Não imita.
Este processo, de estarem aqui, falarem com o sotaque daqui, não acaba por ter um pouco de imitação?
Não. Não estão aqui para imitar ninguém, estão aqui para se porem a elas, enquanto elas, na pele de pessoas daqui. E portanto com a sua própria interpretação. Estudar uma personagem não é imitar modelos. Quando se faz isso sai sempre uma porcaria.
Este esforço que se impõe às actrizes – físico e emocional – não se aproxima também da própria peregrinação, no sentido de levar as pessoas ao limite?
Para algumas sim, para outras não. Há umas que sofrem muito, outras que gostam muito. A ideia não é levá-las ao limite, é levá-las ao contágio: serem contagiadas pelas pessoas daqui. Se para algumas isso é levá-las ao limite isso já não é problema meu, é delas. Ao contrário da imitação, as coisas entranham-se por contágio. É simples: eu sou do Porto, em Lisboa tenho pouco sotaque, se estiver uma semana no Porto tenho mais sotaque, por contágio. [Aqui, como dissera a meio da conversa, o sotaque “é híbrido”, entre portuense e transmontano]. Era impossível fazerem de transmontanas sem estarem cá.
Como foi a escolha dos sítios para onde foram trabalhar? Foi delas, ou foi sua?
Antes de vir para cá estabeleceu-se uma biografia com a qual elas se identificavam. Foi escolhida por elas e algo que tivesse a ver com elas. E foi assim que depois foram escolhidos os sítios.
Todas optaram por coisas diferentes. Essa diversidade apareceu naturalmente?
Foi natural e por exclusão de partes: se uma era dona de café, não podia haver duas donas de café. Também teve a ver um bocadinho com quem escolhia primeiro.
A Rita Blanco a servir cervejas ao balcão…
É um evento.
Mas isso não cria uma certa artificialidade à volta?
A Rita sim, mas à volta das outras não, porque não têm o mesmo problema [de popularidade]. Mas ela arranjou uma maneira e aí não a chateiam [passeios a pé com a dona do café onde estava]. Porque aquilo depois esgota. Ela sente-se obrigada a corresponder às presenças. Faz a festa toda em vez de estar sossegadinha.
Ainda por cima está a passar uma novela com ela.
É a Maria do Coração D’Ouro. Pior do que isso só a minha experiência com o José Wilker na altura do Roque Santeiro. Fiz um filme com ele nessa altura e não se conseguia filmar, era um circo. Naquele tempo só havia RTP. E ele era o próprio Roque Santeiro.
E isto é um meio muito pequeno…
Ah, já são todas da família. [Os locais] Nem sabem bem quais são os papéis que fizeram nas novelas nem nada. São mais as meninas simpáticas que aí andam.
Como é a sua rotina cá?
É levantar-me às quatro, trabalhar na planificação, vir tomar o café ao sr. Armando às seis – é o que abre mais cedo – depois trabalhar até às oito, vir tomar o pequeno-almoço, e a partir das oito deixa de ser planificação passa a ser argumento. Depois, às três, aturá-las [nos ensaios]. Às seis e meia vir jantar e ir para a cama.
O argumento vai sendo construído com elas?
Há uma base de investigação do que se passou nas várias peregrinações que elas fizeram. Fez-se um “guisado”, um “refogado” disso. Agora está-se a limpar esse “refogado” e a transformá-lo num argumento com esses ensaios, que partem ainda das premissas de cenas existentes, que podem existir ou não no filme, e vai-se limpando e chegando a um fio condutor. E isso dá uma trabalheira muito grande.
Esse processo todo dura quanto tempo?
As primeiras romarias foram feitas em 2014. Tinham obrigação de fazer um diário no iPhone, que mandavam por mail e depois era transcrito. E daí saíram os acontecimentos chave, que não estão longe [das cenas do filme]. Claro que neste momento são só inspirados na realidade e não teve a ver com o que aconteceu.
Elas continuam a levar agora coisas do seu quotidiano?
É essa a ideia. Na segunda cena do filme contam uma história real, evidentemente com nomes falsos, mas há já várias histórias reais que elas aproveitaram daqui. As histórias, as relações, as lendas, as histórias que têm muitas versões e não se sabe qual é a verdadeira.
Há um momento em que o argumento fica fechado?
Ah, sim sim. Tem que ser. Absolutamente.
E depois não há improvisos?
Não. Não é uma coisa rígida: elas não são obrigadas a dizer exactamente o que está lá escrito, mas têm que respeitar o que está escrito… Há uma data limite da qual não podemos fugir: 12 de Maio de 2016.
Estarão a filmar sempre na estrada, no exterior?
Sim. Os acampamentos são um híbrido, porque há uma rulote e uma carrinha. Mas para todos os efeitos são exteriores.
Quando chegarem a Fátima terão milhares de “figurantes”, as pessoas que lá estão naturalmente.
É o que se espera. São 300 mil. Para o ano devem ser mais.
Haver esta data imperiosa e inflexível assusta-o?
Claro que sim! Se não fosse essa data elas agora iam para casa três meses e eu escrevia o argumento calmamente. Assusta e é muito angustiante.
Não há truques, como voltar a certos sítios e filmar sem ser cronologicamente?
É o mais cronologicamente possível, e será cronologicamente, mas esses truques não invalidam que a gente tenha como data limite o 12 de Maio.
Mas poderiam regressar ao caminho da peregrinação...
Isso talvez aconteça. Mas não me dá margem de descanso. Uma margem de descanso seriam três meses agora. Mas em vez de três meses tenho três semanas. É quase igual!
O momento de escrita do argumento tem de ser solitário ou consegue fazê-lo enquanto está com elas?
Não. Elas são gravadas. Depois o que dizem é transcrito, transforma-se em texto, e a partir desse texto tem de se fazer uma construção. Elas falam demais nas improvisações. A arte é concentração e economia – que é tudo o que não se passa naqueles ensaios! Nem podia passar. São as histórias de 11 personagens, quase todos tão importantes, com os seus pormenores, idiossincrasias, rotinas que é preciso manter ao longo do filme, e dar uma evolução a cada uma delas. Não é fácil! Também se fosse… Mas é um bicho encantador, a gaja.
As suas mulheres são sempre muito fortes.
As mulheres em geral. Por isso é que gosto delas. São sempre mais interessantes que eles. É simples de explicar: que grupo de 11 actores homens, portugueses, estariam em Trás-os-Montes durante dois meses? Tenho saber de experiência feito.
Já tentou?
Já e desisti. E nunca mais vou tentar. Acabou. E ainda por cima a trabalhar a sério. Porque os homens vinham e não trabalhavam.
As mulheres são mais dadas ao sacrifício porquê? É a maternidade?
Sim, acho que sim. É o serem receptoras: são mais dadas ao sacrifício, à entrega e à disponibilidade. E são melhores que eles, é universal. Qualquer turma de uma escola de actores tem mais raparigas boas actrizes do que rapazes bons actores. Eles são sempre uma excepção, é um clássico. O gajo é normalmente um mono. Dei, durante dez anos, aulas de interpretação porque gostava e interessava-me para pesquisa pessoal. Consegui várias actrizes, nunca consegui um único [actor] que me interessasse. E raparigas tenho umas seis ou sete. Cheguei à conclusão que é biológico: a disponibilidade biológica ao nível da célula receptora. O óvulo aguenta tudo e os espermatozóides andam à porrada uns com os outros. São egocêntricos, em permanente competição. A evolução das espécies está ligada exclusivamente à transmissão genética, e a transmissão genética é competitiva.
Neste [filme] há uma personagem masculina, que estraga tudo no fim. Um anjo cheio de boas intenções que se revela maléfico.
Porque é que ele entrou?
Porque aconteceu e é muito bom. É um grupo que com a exaustão se vai desagregando, tudo fica mais à flor da pele, e quando aparece um intruso o grupo esfrangalha-se. E aconteceu de facto.
Várias pessoas falam de uma harmonia durante a peregrinação, que todas as divergências se resolvem com boa vontade. A memória é “limpa” depois?
Já dizia o Kierkegaard, não é? Tal e qual. Mas essa é a história do filme: um sofrimento em nome de uma razão de fé e o paradoxo com as relações humanas terrenas. O difícil é não tornar isto nem caricatura, nem fácil. Mas evidentemente que um grupo, a maioria mulheres, todas juntas, 24 horas sobre 24 horas, não é fácil. Todos os demónios vêm à superfície, apesar da fé. Apesar de estarem a fazer uma peregrinação em nome da fé e pela fé de cada um, que é diferente.
[A conversa passa para a porta do restaurante, para fumar um cigarro. A noite está gelada e já não há ninguém na rua].
Gosta de Vinhais?
Vinhais é das vilas portuguesas que está menos destruída. Gosto muito. Até já me passou pela cabeça comprar uma casa na serra. As pessoas são extraordinárias.
São muito generosas.
Somos já família. Às seis da manhã está aí um senhor e já nos cumprimentamos de aperto de mão há não sei quanto tempo.
As pessoas gostam de sentir que há um interesse pela sua terra.
O interesse foi absolutamente casual.
Voltando às actrizes: é difícil gerir os egos?
Os egos e a ciumeira. Algumas, outras nem tanto. Estão identificadas!
Porque é que não está também aí num café a servir bagaços?
Porque não tenho tempo! Não preciso, elas é que precisam. Não tenho memória auditiva. Tinha que filmar e depois transcrever. E elas é que têm de fazer esse trabalho. Eu limito-me a sugar.
Um vampiro?
Sanguessuga. E geralmente funciona bem.
Sanguessuga das actrizes, que são sanguessugas das pessoas locais.
Exactamente. E depois a gente mistura aquilo tudo.