Se o fado se canta e chora, também se pode dançar

O novo álbum de Ana Moura é um disco livre onde o fado coabita com os mais diversos estímulos. Como ela nos diz: “Sou uma mistura”

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O seu último álbum, Desfado (2012), universalizou-a, constituindo o maior sucesso dos últimos anos da música portuguesa. Ana Moura, 36 anos, com trajecto iniciado na alvorada dos anos 2000, é hoje provavelmente a fadista mais reconhecida entre e fora de portas.

Nesse contexto o seu sexto e novo álbum, Moura, que chegará às lojas a 27 de Novembro, poderá representar responsabilidades acrescidas, mas ela sorri quando lhe lançamos a questão. “Não sinto isso. Com o anterior álbum conquistei a grande liberdade de gravar o que me apetece sem pensar se as pessoas se vão sentir identificadas ou não. Claro que desejo que isso suceda – e felizmente aconteceu, mas não penso muito nisso e esse despreendimento constituiu uma enorme conquista para mim.”

Quando partiu para a gravação só tinha uma preocupação em mente. “Não queria repetir-me”, afirma, em voz muito baixa, numa esplanada de Lisboa, parecendo não querer ser ouvida pelos que nos circundam. “Quem ouvir este disco numa perspectiva de mercado até pode achar que este álbum é a continuação do anterior, mas para mim trata-se de um trabalho bastante diferente.”  

Quem a ouvisse, sussurrando, nunca iria identificar a cantora de voz grave e sensual que se ouve na sua nova obra. Um disco com linhas de continuidade em relação ao anterior – na forma como coabitam uma visão tradicional do fado e uma filosofia onde o fado é apenas ponto de partida para acolher outros estímulos, de origem africanizada, latina ou europeia. Mas para quem viveu o processo a partir de dentro, como ela, existem mais diferenças que semelhanças na nova obra.

“A guitarra portuguesa, por exemplo, foi tratada de forma diferente, tendo sido reamplificada com a sonoridade de uma guitarra eléctrica. Adoro o que é feito com a guitarra neste disco. Já tínhamos essa ideia para o álbum anterior e concretizámo-la agora. Essa é talvez a diferença maior. Mas existem outras, como a omnipresença do órgão Hammond, que acaba por conferir uma sonoridade quase espiritual a muitos temas. A bateria também é diferente do outro disco, mais acústica, mais antiquada, com uma sonoridade mais crua.”

Em termos de design sonoro é uma obra diferente. E isso sente-se nas canções que revelam, digamos assim, uma sensibilidade mais pop, como na festiva Dia de folga, no ambiente quase bossa nova de Desamparo, na languidez meio jazzística de Moura, que parece evocar a elegância de Sade, ou no dinamismo rítmico de Fado dançado, com inúmeros instrumentos fazendo sentir a sua presença, entrelaçando-se subtilmente, acrescentando maior riqueza ao resultado final, enquanto Ana Moura canta “se o fado se canta e chora / também se pode dançar”. Mas nem só de diferenças é habitado o novo registo. “Também existem claramente linhas comuns, até pelo facto de haver letristas e compositores repetentes e também o produtor.” 

Mais africana
No centro de tudo está a sua voz. É à volta dela que tudo acontece. Na teoria dir-se-ia imutável ao longo dos anos, embora, com o tempo, também aí se notem diferenças, com ela a cantar de forma diversa.

“Sinto isso, sim”, reconhece, evocando o facto de a mãe ser angolana como um dos factores que poderá a ajudar a perceber algumas das suas inflexões vocais. “Alguns amigos angolanos, como o [escritor José Eduardo] Agualusa, dizem que a minha voz está cada vez mais africana e percebo o que ele quer dizer. A minha voz sempre foi encorpada mas agora está cada vez mais ‘negra’ e mais cheia. Não é fácil de explicar, mas sim noto que a minha interpretação também tem vindo a mudar.” 

Do ponto de vista sonoro, em algumas canções, existe um balanceamento rítmico suave que remete para essa noção de africanidade e até algumas participações parecem sugestionar essa ideia – para além de José Eduardo Agualusa, há outros angolanos como Sara Tavares, Kalaf (Buraka Som Sistema) e o jovem músico Toty Sa’ Med.

“Tenho por eles uma enorme admiração e de todos sou amiga, logo acabam por ser colaborações naturais. A Sara Tavares e o Kalaf têm escrito e musicado e pedi-lhes que o fizessem para mim. Curiosamente a música que daí saiu é um fado. Mas sem dúvida que este disco tem essa costela de africanidade, reflectindo talvez a minha herança africana, mas claro, mais do que tudo, este é um disco de fado.”

O título do disco não é, evidentemente, um acaso, remetendo para uma dimensão íntima, por outro lado para uma extensão universal. “Tudo começou com a capa do disco, do artista Ignas, na qual queria que houvesse uma borboleta, numa alusão à metamorfose e à ideia de reinvenção. E depois havia duas canções [Moura encantada e Moura] que falam muito daquilo que acabo por ser e que me levaram a ler sobre as lendas da Moura Encantada e sobre esses seres fantásticos que têm a faculdade de se transformarem. Ou seja, tudo isto acabava por defender o disco em termos musicais. A palavra Moura em si é morena e associo moreno à mistura e adoro essa ideia de que os nomes nos podem predestinar a alguma coisa. E acabo por ser isso: uma mistura. E este disco também é isso. Tem o fado no centro, mas também outras influências musicais que fazem parte daquilo que sou.”

Colaborações não faltam. Carlos Tê assina letra e música de O meu amor foi para o Brasil, enquanto Samuel Úria faz o mesmo para Cantiga de abrigo. Estreantes também na sua voz são Jorge Cruz (Diabo na Cruz), Edu Mundo e os já referidos Sara Tavares e Kalaf, autores respectivamente da composição e letra de Não quero nem saber. Mas também existem compositores repetentes, como Márcia, Pedro Abrunhosa, Miguel Araújo ou Pedro da Silva Martins (Deolinda).

E há também espaço para o fado tradicional, exposto em especial por Manuela de Freitas ou Maria do Rosário Pedreira. Ao longo dos anos, na relação com os letristas, foi ensaiando formas de operar. Por vezes existiam conversas prévias com a enunciação de universos a abordar, mas agora deixou-se disso. “Pedir-lhes uma determinada letra nem sempre funciona, porque os condiciona. Cheguei à conclusão que o melhor é escolher pessoas de quem gosto e eles escrevem de forma genuína sem serem condicionados por conceitos.”

Na maior parte das vezes quem escreve as letras conhece-a e fá-lo a pensar nela, mas não existem regras.  “O Agualusa diz que escreveu especificamente para mim e a Manuela de Freitas também e realmente é uma letra que me descreve do início ao fim”, afirma. Só Márcia não escreveu a pensar nela. “Ela escreveu Desamparo para ela própria interpretar, mas a canção acabou por não entrar no seu novo álbum e como a letra tinha tudo a ver comigo, num determinado momento, desejei muito gravá-la e acabou por acontecer. Curiosamente ela tinha em mente uma outra letra para mim, mas acabou por ser esta a fazer-me sentido o que é engraçado.” 

Em Eu entrego, de Edu Mundo, há a colaboração vocal da cubana Omara Portuondo. Conheceram-se o ano passado e já em estúdio, quando a canção estava a ser ultimada, Ana Moura sentiu que havia ali um calor cubano que merecia uma colaboração e de imediato pensou nela. “Contactámo-la rapidamente, ela estava em digressão, não foi possível gravarmos juntas com pena minha por causa disso, mas acabou por fazê-lo em Nova Iorque”, recorda, salientando que a letra da canção reflecte duas visões (de uma mulher mais nova e de uma mais madura), reforçando a importância da participação da veterana cantora.

Outra das novidades é a inclusão de duas faixas extra, sendo uma delas em inglês, Lilac wine, interpretada por Nina Simone ou Jeff Buckley, que resolveu também abordar. “Quis sempre gravar essa música, porque gosto muito da Nina e porque para mim tem o sentir do fado”, justifica, recordando que chegou a gravar uma outra versão em inglês, de uma canção de Tom Waits, que acabou por não ficar no disco, embora possa vir a ser incluída na edição internacional.

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Em estúdio e em tournée
Ao longo dos anos tem-se cruzado com muitas figuras revelantes da cena global de música (basta pensar em Prince, Rolling Stones ou Herbie Hancock) e no novo disco voltou a rodear-se de figuras ilustres da indústria. O álbum foi produzido pelo americano Larry Klein (produções para Joni Mitchell ou Herbie Hancock), com quem já havia trabalhado no anterior disco, e as misturas ficaram a cargo de Tim Palmer (U2, Cure, Pearl Jam) e Tchad Blake (Black Keys, U2). As gravações decorreram nos Henson Recording Studios, em Hollywood, e nos Village Studios, de Los Angeles, onde gravaram McCartney, Stones, Springsteen, Timberlake ou Alicia Keys.

Mas antes do encontro em estúdio com Larry Klein já havia sido feito um importante trabalho. “Na fase inicial do processo recebo as músicas e só depois falo com o produtor. Depois faço uma maqueta só com viola e guitarra e começamos a perceber de que forma é possível explorar cada uma das músicas. É o conjunto dos temas que vai definindo qual a direcção que o disco acabará por seguir, embora estivesse bem definido que gostava que esta obra contivesse um rasgo diferente da anterior.”

Antes de partir para os EUA, tinha bem definido o que queria, mas durante o processo de gravação acontecem sempre surpresas. Nesse contexto a relação com os muitos músicos convidados acabou por influenciar algumas das escolhas finais. “Estar em estúdio com aqueles grandes músicos, como o [baterista] Vinnie Colaiuta [que tocou durante anos com Frank Zappa ou Sting], é uma experiência. Ou seja, acabam por ser desenhadas coisas em estúdio que não estavam previstas. O Larry já tinha os arranjos delineados mas com aqueles músicos existiram momentos incríveis e alterações.”

Para além do histórico Vinnie, e dos habituais acompanhantes Ângelo Freire (guitarra portuguesa) e Pedro Soares (viola), participaram nas gravações músicos de renome como Dan Lutz no baixo, que já gravou com Lizz Wright ou Michael Bublé, ou Dean Parks nas guitarras, que participou em gravações de Madonna, Stevie Wonder ou Diana Ross, para além de Peter Kuzma na percussão, que colaborou com Jill Scott.

“Existiram momentos vibrantes em estúdio em que os músicos entenderam a minha linguagem, logo ali, espontaneamente, naquele momento, muito mais do que ouvindo os meus discos. Houve um processo de descoberta mútua, da minha parte em relação a eles e vice-versa. E essa troca de ideias acaba por naturalmente alterar as coisas.” 

Durante muitos anos o estúdio não lhe era confortável. Agora sente que faz parte de um processo de descoberta. “Em palco gosto de sentir a vibração no meu corpo, enquanto em estúdio é como se só sentisse ao nível dos ouvidos”, afirma. O estúdio, para ela, é qualquer coisa de “mais cerebral e laboratorial”, mas neste momento está a descobrir coisas que a apaixonam. "Tenho estado mais presente na produção, dando ideias, e participando nesse processo com o produtor, que me vai sempre perguntando se é por ali que quero mesmo ir. Tenho a certeza do que quero e hoje tenho uma relação com o estúdio mais relaxada.”

Nos últimos três anos a sua agenda de espectáculos tem estado mais preenchida do que nunca. Deverá ser a artista portuguesa que mais palcos internacionais pisou nos últimos cinco anos. Este sábado estará em Sydney, na Austrália, seguindo-se a Estónia. Em Fevereiro será a vez do Olympia de Paris. Essa roda viva pelo mundo acabou por ter também influência na maneira como o disco foi sendo concebido. 

“Os concertos dão segurança, ao mesmo tempo que permitem um grande conhecimento dos músicos. É impossível tocarmos todas as noites da mesma maneira. Estamos constantemente a descobrir coisas e a surpreender-nos uns aos outros. Por isso é que adoro a minha actual equipa. Existe uma grande cumplicidade, uma visão partilhada das coisas e a segurança que, para mim, este disco exibe deve-se a isso também.”

Ao longo dos anos foi-se habituando a gerir as viagens, os hotéis, os rituais de promoção, o andar em digressão assiduamente. De tal forma que já lhe aconteceu acordar em determinada cidade e nem se lembrar onde está. “Aliás já me aconteceu estar em aeroportos para apanhar um avião e nem saber para onde vou. Já sofri com isso, mas depois fui-me habituando. Procuro não me concentrar no lado mais negro da vida, aproveitando as muitas coisas positivas.” 

Em viagem o tempo é sempre pouco, mas abrem-se clareiras. É nessas ocasiões que acaba por assistir a alguns concertos. O que mais a impressionou nos últimos tempos foi o da inglesa FKA Twigs, em Brooklyn, Nova Iorque. “A sala era espectacular, o jogo de luzes incrível, adorei a sua presença em palco e marcou-me assistir aquele concerto.”

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A sua conexão com o estar em palco também já foi mais difícil. Na actualidade, o antes, o durante e o depois, são vividos com a naturalidade possível, numa actividade onde os imprevistos acontecem sempre. “Antes de entrar em palco gosto de estar com os músicos e senti-los, falando com eles”, reflecte, “depois entramos em palco e o primeiro tema pode ser marcante, seja para perceber eventuais problemas de som, ou para tomarmos o pulso à sala e à audiência.”

Às vezes, durante um espectáculo, pode sentir que o mesmo não está a correr da melhor forma e se isso acontece pode ser “muito angustiante”. Normalmente são factores externos, como a acústica, que provocam esses estados de espírito, mas existem outros factores. “Já me aconteceu, ao primeiro tema, esquecer-me dos sapatos de salto alto e colocar-me em bicos de pés porque me habituei a cantar com eles”, ri-se com evidente deleite, recordando episódios desses. “Enfim, acabam por ser coisas que nos podem deixar desconfortáveis, mas que acabam por ser superáveis, agora o som é muito importante.”

Curiosamente, a timidez que patenteava em palcos portugueses, foi desaparecendo através das experiências internacionais. Às vezes as pessoas que a conhecem dos palcos portugueses ficam surpresas quando assistem a concertos seus fora do país. “Tenho dificuldades em me dirigir às pessoas entre as canções, mas nos palcos estrangeiros farto-me de falar, brinco, e ponho as pessoas a rir, o que às vezes é surpreendente”. Em parte isso acontece porque sente obrigação de explicar um pouco o que é o fado.

Naturalmente fora de Portugal existe uma relação mais distanciada com o fado. Os conflitos que por vezes irrompem nos círculos fadistas sobre a “autenticidade” ou a “pureza” do género, ou as divisões entre os que se mantém fiéis a uma ideia tradicional e quem segue outros caminhos, são vividos apenas internamente. Perguntamos-lhe se esse maior distanciamento do público internacional não propiciará que ela tenha uma postura mais relaxada. Responde que não é por aí, embora diga que no anterior álbum existiram vozes críticas à abordagem miscigenada. Hoje afirma que desapareceram. “Já não sinto isso, até porque não tenho qualquer pretensão de mudar nada no fado, estou a seguir apenas o meu caminho. As pessoas que entendem que desvirtuo o fado não estão correctas. Não é por aí.” 

Também os discursos sobre um hipotético ambiente competitivo entre fadistas não a preocupam. “Venho de uma família enorme onde a ideia de partilha é fundamental. Tenho essa herança da partilha dentro de mim. Na música a competição não faz grande sentido, até porque se estamos a falar de intérpretes de fado, estamos a falar de intérpretes da alma, e não existem duas iguais.”

É verdade. Mas no fado, como em tantos outros géneros da música popular, existe por vezes um ambiente em redor que propicia a competição. “Sim, no fado existe essa tendência de eleger a rainha ou o rei do fado. Mas isso não me interessa. O que é poderoso é quando se está lá fora e percebemos que as pessoas entendem que viemos de um país com qualidade musical. É isso que tento difundir, que existem muitos bons músicos em Portugal. Os brasileiros, por exemplo, cantam todos uns com os outros, estão sempre a divulgar a música uns dos outros. Parece-me que é por aí.”

No dia em que falamos os acontecimentos funestos de Paris estavam na ordem do dia. Isso e o processo de Luaty Beirão e dos restantes activistas detidos em Angola e acabamos a falar do papel que os artistas podem ou não ter quando se deparam com conflitos sociais ou políticos.

Há uns meses foi convidada por Isabel dos Santos (filha do Presidente de Angola José Eduardo dos Santos) para cantar na inauguração de uma exposição da responsabilidade do marido, Sindika Dokolo, e acedeu. E há dias cantou no concerto Liberdade Já! em Lisboa. Aos olhos de alguns poderá haver aqui alguma contradição e ela tem consciência disso.

“Há pessoas que podem ter essa leitura, mas esta é a forma que encontrei de ir gerindo as coisas. Nesse concerto da Liberdade Já! tive gente à minha volta a dizer-me para não ir por causa da carreira, mas senti que devia ir, mesmo que tal gesto possa não ser bem recebido junto de alguns sectores de Angola. Tenho uma ligação com o país e se for importante a minha presença em determinado sitio e se achar que posso fazer alguma diferença, vou sem hesitação. E foi o que fiz.”

Vivem-se dias conflituosos e os artistas podem ter um papel interveniente, embora ela também goste de pensar que a música, e a arte em geral, por si só já são um contributo para uma vida social sadia.

Nos últimos tempos não tem conseguido ir a casas de fado e tem tentado colmatar essa ausência de proximidade com os outros, instituindo sempre que pode tertúlias em sua casa, para onde são convidadas pessoas de diversas áreas. Recebê-las é um dos seus prazeres, mas estar em casa, só, também a fortifica. “Nada me dá mais prazer do que acordar, abrir portas, deixar sair os dois gatos para um pequeno jardim e ficar por ali com eles. Pequenas coisas, às vezes as mais importantes.”

 

 

Notícia corrigida : por lapso escreveu-se Edu Lobo em vez de Edu Mundo. 

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