Richard Linklater conquista Berlim com Boyhood
Boyhood são doze anos da vida de um miúdo filmados "em tempo real". É o melhor filme de Linklater e o melhor filme do concurso de Berlim 2014.
As expectativas eram elevadas – o seu autor é Richard Linklater, que venceu o Urso de Prata por Antes do Amanhecer e assinou com as suas sequelas Antes do Anoitecer e Antes da Meia-Noite três dos mais universais filmes de culto dos últimos 20 anos. Mas, mesmo assim, Boyhood (Competição) transcende as expectativas. É como se os três encontros de Julie Delpy e Ethan Hawke tivessem sido meros preliminares para estas quase três horas, em que o interesse de Linklater em olhar para a vida como ela é e não como os filmes a pintam cristaliza e atinge a forma ideal.
“Um filme é uma construção,” diz Linklater à plateia de jornalistas na conferência de imprensa que se seguiu à projecção do filme. “Mas eu estava à procura de algo mais realista: o modo como o tempo passa pelas nossas vidas. O que acontece não é dramático, precisamente porque queria mostrar uma família normal, a viver os pequenos momentos que fazem a diferença, em vez dos 'grandes momentos' que se vêem sempre nos filmes como o primeiro beijo, a primeira queca, o baile de finalistas...”
Confirma-se, não se vê nada disso em Boyhood. São 12 anos de vida de Mason, filho de pais divorciados, da primária até à entrada na faculdade; da procura da sua identidade, do modo como se relaciona com a irmã mais velha, com o pai que apenas vê aos fins-de-semana e nas férias, com a mãe, com os padrastos, com os meios-irmãos, com os amigos. Doze anos que foram filmados “em tempo real”: Boyhood foi rodado ao ritmo de uma semana de trabalho por ano, com os mesmos actores a regressarem anualmente aos seus papéis. Sem maquilhagem nem próteses; apenas actores que crescem (Ellar Coltrane, que interpreta Mason, e Lorelei Linklater, filha do realizador, no papel da irmã) e outros que envelhecem (os pais, representados por Patricia Arquette e Ethan Hawke).
Michael Apted fez uma coisa parecida na série televisiva 7 Up, em que todos os sete anos regressava para filmar as mesmas pessoas, e o próprio Linklater explorou a ideia na “trilogia Antes...”. Mas Boyhood leva o dispositivo ao limite. Como diz Cathleen Sutherland, produtora, na conferência de imprensa: “Num projecto com esta duração, rezamos muito para que tudo corra bem e para que não haja problemas.” O realizador confirma. “Embarcar num projecto destes implica um salto no escuro e muito optimismo para com o futuro... Sabíamos lá o que iria acontecer ao longo de 12 anos. Para já não falar do facto de que é ilegal contratar alguém por um período de 12 anos, quanto mais um miúdo de seis anos... ”
Guião estava escrito
Ao longo de todo este tempo, Linklater nunca mostrou o material rodado aos seus actores – só o fez depois de terminar a montagem. Daí que ver o filme acabado tenha sido para os actores uma experiência avassaladora. Ellar Coltrane define-a como catártica - “foi muita coisa para digerir ao mesmo tempo”. Para Lorelei, chegou a ser doloroso: "É muito difícil vermo-nos a nós próprios nestas idades difíceis...”. “Mas é verdade que não sei de nenhum actor que tenha estado antes nesta situação de regressar anualmente ao mesmo papel,” adianta o realizador.
Sucedem-se as perguntas: o guião foi improvisado ou estava escrito? “Estava completamente escrito,” explica Linklater. “Nunca pusemos a câmara a rodar só para ver o que acontecia, não tínhamos o luxo de poder repetir takes... Mas o guião foi um trabalho de colaboração, o objectivo era que os diálogos fossem autênticos e parecessem vir da cabeça das personagens e não de um argumentista.” Estava tudo escrito desde o princípio? “Tinha na cabeça a arquitectura geral da história, mas entre cada período de rodagem tínhamos um ano para ir pensando nos pormenores.” As mudanças físicas nos actores (penteados, peso...) estavam também escritas? “Não. Íamos falando durante os intervalos, mas tudo isso era naturalmente integrado na narrativa. A verdadeira mudança é que os miúdos iam crescendo, amadurecendo, e eu sabia que mostrá-los a crescer iria dizer muito por si só.”
E diz. O que há de espantoso em Boyhood é o modo como, sendo um filme que se define em função da experiência adolescente americana, se torna simultaneamente universal. Porque, mesmo que o contexto varie, todos tivemos discussões ou momentos para recordar, bons ou maus, com familiares, amigos, namoradas, colegas. Sobretudo, o que Linklater aqui captura magistralmente é a experiência temporal de crescer, de viver, de aprender. Raros são os filmes que conseguem representar o tempo, e o tempo quotidiano, deste modo discreto, quase casual – as três horas de Boyhood passam num ápice. Ao fazê-lo, chega mais próximo da dimensão excepcional das coisas banais. Já perto do fim, quando Mason está à beira de partir para a faculdade, a mãe, chocada com a banalidade de um momento que achava ir ser muito mais dramático, pergunta-se “é só 'isto'? Achei que fosse outra coisa, que fosse ser 'mais'”.
É aí que reside a chave de Boyhood: não é preciso, na verdade, que a vida seja “mais” do que “isto”. Basta apenas recordar-nos regularmente que isto, muitas vezes, chega e sobra. É por isso que o Berlinale Palast rompeu em aplausos no final da projecção de imprensa, que a conferência de imprensa foi a mais longa e a mais interessante da edição 2014, que pelos corredores da Berlinale não se fale de outra coisa. Nada mau para um realizador que acha não ter crescido grandemente enquanto cineasta (“tenho que me contentar comigo próprio,” disse).
Mas é de Patricia Arquette a última palavra. “Não há muitos realizadores americanos contemporâneos que tenham este tipo de sensibilidade para com os actores e para com os temas. A única pessoa que poderia ter feito este filme é o Rick.” Tem razão. Boyhood é o melhor filme de Richard Linklater – e o melhor filme do concurso de Berlim 2014.