Richard Flanagan foi a "escolha conservadora" mas "sólida" do primeiro Booker aberto a todo o mundo anglófono

Em The Narrow Road to the Deep North, Flanagan, de 53 anos, conta a história do pai enquanto prisioneiro de guerra no Japão durante a II Guerra Mundial. A publicação em Portugal está prevista para o princípio de 2015 pela Relógio d'Água.

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Richard Flanagan REUTERS/Alastair Grant/Pool

Terça-feira à noite, na cerimónia de entrega do prémio, Flanagan, de 53 anos, explicou como a construção dos 415 quilómetros de caminhos-de-ferro que ligam Banguecoque, capital da Tailândia, e Rangun, antiga capital da Birmânia, sempre esteve presente na sua vida: “Em criança o meu pai ensinou-me as palavras japonesas 'san byaku san ju go'. Era o número dele, o 335, pelo qual respondia como trabalhador escravo dos japoneses na Ferrovia da Morte", lembrou Flanagan.

Antes, no início do discurso, o escritor, autor também de The Sound of One and Clapping (1998) e Wanting (2008), falou brevemente sobre as suas origens, longe de uma linhagem ligada à literatura: "Venho de uma pequena cidade mineira na floresta tropical numa ilha no fim do mundo. Os meus avós eram iletrados. Nunca esperei estar aqui, em Londres, à vossa frente, como escritor e ser tão honrado."

Flanagan nasceu e cresceu na Tasmânia, abandonando o liceu aos 16 anos. No entanto, acabou por se formar em Literatura em Oxford, onde entrou com uma bolsa de estudos. E o título do livro com que se tornou no terceiro australiano até hoje a receber o Booker encerra todo um programa literário: The Narrow Road to the Deep North – ou The Narrow Road to the Interior – é o título com que normalmente é traduzido para inglês Oku no Hosomichi, um dos mais importantes textos da literatura clássica japonesa.

Cruzando poesia e prosa, em Oku no Hosomichi o poeta Mashu Basho faz o relato épico das suas deambulações pelo Japão do período Edo, que atravessou a pé em finais do século XVII. Oku no Hosomichi acabaria reconhecido como uma das obras maiores do haibun, um género então recente e, normalmente, de registo diarístico e autobiográfico. É essa a tradição que Flanagan reivindica para si e para a história heróica do seu pai, que morreu no ano passado, aos 98 anos, no exacto dia em que o filho lhe contou que tinha acabado o manuscrito e o enviara à sua editora.

“Senti que tinha escrito todos os meus livros anteriores apenas para agora escrever este”, disse anteontem o escritor, contando como pouco antes de terminar este seu sexto romance ponderou ir trabalhar para as minas no Norte da Austrália. “Não sou rico. Essencialmente, este prémio significa que vou poder continuar a escrever”, disse, ao agradecer o cheque de 50 mil libras (63 mil euros) que acompanha o Booker.

É que 12 anos é muito tempo. E Flanagan não se limitou a recolher informação junto do pai. Durante o período de pesquisa, viajou para o Japão, procurando alguns dos guardas do campo do prisioneiro 335. Um deles, recordado por Archie Flanagan como o mais sádico dos oficiais japoneses, pareceu-lhe “um velho gracioso”.

No livro, Archie chama-se Dorrigo Evan, personagem nascida do cruzamento das memórias do pai de Richard com a história de um homem que foi em tempos vizinho da sua família. De origem lituana, no fim da guerra, esse homem voltara à sua aldeia para encontrar apenas destroços e nem sinal da mulher. Depois de anos a procurá-la, desistira e emigrara para a Tasmânia, onde voltara a constituir família. Então, em 1957, numa viagem a Sydney, viu a sua mulher desaparecida a andar na rua com uma criança em cada mão. “Ele sabia que tinha apenas instantes para decidir manifestar-se ou continuar a andar”, contou o escritor.

“Os dois grandes temas desde a origem da literatura são o amor e a guerra: este é um romance magnífico de amor e guerra", disse ainda o presidente do júri do Booker, um dos prémios literários mais prestigiados do mundo e que este ano, pela primeira vez, foi aberto a todos os autores de língua inglesa, independentemente da nacionalidade, desde que publicados no Reino Unido.

The Narrow Road to the Deep North não é, de todo, o primeiro romance a abordar os dramas humanos ligados à construção da Ferrovia da Morte. No entanto – e “apesar de poder ser visto como uma escolha conservadora” –, “traz uma nova abordagem a um tema lancinante”, escreve Justine Jordan, editora de literatura do diário britânico The Guardian: “É uma escolha sólida do júri.”

Ali Smith, Joshua Ferris, Karen Joy Fawler, Howard Jacobson e Neel Mukherjee eram os restantes candidatos. 

O único romance de Richard Flanagan publicado em Portugal é O Livro dos Peixes de Gould: uma história de doze peixes (na Dom Quixote em 2006), mas esta quarta-feira a Relógio d'Água anunciou que no início de 2015 lançará o romance agora premiado, numa tradução de Miguel Serras Pereira. 

 

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