Reinaldo Moraes explicado às portuguesinhas
O Cheirinho do Amor é um passeio pela mitologia sexual brasileira. Sexo, humor e libertinagem verbal.
O Cheirinho do Amor, que reúne as “crónicas safadas” do escritor brasileiro Reinaldo Moraes (ed. Quetzal), não traz glossário. “A verdade é que o romance Pornopopeia, que foi tão bem em Portugal, era cheio de expressões idiomáticas, várias delas inexistentes inclusive. E ninguém reclamou”, defende-se Reinaldo Moraes enquanto come, com pauzinhos, umas sardinhas marinadas num dos botecos japoneses mais carismáticos de São Paulo.
Contrapomos: num dos seus emails, para marcarmos este encontro, aparecia a palavra “pirulitar” que também usa nas crónicas. Um português fica sem saber o que dizer. “É cair fora, queimar o chão”, explica Reinaldo. Daí a expressão brasileira “vou-me pirulitar” ou pirulitar-se.
Lembramos-lhe que numa das crónicas deste seu livro, intitulada O que é que a brasuca tem? - onde anda à volta da pergunta “Todo o mundo acha que sabe o que é que a brasileira tem. Mas será que sabe mesmo?” - fala a determinada altura “das tentativas do império americano de seduzir a ‘galerinha do patropi’...”. Paciente, Reinaldo come mais uma sardinha e explica: “A galera é a gente. Aqui trata-se de ‘a gente do patropi’ que é uma expressão que ficou muito famosa no Brasil nos anos 60 por causa da música de Jorge Ben que falava do patropi, do País tropical”.
Nesse momento fez-se luz na cabeça da portuguesinha. Claro! Veio à memória a canção que começa com um “Moro... Num país tropical, Abençoado por Deus E bonito por natureza” e que lá para o final da canção passa a ser “Eu Mor... No patropi, Abençoá por Dê E boni por naturê…”
É final da manhã de sábado, a entrevista para o Ípsilon acontece no Bar Kintaro [lê-se Kintarô], na Liberdade, o bairro japonês em São Paulo. Atrás do balcão está Dona Líria, naquele dia sem a ajuda dos filhos, conhecidos lutadores de sumo, que treinam ao fim-de-semana.
Reinaldo Moraes, que será uma das estrelas da próxima FLIP - Festa Literária Internacional de Paraty, em Julho, e tem este novo livro de crónicas à venda em Portugal, mesmo a tempo da Feira do Livro de Lisboa, desvia a conversa do glossário e conta que conheceu este bar por causa do seu amigo poeta Fabrício Corsaletti, autor de Esquimó.
“O livro Esquimó é óptimo. Ele agora lançou um outro, Quadras Paulistanas, de quadrinhas que parecem muito Fernando Pessoa, são umas quadrinhas ao gosto popular, sobre a cidade. Às vezes é quase jornalismo poético. Ele fala de uma actriz, de um filme por que ficou apaixonado, de um bar... Fabrício tem trinta e tal anos. É da minha quota de amigos que tem metade da minha idade”, ri-se o escritor de 65 anos. O poema de Corsaletti começa assim: “Kintarô é um boteco da Liberdade/o melhor boteco da Liberdade/e talvez o melhor boteco do mundo//” .
Fabrício Corsaletti também é cronista, escreve na Folha de S. Paulo e foi a partir daí que nasceram essas quadras paulistanas. Outra leitura de crónicas que Reinaldo também recomenda são as de António Prata. “É filho do escritor Mário Prata, meu amigo, e conheço-o mesmo antes de ele nascer, quando estava ainda na barriga da mãe. É quase meu sobrinho mas escreve p’ra caralho!”, diz. “Tem também na Folha uma menina que é interessante, Tati Bernardi. Tem uma modernidade na escrita que às vezes ultrapassa até a minha compreensão, é muito up-to-date. Mas é muito interessante, é um negócio muito vibrante. Gosto também muito do Matthew Shirts. É americano, escreve em português, foi cronista do Estado de São Paulo e nos primeiros dez anos ele fazia até duas crónicas por semana. Não sei de onde ele tirava tanta ideia, era inacreditável. Agora escreve na Vejinha, que sai como um encarte da revista Veja São Paulo. E tem um livro onde ele reuniu algumas crónicas O jeitinho americano.”
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ARTIGO_SIMPLES
O que lhe passa pela cabeça
Nos agradecimentos, no final de livro, Reinaldo Moraes agradece às suas três filhas, em particular a Laura, que “do alto dos seus actuais 14 anos leu uma destas crónicas e com indisfarçável carinha de censura mandou: ‘Você escreve o que te passa pela cabeça, né, pai?’”
Reinaldo teve de admitir à filha que sim e que era essa a ideia. “Não me lembro qual foi a crónica que ela leu. Expliquei-lhe que vivo disso: escrever sobre o que passa pela minha cabeça e a ideia é também tirar algum humor disso tudo. Na verdade não sou pornógrafo, não estou fazendo pornografia, apesar de ter uma absoluta liberdade vernacular. Estou fazendo uma grande brincadeira com as mitologias ligadas ao sexo: a brochada, o tesão, a prostituição, o cara gay, todo esse universo meio mitológico. Mas sempre buscando o filão meio humorístico disso. Não estou ensinando sexo para ninguém”, afirma Reinaldo. Algumas vezes dá “uma buscada” do pouco que conhece de psicanálise, vai buscar também coisas ao cinema e à literatura, “ganchos para fazer uma triangulação com o assunto”.
Diz que não tem a menor ideia de quem lê as suas crónicas quando elas saem na revista Status, uma revista masculina. “Só conheço um amigo meu que lê. Esse meu amigo americano, o Matthew Shirts. Ele se diverte muito. Tanto que fez a orelha [badana] do livro na edição brasileira”, conta Reinaldo. E a badana reza assim: “Se você gosta de sexo – do tema, ao menos – e de uma boa história, vai se deliciar com este livro. É uma colectânea das crónicas mais safadas e divertidas de um dos melhores escritores de língua portuguesa.”
Que Reinaldo Moraes é um dos melhores escritores de língua portuguesa já se sabia desde Pornopopeia e também sabíamos como se sente à vontade no “franco território libertino”. Ele diz que nestas crónicas o que há é uma libertinagem verbal e uma manipulação dos mitos sexuais: o mito da mulher gostosa, o da potência, essa total fixação que as pessoas têm pelo tamanho do pau e o anal.
“No Brasil, a analidade é um tremendo tabu mas é a coisa que está mais na boca de todo o mundo. É uma espécie de mito. Tenho crónicas sobre isso, uma chama-se De quatro na Bundolândia. Este livro é um passeio pela mitologia sexual brasileira. Nada muito além disso e é basicamente para divertir. Essa revista onde as crónicas saem, a Status, é de entretenimento, não é uma revista cultural”, explica.
A revista foi criada nos anos 70 para competir com a Playboy brasileira. O escritor e biógrafo Ruy Castro foi editor da Status que tinha um concurso de contos super-famoso no Brasil e que revelou vários escritores. “Os vencedores eram publicados na revista e atraíam a atenção das editoras. Mas muita gente lia para ver mulheres peladas. Agora você entra na Internet e pode ver 500 mil pessoas nuas, mas você quer ver alguém que você conheceu vestido antes. Você quer ver aquela mulher que trabalha na novela, que é modelo, que você viu vestido e quer ver nua. É uma espécie de tara popular. Em vários períodos colaborei de forma esporádica com a revista, nos anos 70, 80 e nos anos 90 ela sumiu. Fechou. Em 2011, resolveram reabrir e me chamaram para escrever essa crónica’”.
A Status não tem mais nus frontais. “Aparece um peitinho, meia nádega, essas meninas dos reality shows ou starlets de novela. Eles pretendem criar um padrão de bom gosto por causa da concorrência da Internet. Pegam uns bons fotógrafos e têm matérias com coisas bizarras como o cara que foi que foi a um hotel de neve na Finlândia ou um outro que foi num prostíbulo de animais na Tailândia, coisas assim.”
Cozinha do fait-divers
Em todas as suas crónicas, Reinaldo Moraes enfia sexo. Ninguém lhe disse para fazer isso. Mas como está a escrever para uma revista cujo mote é esse – “tem sempre uma senhora de trajes bem leves na capa e muita matéria sobre sexo “-, acabou tentando se focar. “Se você for lendo da primeira à última crónica vê que nas primeiras o sexo é incidental - estou falando de alguma coisa e lá pelas tantas aparece alguma coisa que tem a ver com sexo-, só depois de um certo tempo, com medo de cair num certo automatismo, é que comecei a fazer matérias sobre o pau, a buceta, o orgasmo.”
Cada crónica, apesar de ser divertida, é exaustiva na maneira como Reinaldo aborda um determinado assunto. Por exemplo, naquela dedicada ao sexo no espaço o leitor fica a saber tudo o que queria e não queria saber. Muitas são feitas a partir de coisas que Reinaldo viu ou leu. São uma grande cozinha do fait-divers, como o próprio diz. “Tem um jornal que todo o mundo lê e tem um jornal do Reinaldo, que só ele lê”, costuma brincar Matthew Shirts.
Numa das crónicas mais surpreendentes, Catherine, Serge e moi, o escritor conta que quando vivia em Paris, em 1979, foi ver um filme de Michael Curtiz num cinema da rue Christine e a seu lado sentou-se um casal barulhento e às gargalhadas: Catherine Deneuve e Serge Gainsbourg. Aconteceu mesmo? “Sim, viro para o lado e estava sentado ao lado da Deneuve. Inacreditável isso. Ela não vai lembrar disso, o Gainsbourg já morreu, mas a Leila, a minha amiga que trabalhava naquele cineminha, lembra. Foi surrealista, você já foi num cinema de arte em França? Se respirar mais forte tem um cara a mandar você calar. E entra um cara bêbado, rindo, sempre falando e ninguém fala nada. Mas todos olhavam.”
Por todo o livro passam também muitas coisas portuguesas. A crónica que dá título, O Cheirinho do Amor, faz uma analogia entre o cheiro característico do bacalhau e o cheiro do sexo das mulheres. “A história do bacalhau foi absolutamente verdadeira. Fui comprar esse bacalhau e fiquei sentindo um cheiro nas mãos. Ia pela rua, como se tivesse trepando as mulheres todas da paisagem só com aquela sensação olfactiva.”
Na crónica À procura da bundinha perdida, uma das mais divertidas do livro, assiste-se a uma conversa entre Fred e Leonora, amigos de longa data que em tempos foram amantes. Ele pede-lhe uma foto de “sua bundinha vintage”. Ela tenta explicar-lhe: “Minha bundinha não é vintage, meu amor. É póstuma.”
Ele responde-lhe: “Que o quê, Leonora. Você é eterna!”. E ela diz-lhe que “não quer emplacar oitenta fazendo xixi na fralda, recitando batatinha quando nasce e esquecendo a letra na metade.” Pois, explica agora Reinaldo, “isso é uma canção de criança: ‘batatinha quando nasce esparrama pelo chão, a menina quando dorme põe a mão no coração”.
Na conversa entre Fred e Leonora também há este diálogo: “- A proposta que eu te fiz no e-mail? Topa? - Brincou, amigo. - Brinquei, uma pinoia.” Pois Reinaldo traduz baixinho para a senhora japonesa do bar não ouvir, “brinquei, o caralho”.
Claro que “meia-nove” que no livro também aparece é a nossa posição sexual “69”, “chupo-fodelança” é “um neologismo da mais alta putaria”, “dindim” é dinheiro, “caraminguás” é dinheirinho miúdo, “causar buchicho” é causar rebuliço. Lesco-lesco? “Isso é o bom e o velho sexo, a chamada actividade sexual.” Deve ser truca-truca. E “a hora do vamo-vê”? Reinaldo ri-se. “A hora do vamo-vê é também a hora em que as libidos florescem”. Mandrová? “É pau [leia-se pénis]”. Bilau? “Também”. E “Xanas tímidas”? perguntamos. “Xanas é xoxota [leia-se vulva]. Mas toma cuidado quando você for usar essas palavras. Eventualmente pode não ser a ocasião mais apropriada. [risos]” Reinaldo espreita pelo balcão para ver se a dona do restaurante está a ouvir a conversa. “Senão vai pensar que esta menina trabalha em jornal da zona...”, diz. Gargalhadas.