"Os livros de Stieg Larsson são a tragédia da minha vida"

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Como descreveria Stieg Larsson?

Era um homem muito inteligente e extremamente divertido, mesmo quando escrevia sobre assuntos sérios, como a extrema-direita. Era generoso, atencioso e disponível, e muito popular entre homens e mulheres. Um "natural born leader".

O que sentiu quando viu o primeiro volume da série Millennium, já depois da morte de Stieg?

Fiquei em estado de choque. Não sabia quando ia ser publicado, ninguém me informou. Vi um monte de livros expostos e tive de sair dali. Não aguentei.

Aconteceu-me o mesmo nos Verões seguintes; via os novos volumes à distância e reconhecia-os. Era como se estivesse a ver uma cobra. Uma revista francesa quis tirar-me uma fotografia a segurar nos livros e eu disse que não conseguia. São o símbolo da tragédia da minha vida.

Diz que em Espanha, em Itália e em França se discute o sentido de Millennium mas na Suécia não. Porquê?

Não se interessam por debater a situação da mulher, a situação da imprensa, a corrupção e a maneira como as empresas se comportam. O natural era que isso fosse discutido: está tão presente nos livros. Mas não levou a nenhum debate na Suécia. Só falavam de Stieg. Queriam saber quantos cigarros fumava, se punha leite no café, quantas horas dormia. Ninguém queria saber do que era importante. Fiquei muito surpreendida por Espanha se mostrar tão atenta. Há um professor de jornalismo em Barcelona que vai usar os livros nas aulas para mostrar como os media devem trabalhar e o Observatório Espanhol contra a Violência Doméstica e de Género atribuiu-lhe um prémio póstumo. Se calhar é mais fácil ver as coisas de fora. Quando acontece connosco passa a ser normal.

Stieg Larsson preocupava-se mais com os temas do que com as personagens?

Os temas surgiram primeiro. Temas sociais: as mulheres, a violência, a corrupção, os juízes, o que os políticos podem fazer. O poder que a política dá mas também o poder dos indivíduos para mudarem as circunstâncias da sua e de outras vidas. Há muita esperança também.

Ter assistido a uma violação quando era novo foi marcante para a luta de Stieg pelos direitos das mulheres?

Sou a única pessoa a quem Stieg contou isso: queria mostrar-me porque era tão empenhado contra a discriminação e a violência sobre as mulheres.

Foi essa força interior que fez com que fosse tão persuasivo nesta luta.

Não se tratava de uma agenda política, era uma coisa pessoal.

Para criar Lisbeth Salander, ele inspirou-se nas personagens de Astrid Lindgren?

Sim, na Pipi das Meias Altas, que é uma miúda. Mas o que aconteceria se fosse uma jovem mulher? O que pensaríamos dela? Continuaríamos a gostar dela? É um ponto de partida. Mas a Lisbeth Salander não é a Pipi das Meias Altas. A Pipi não é um "role model" para Lisbeth. Foi só o clique.

Lisbeth atrai pessoas por todo o mundo. Por que razão?

É honesta. Rege-se por princípios firmes e luta por eles. Fá-lo contra poderes, contra a polícia e contra os psiquiatras. Contra o tutor, contra o pai, contra toda a gente. É o "underdog" e não desiste. Parece que é disso que as pessoas estão à procura: de alguém que não desista.

Supera-se a si própria.

É um super-herói, mas ao mesmo tempo é tão frágil, tão pequena... Tem tudo contra ela mas não desiste.

Mostra-nos que podemos fazer coisas mesmo quando temos tudo contra nós. É uma celebração das capacidades do ser humano. Essa era uma das características do Stieg, ele via essa vontade de fazer alguma coisa de bom em toda a gente. É um reflexo do que ele era e da maneira como via a vida.

A personagem Mikael Blomqvist é um alter-ego?

Não. Mikael e Stieg partilham os mesmos princípios sobre o que deve ser o papel dos media (proteger as fontes, verificar factos e não colaborar com a polícia a não ser que se trate de uma investigação criminal). Mas só isso.

Viu os filmes?

Não dou dinheiro a esta indústria Millennium, e é por isso que também não compro os livros. Vi o primeiro porque me ofereceram. Está construído como um filme de acção e não reconheço nenhuma das personagens a não ser a Lisbeth Salander. Não reconheço Mikael Blomqvist e a personagem mais importante na vida dele, a Erika Berger, quase não existe. Vi o terceiro filme de graça numa antestreia e a série que está a passar na televisão sueca. Estou a gostar, comecei a reconhecer as personagens dos livros, mas não passará nos cinemas.

Quando estava a escrever os livros, Stieg mostrava-lhe o que ia escrevendo ou preferia que só lesse no fim?

[suspiro] Eu tentava não perturbar o seu processo criativo. Porque via que aquilo era uma coisa que ocupava a sua mente de uma forma intensa. Mas Stieg ora estava dentro daquilo, ora estava fora. E queria discutir. Queria que eu lesse o tempo todo. Às vezes dizia-lhe: "Não tenho tempo." E ele insistia: "Mas tens de ler." Não era aquele tipo de escritor que se fecha atrás de uma porta e aparece um ano ou dois depois com um livro escrito.

Escrevia em casa?

Na sala de estar. Ficava estendido de um lado do sofá com o computador no colo e eu ficava do outro, a fazer as minhas coisas. Estávamos tão perto quanto isso. Ele não podia guardar o que estava a fazer para ele.

A Eva também escreve?

Quando Stieg escrevia [a série] Millennium, eu trabalhava num manuscrito sobre o desenvolvimento de Estocolmo no início do século XX. Cheguei a escrever dois capítulos e deixei-os com um editor. Quando ele morreu não consegui acabá-lo. Stieg era muito espontâneo a escrever, não havia um grande planeamento.Era-lhe fácil escrever aqueles livros, acho. Não era preciso fazer muita pesquisa, já estava feita.

No seu trabalho jornalístico?

Sim, mas também nas coisas que fizemos juntos, naquilo que lhe ensinei. No que líamos e analisámos juntos. Naquilo em que trabalhávamos juntos relacionado com o combate político. Stieg não andou na universidade, e eu andei, por isso mostrei-lhe coisas que ele não conhecia. A descrição de Estocolmo foi retirada do meu livro. Ele disse que não tinha tempo para fazer nenhuma pesquisa sobre isso e perguntou-me se podia tirar de lá informação sobre as áreas de Estocolmo. Disse-lhe que sim.

É verdade que foi a Eva a entregar o manuscrito à primeira editora, a Piratförlaget, que o rejeitou?

Não o chegaram a ler. Disseram que queriam ver o manuscrito, por isso Stieg enviou-o pelo correio mas o pacote foi devolvido meses depois. A morada estava correcta, nunca chegaram a ir levantá-lo aos correios.

Stieg telefonou-lhes a perguntar se não queriam ler, voltaram a dizer: "Claro que sim". Então peguei no manuscrito e perguntei: "Qual é o endereço? Vou entregar-lhes o livro em mãos." Fui lá, deixei o livro com uma jovem, voltei para casa e disse: "Missão cumprida, pacote entregue."

O que aconteceu então?

Passaram-se semanas, meses e nada. Stieg telefonou-lhes outra vez: "Já o leram? Querem publicá-lo?" Responderam que não. Então fui lá buscá-lo porque obviamente havia algum problema. Trouxe o manuscrito, que ficou pousado na nossa sala. Entretanto tínhamos outras coisas para fazer.

Por que escolheram esse editor?

São bons e fazem bons contratos com os escritores, dão uma percentagem muito maior do que o habitual.

Decidiram depois enviar o manuscrito para outra editora?

Não. Na verdade foi o editor da revista "Expo" que o levou para a Norstedts. Quatro meses depois, no final de Abril de 2004, decidiram publicar. O contrato foi assinado para três livros.

Quando se termina a leitura do terceiro volume, a história fecha, de certa maneira.

Stieg queria escrever dez livros mas não tinha planos sobre o que é que eles seriam...

É verdade que existe um quarto manuscrito que está num computador em sua posse?

Não está comigo. Não é um livro completo. Penso que tem cerca de 200 páginas. Era suposto que os livros tivessem cerca de 600 páginas, por isso ainda faltava muito para estar completo. Não há nenhum interesse em publicá-lo assim. Ofereci-me para o acabar e a família disse que não.

Então quem tem o manuscrito? Se não é a Eva, nem a família, é a "Expo"?

Não faço comentários sobre isso. Stieg nunca assinou contratos para os outros livros porque não estavam escritos. Não li o manuscrito mas sei o que está lá porque nós falávamos sobre isso.

Neste mês publica um livro em que analisa a lei sueca e os direitos de homens e mulheres que vivem juntos. O que a levou a querer escrevê-lo?

Falei com pessoas que estavam na mesma situação que eu -há outros casos horríveis e quero mudar a lei. É injusto o que me aconteceu. Quando Stieg morreu, perdi tudo. Não tinha direitos por não ser casada com ele. Metade do nosso apartamento pertencia-me mas os herdeiros, o pai e o irmão de Stieg, ficaram com a outra metade. Queriam que eu lhes desse o computador do Stieg em troca da outra parte da casa. Disse-lhes que não, que era contra a constituição e contra a liberdade de imprensa. O computador contém fontes, informações que não devem ser públicas. Esperei três anos para que dissessem: "Então queremos o dinheiro da nossa parte em vez do computador." Tive de vender o apartamento porque não podia ir outra vez ao banco pedir um empréstimo. Não podia suportar os encargos.

Está a decorrer um processo no tribunal?

A lei está tão mal escrita que não posso ir a tribunal. Não havendo um testamento, perde-se tudo.

Então o que está a tentar fazer?

Estou a tentar negociar através de advogados para conseguir uma solução. Posso recorrer a tribunal através da lei dos direitos imateriais por termos trabalhado juntos, em co-autoria. Mas o meu advogado disse-me que seria um processo longo e extremamente caro. Não tenho dinheiro.

Porque é que não colocaram referências a essa colaboração nas obras? Não falaram sobre isso na altura?

Não, não falámos. Nunca aparecíamos em público com os nossos nomes lado a lado. Era normal. Por causa do medo de que ele pudesse ser assassinado ou relacionado comigo. Stieg precisava de ter um lugar seguro, precisava de pelo menos ter uma morada que fosse secreta, onde ninguém lhe pudesse tocar.

Durante as negociações os herdeiros ofereceram-lhe dinheiro. Porque é que não aceitou?

Eles foram para os jornais dizer isso, mas nunca contactaram o meu advogado. É propaganda para mostrar que são boas pessoas. Estavam a negociar com Hollywood e precisavam de mostrar que tentavam resolver as coisas.

O meu advogado não percebe, eu não percebo. O que é que eles estão a fazer? Eu sempre disse que queria ter o direito legal de controlar como os livros são traduzidos, são adaptados ao cinema, e que queria dinheiro para fazer esse trabalho. É o que andamos a tentar negociar ao longo destes anos. Que eu tenha uma palavra a dizer sobre as mudanças que já foram feitas nos livros. Não estão interessados porque isto vai contra interesses instalados.

Em Janeiro, na Suécia, foi publicado o livro do jornalista Kurdo Baksi ("Meu amigo Stieg Larsson") e há agora quem duvide que Stieg tenha escrito os livros sozinho. Dizem que era bom a investigar mas não a escrever. Como vê isto?

Um amigo?! Não sei. Talvez as pessoas estejam com ciúmes de Stieg. Não suportavam que Stieg fosse popular e respeitado como jornalista e investigador especialista em questões de racismo. Stieg conhecia pessoas importantes, era um especialista ouvido pelo Ministério da Justiça, e acho que agora que está morto a inveja aparece.

Está a escrever um livro sobre Stieg Larsson. Vai ser publicado em França, no Outono?

Não é sobre o Stieg, é sobre o que aconteceu depois de ele morrer. Nessa altura comecei a escrever um diário tive que o fazer, ou ficava maluca e esquecia-me de tudo o que me estava a acontecer. Uma das minhas irmãs aconselhou-me a fazê-lo. É a base do livro. Mais tarde encontrei um editor.

Acabou por ser em França porque uma amiga minha que tem um apartamento na Riviera levou-me lá para eu conhecer editores franceses. Acreditava que tinham mais qualidade do que os suecos. E tinha razão.

Isabel Coutinho, em Estocolmo

O PÚBLICO viajou a convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros sueco


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