Quem tem medo de John Galliano? A frase, um pastiche do teatralQuem Tem Medo de Virginia Woolf?, foi cunhada pela então jornalista Catarina Portas e pelo produtor de moda Paulo Gomes em 1993, quando o designer britânico esteve para ser o convidado especial da ModaLisboa e gerou os protestos de uma série de criadores portugueses (Ana Salazar, Alves/Gonçalves, Tenente, Nuno Gama), que temia ser ofuscada pela exuberância de Galliano. A edição da ModaLisboa ficou congelada, Portas e Gomes perguntaram-no nos jornais, a frase acabou estampada em t-shirts vendidas no Bairro Alto. Ele já era um ícone. Hoje, véspera do desfile da Casa Christian Dior no Museu Rodin, em Paris, Galliano estará ausente, despedido da histórica e rica casa de moda parisiense após duas acusações policiais por insultos raciais, pelos quais será julgado nos próximos meses, e um vídeo com declarações anti-semitas que afastaram até a vencedora do Óscar de Melhor Actriz, Natalie Portman, de origem israelita. Que simboliza ele hoje?
Na sexta-feira, 25 de Fevereiro, Galliano foi suspenso da Maison Dior após a queixa de um casal, que diz ter sido insultado pelo criador, embriagado, no bar La Perle, do icónico bairro parisiense do Marais. Geraldine Bloch, 35 anos, diz ter ouvido: "Sua cara suja de judia, devias estar morta." Philippe Virgitti, 41 anos e de origem asiática, diz que o criador o ameaçou: "Seu cabrão asiático, vou matar-te." A importância e a carreira do homem que salvou a Casa Dior do prejuízo, um milagre da alta-costura mundial, estava suspensa por uma polémica grave que faz lembrar os dislates de Mel Gibson, ou, mais recentemente, de Charlie Sheen.
Mas na terça-feira seguinte, depois da divulgação de um vídeo (que será datado de 12 de Outubro e no qual as interlocutoras do criador se riem audivelmente) em que Galliano profere comentários anti-semitas no mesmo bar, dizendo nomeadamente "Amo Hitler" (o vídeo está no site do PÚBLICO), a Dior despediu-o mesmo. "O carácter particularmente odioso do comportamento" do criador no vídeo, lê-se no comunicado da marca, levou Sydney Toledano, presidente da empresa, "a condenar com grande firmeza as suas declarações".
A Casa tinha sido cautelosa desde o início, distanciando-se de Galliano assim que o alegado teor das suas declarações foi conhecido - ele negou inicialmente os factos,tendo o seu advogado Stéphane Zerbib enfatizado que o casal começou a discussão, gozando com o aspecto de Galliano.
Depois, nova queixa. Uma francesa diz ter sido insultada no mesmo registo e no mesmo La Perle, também em Outubro. Não se queixou mais cedo por ter achado que o criador estava alcoolizado. Novamente, o advogado de Galliano questiona estas acusações e o seu timing.
Entretanto, ontem à tarde, Galliano, já representado pela firma de advogados que defendeu Kate Moss, quando foi acusada de consumo de drogas, pediu desculpas. "O anti-semitismo e o racismo não têm qualquer papel na nossa sociedade. Peço desculpas sem reservas pelo meu comportamento", disse num comunicado divulgado pelas agências noticiosas. Não sem acrescentar que foi "sujeito a uma perseguição verbal e a uma agressão não provocada": "Um indivíduo tentou agredir-me com uma cadeira depois de ter comentado violentamente o meu aspecto e a minha roupa." Agora promete internar-se numa clínica de reabilitação.
Natalie Portman, cara do perfume Miss Dior Chérie (uma das principais fontes de lucro da marca, cujos desfiles espectaculares servem sim de alavanca para as vendas de produtos como os perfumes, cosméticos e acessórios), acabada de ganhar um Óscar, disse segunda-feira que nada queria ter a ver com alguém que proferia tais palavras contra judeus como ela. Em França, as declarações anti-semitas são puníveis com penas até seis meses de prisão.
Um génio em depressão?Chamaram-lhe mago, visionário, bad boy, expressões superlativas para alguém cujos méritos são quase inclassificáveis (a sua colecção de fim de curso na fábrica de talentos que é a Central Saint Martins de Londres chamava-se, logo em 1984, Les Incroyables). Agora, John Galliano fez algo inclassificável e isso custou-lhe o emprego. Depois de 22 anos em Paris, 15 anos dos quais na Casa Dior, Juan Carlos Antonio Galliano, um gibraltino filho de um canalizador britânico e de uma andaluza, outrora um jovem com um fraquinho pela Revolução Francesa, fez a sua derradeira vénia na marca - e de forma bem menos espectacular do que a habitual saudação de fim de desfile mascarado de Napoleão, rockeiro, pintor ou simples criação transgénero embebida por uma obsessão com o exercício físico, o botox e a dieta.
John Galliano é um pioneiro. Alexander McQueen (que se suicidou há um ano e cuja genialidade era muitas vezes comparada à de Galliano), Phoebe Philo (Chloé), Christopher Bailey (Burberry) ou Christopher Kane devem-lhe a rapidez com que se afirmaram em Londres e no mundo - da mesma maneira que Vivienne Westwood pavimentou a estrada por onde viajaria a imaginação de Galliano. É o mais importante da sua geração e, apesar da censura de Yves Saint Laurent, que considerava que a espectacularidade e a quantidade de materiais usados por Galliano eram mais circenses do que moda, John Galliano é todo um ícone.
Mas será um ícone em perda. Escreve o Le Figaro que fontes próximas do criador estavam já preocupadas com a espiral de morbidez e consumo de álcool em que Galliano estava mergulhado havia três semanas. Aparecia pouco nos ateliers, apesar da proximidade de mais um desfile-espectáculo, e o diário francês indica mesmo que as suas dietas e obsessões estéticas o tinham degradado até ao "tristemente patético". John Galliano, em 2006: "Fui eu que criei este monstro, porque ao escolher vir para Paris aspirava a um reconhecimento internacional." Suzy Menkes, influente editora de moda do International Herald Tribune, cita amigos de Galliano que dizem tê-lo finalmente convencido a procurar ajuda e reabilitação depois de um longo período de stress motivado pelo ritmo de trabalho. Diagnóstico: depressão numa profissão cuja mediatização global e rapidez de consumo cresceu à medida que Galliano se tornava um senhor da moda e não apenas mais um enfant terrible. Cada vez mais colecções, mais mercados (o BRIC - Brasil, Rússia, Índia e China, sempre, mais o Médio Oriente), fontes de inspiração e perdas: o seu companheiro foi encontrado morto em casa em 2007, a musa de Alexander McQueen e amiga de Galliano Isabella Blow matou-se em 2009, o próprio McQueen enforcou-se em 2010.
Depois deste escândalo, a maioria dos editores de moda, reunidos na semana de Milão e depois em Paris, mostrou-se triste mas ciente de que as declarações eram inconciliáveis com a direcção criativa da Dior. A directora da Vogue italiana, Franca Sozzani, foi mais longe e escreveu que o casal francês se aproveitou "do estado em que estava John", sublinhando que o vídeo-incidente parece mostrar alguém a provocar o criador embriagado. O criador Giorgio Armani, twittou ter "pena" de Galliano; e a herdeira Daphne Guinness, sua cliente, defendeu que "John estava obviamente a sofrer imenso. Ele simplesmente não é assim". Patricia Field, a responsável pelo guarda-roupa da série e dos filmes deSexo e a Cidade, lançou uma corrente de emails em apoio ao criador, lembrando que "John vive no teatro" e que tudo era "uma farsa".
Futuro incertoA depressão de Galliano pode ser uma reacção à mediatização total, uma transposição discriminatória do valor-choque da passerelle para a rua, ou simplesmente o comportamento de alguém que vive sem contestação, rodeado deyes men. Pela frente tem a memória de uma sociedade global e um gigante - e não se menospreze a dimensão deste Golias - da moda e do luxo. A Casa Dior, fundada por Christian e autora do new look, cujas saias rodadas e silhuetas ampulheta foram criadas em 1947 na ressaca da Segunda Guerra Mundial para celebrar o regresso da abundância de tecidos e que até hoje são o mais icónico feito da Maison, é uma das marcas mais valiosas do mundo.
Como escreveu esta semana o Financial Times, Bernard Arnault, o homem mais rico de França, patrão do grupo de luxo Louis Vuitton-Moët Hennessy e o responsável por Galliano ter sido o primeiro britânico à frente de uma casa de moda parisiense, na Givenchy, "tinha muito a proteger". "O custo financeiro de despedir o director criativo da Dior será suportável para Arnault e para a Dior" - aliás, as acções da Dior têm subido com o escândalo.
O valor de mercado da Dior é de 19 mil milhões de euros e as vendas o ano passado rondaram os 20,3 mil milhões. Ainda segundo o Financial Times, menos de quatro por cento desses milhares de milhões provêm da alta-costura Dior. São os tais perfumes de Natalie Portman, os cremes e as marroquinarias (pelos quais Galliano também era responsável desde 1999) que constituem o grosso das receitas do Golias do luxo.
Autor do guarda-roupa de Madonna em Evita e de inúmeros visuais de passadeira vermelha, é uma figura solitária, isolada, cujo comportamento nos últimos meses motivou inúmeras queixas de clientes da Dior, como se lia ontem no diário norte-americano New York Times.
Próximos capítulos: o que fará a polícia com a acusação a Galliano e com a acusação de difamação que Galliano apresentou contra o casal cuja denúncia iniciou o escândalo? Amanhã decorrerá o desfile Outono/Inverno 2011 na Semana de Moda de Paris, com a última colecção de Galliano para a Dior. Fala-se em Hedi Slimane (sete anos na Dior Homme), em Raf Simons (Jil Sander), Olivier Theyskens (Nina Ricci, Theory), Alber Elbaz (Lanvin), Riccardo Tisci (Givenchy, também do LVMH), Stefano Pilati (Yves Saint Laurent) ou Haider Ackermann para o substituir. E, por fim, há que decidir o que será da marca John Galliano, também propriedade da Dior, cujo desfile acontece no domingo.
Entretanto, o criador não fica sem trabalho nem rock"n"roll: tem de fazer o vestido de casamento da modelo-estrela Kate Moss.