O final não ecoa necessariamente o começo de uma obra. Durante sete meses, entre 2008 e 2009, João Pedro Vale realizou uma residência artística em Nova Iorque com o objectivo de pesquisar vestígios das comunidades emigrantes portuguesas da costa leste dos EUA, constituídas, em grande parte, por pescadores baleeiros originários dos Açores. O ponto de partida para o projecto tinha sido um filme de 1937, "Captains Courageous", realizado por Victor Fleming - autor de "O Feiticeiro de Oz" e "E Tudo o Vento Levou", dois filmes cuja iconografia fora apropriada por João Pedro Vale em obras anteriores -, com um pescador português chamado Manuel que é a própria personificação da bonomia (Spencer Tracy, com sotaque).
João Pedro Vale pergunta-se porque é que essa figuração hollywoodiana de um português nunca foi a lado nenhum em Portugal. "O filme não é muito conhecido cá, não é uma coisa com que as pessoas se identifiquem, não está presente no imaginário colectivo", resume. Tendo em conta que o seu trabalho tem vindo a remexer no nosso subconsciente colectivo, talvez tenha sido isso que o instigou a procurar mais fundo. A verdade é que foi para Nova Iorque com a ideia de fazer um projecto relacionado com "Captains Courageous" e acabou por executar uma versão alternativa do Grande Romance Americano - um filme pornográfico gay baseado em "Moby Dick". (Esteja o leitor à vontade para voltar atrás e certificar-se de que leu bem.)
"Hero, Captain and Stranger" é uma obra sem antecedentes. É o primeiro filme pornográfico português apresentado num contexto artístico. Depois de uma exibição em Novembro passado, no Cine Paraíso, um cinema porno de Lisboa, a experiência vai ser repetida amanhã, às 21h, na sala polivalente do Museu Colecção Berardo.
Antes de "Hero, Captain and Stranger", houve "Moby Dick", exposição que Vale apresentou na Galeria Filomena Soares, em Lisboa, até meados de Janeiro, com os objectos e o cenário utilizados no filme. Explica que não quis mostrar filme e exposição simultaneamente porque "não queria fazer uma coisa à Matthew Barney" (o artista americano expõe habitualmente os objectos dos seus filmes, que dessa forma ganham uma dimensão escultórica) e porque não via a galeria como o espaço ideal para apresentar o filme - não queria um lugar onde a relação dos espectadores com a obra fosse transitória, mas um lugar onde as pessoas ficassem, "e depois sairiam, se e quando quisessem". Houve espectadores a sair do Cine Paraíso em Novembro, quando mostrou o filme, mas não tantos quanto esperava, diz. "Agradava-me especialmente apresentá-lo num cinema porno. Encaixava tudo. Sabia que no momento em que as pessoas deixassem de prestar atenção ao filme iam começar a prestar atenção à sala. Interessa-me testar quando as pessoas tomam consciência do sítio onde estão."
O filme gerou mais "feedback" em termos de recepção do que qualquer obra sua tinha provocado - o que lhe agrada. "Não estava habituado a que as pessoas criticassem o meu trabalho. Quando falam comigo sobre as minhas exposições não dizem: 'Aquilo devia ser amarelo e não azul'. Neste caso, as pessoas todas tinham alguma coisa a dizer. E, independentemente de terem gostado ou não, sei que saíram de lá a pensar naquilo."
Profanar vacas sagradas
Visivelmente, João Pedro Vale, 33 anos, também tem demorado a libertar-se da experiência do filme. Por estes dias, deixou a barba tomar conta do rosto seco; na tarde de domingo em que o encontrámos, trazia uma camisola de lã grossa e, sobre a gola, um lenço atado num laço - um marinheiro em pleno Chiado.
Em Nova Iorque, começou a ler "Moby Dick" por causa de "Captains Courageous"; o romance de Herman Melville contém referências a marinheiros portugueses do Massachusetts. O artista criou a sua própria edição bilingue, lendo um exemplar da mãe, com uma tradução "do tempo da Maria Caxuxa", e outro em inglês. Apercebeu-se do peso que o livro tinha no imaginário dos americanos: a obra faz parte dos programas escolares, é um assunto "sobre o qual toda a gente podia falar". E isto, já se sabe, é terreno fértil para João Pedro Vale, que no seu trabalho tem explorado continuamente material que é dado por adquirido, temas e símbolos sobre os quais o imaginário colectivo já produziu verdades inquestionáveis, recontextualizando-os com uma ironia por vezes perversa. Dito de outro modo: Vale gosta de profanar vacas sagradas.
A leitura de "Moby Dick" foi acompanhada de ensaios da área dos "queer studies" sobre o romance de Melville: "Hero, Captain, and Stranger", do canadiano Robert K. Martin, onde foi buscar o título para o filme, analisa as relações homoeróticas presentes no livro de Melville, nomeadamente na relação entre Ishmael, o narrador, e Queequeg, o "selvagem" tatuado dos mares do Sul. Outro título tão ou mais fundamental foi "Moby Dick's Boring Parts", um ensaio de Jennifer Doyle. Nesse texto, a autora compara passagens de "Moby Dick" com pornografia: muitos dos capítulos do romance estão repletos de descrições enciclopédicas e cirúrgicas das particularidades anatómicas das baleias, entre outros assuntos, totalmente desligadas da progressão da narrativa, ao ponto de estes capítulos serem conhecidos como aqueles que "os apreciadores de histórias adoram saltar". Estas digressões exaustivas e "aborrecidas", como classifica Doyle, contrariam o desejo do leitor de avançar na leitura. São descrições técnicas, factuais, em "que não existe espaço para a metáfora, para a imaginação", acrescenta Vale, citando Doyle. É nesse sentido, defende a autora, que "Moby Dick" se aproxima da pornografia, comparando as "boring parts" (partes aborrecidas) do clássico de Melville à crueza das sequências "hard-core" dos filmes ditos para adultos. E assim Vale lembrou-se de fazer um filme porno.
"O desafio era: deixa-me fazer isto porque é como o intocável", explica. "Senti as pessoas incomodadas, não sei se por ser pornografia ou por acharem que a arte e a pornografia deviam estar separadas." A verdade é que essa abordagem lhe permitia explorar algumas questões que o interessavam, em particular o tédio. No filme, o próprio artista é visto a fazer gravações em dentes de baleia, recuperando uma velha técnica empregada por marinheiros durante os "tempos mortos", chamada "scrimshaw". Vale diz que o filme "é aborrecido" e que lhe interessa questionar o tédio no campo da arte - Warhol é referência óbvia.
a+b, a+c, b+c, a+b+c
De volta a Lisboa, criou o cenário no seu atelier, e colocou anúncios nos jornais pedindo pessoas para um filme porno experimental. Contactando com pessoas ligadas à indústria pornográfica, percebeu que ela enfrenta uma crise porque os consumidores preferem "coisas caseiras". Vale decidiu "fazer uma coisa com os amigos", embora reconheça que o filme "não ficou com um ar 'homemade'". Como as respostas ao anúncio tardavam - "Achei que era a coisa mais fácil. Achei até que era uma fantasia das pessoas. Foi super-difícil." -, recrutou o sueco Anton Dickson, que entrou em "The Raspberry Reich" (2004) do pornógrafo gay Bruce LaBruce ("fazer um porno num contexto artístico, para mim, a referência era o Bruce LaBruce", diz o artista), para fazer o papel de Ishmael; Queequeg é interpretado por Tecco Ribeiro, massagista brasileiro que respondeu ao anúncio, e Ahab é Drako, "performer" espanhol cujas actuações contêm sexo explícito. É o trio ao qual cabem as sequências "hard-core", que foram filmadas num só dia. O filme segue uma estrutura típica do cinema porno (a+b, a+c, b+c, a+b+c).
"Hero, Captain and Stranger" tem 68 minutos, é filmado a preto e branco, sem diálogos - todo o texto é lido por um narrador (Thomas McKean). A banda sonora é uma improvisação com guitarra a partir do tema instrumental "Moby Dick", dos Led Zeppelin, feita por Pedro Gonçalves, dos Dead Combo - dir-se-ia música de "western spaghetti". Mas Vale elimina todo e qualquer som nas sequências de sexo, o que representa uma clara ruptura com os códigos do porno que, inclusive, chega a acrescentar sons produzidos em estúdio para intensificar as sequências. Vale diz que o silêncio dessas cenas é inspirado no curto filme mudo de Jean Genet, "Chant d'Amour" (1950), e que quis cortar o som porque o filme "não está feito para as pessoas ficarem excitadas". Além disso, o silêncio parece prolongar a duração dessas sequências, "aumentar a sensação de nunca mais acaba".
O artista admite que talvez nunca tivesse feito o filme se não tivesse saído de Lisboa. E diz que não o fez "para chocar".
Em "Hero, Captain and Stranger", Vale regressa à temática da identidade gay que caracterizou os seus trabalhos iniciais - a obra representa uma movimento contrário ao que tem sido o seu percurso, que evoluiu de um questionamento da identidade sexual para a identidade nacional. Neste caso, sucedeu o contrário. O filme tem um carácter político: reconhece que sentiu que "era o momento para o fazer porque a questão estava ser levantada", referindo-se à discussão no último ano sobre a legalização do casamento homossexual em Portugal. A conversa com o Ípsilon decorreu um dia depois de uma manifestação em Lisboa em defesa dos valores da família tradicional. O artista nota que os manifestantes acabaram a cantar a canção disco "We are family" dos Sister Sledge, conhecida como um hino gay - o tipo de ironia que podemos encontrar no trabalho de Vale; às vezes, a realidade ultrapassa a arte.
João Pedro Vale podia ter feito "Hero, Captain and Stranger" há dez anos? "Não. Da mesma maneira que quando começámos à procura de actores e não havia, cheguei a ponderar fazer eu. Mas claro que não podia fazer. Se calhar daqui a dez anos já posso."