Quem, no domingo passado, à noite, seguiu a contagem dos votos, na Grécia, através dos vários canais portugueses de televisão, terá sentido uma enorme impaciência perante as milícias civis de comentadores e “politólogos”, que parecem personagens decalcadas dos aforismos satíricos de Karl Kraus contra os jornalistas do seu tempo: dizem e “comentam” porque não têm nada a dizer, e têm algo a dizer porque a sua tarefa é comentar. No meio de tanta indigência, lá apareceu, brandido por alguns, o fantasma do populismo, seja ele efectivamente encarnado ou tenha a condição de espectro. Estas almas penadas - para continuarmos no mesmo plano semântico - parecem não ter ainda percebido que não têm ao seu dispor nenhuma figura do povo para poderem agitar a bandeira do populismo, que o povo como sujeito político, tal como o conhecemos a partir da modernidade, desapareceu; e, no entanto, acham essas almas que existe essa coisa chamada “populismo”, cujo pressuposto, como o nome indica, é o de que ainda existe o povo como sujeito originário da política. Deste modo, tal conceito acaba por dizer muito acerca de quem o usa, mas já nada diz em si mesmo – é um conceito vazio. O que diz ele, então acerca dos seus utilizadores? Diz que ele engendra um conjunto de sintomas de uma doença imaginária, mas apta a produzir efeitos reais, chamada demofobia. Se existe populismo, é lógico que exista o seu contrário, a demofobia, que se traduz, entre outras coisas, numa atitude que minimiza ou lança o descrédito sobre o voto dos cidadãos, sob o pretexto de que ele não é genuinamente livre porque resulta da ignorância, da falta de educação, da desinformação e de manipulações de vária ordem. Em boa verdade, o que hoje solicita um exercício de pensamento não é um pretenso populismo, mas o “despovoamento” do povo (e, já agora, a pergunta se ainda pode existir a ocasião ou a condição de possibilidade de o relançar). Num livro notável de teoria política, On Populist Reason (2005), de Ernesto Laclau, o populismo é definido com base na ideia de que a política não é senão a construção de um povo. Para Laclau, um povo é o resultado de uma política e não, pelo contrário, o seu pressuposto, que é como o vêem os paranóicos vigilantes do populismo (do populismo político, já que não lhes merece a mesma reserva o que, pela mesma lógica, classificaríamos como “populismo cultural”). A teoria de Laclau coloca no entanto o problema de ser limitada: põe em acção uma forma de determinismo que impede de pensar a função da política fora da órbita de uma prática de governo, fora da sua implicação com o poder. Por outras palavras, exclui a eventualidade de a política ser o acontecimento de um impossível, uma ruptura que tem a capacidade de imaginar e provocar. Ou seja, não uma política que funda o povo, mas uma política para a qual o povo falta, como acontece na afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que não existe. Foi Gilles Deleuze que, falando de um “cinema político moderno”, e citando Paul Klee, disse que a obra de arte devia, por definição, dirigir-se a um “povo que falta”, e nunca pressupor um povo. Pressupondo um povo renunciaria a toda a autonomia e deixar-se-ia capturar. Trata-se de ver o que ainda não se vê. Os actuais denunciadores do populismo, incapazes de entender a política como algo mais do que gestão e método, táctica e estratégia, vêem outra coisa: vêem um papão, sob a forma do povo que já não existe. Lutam contra fantasmas. Eles próprios são mortos-vivos, zombies do comentário e da “politologia” do pequeno ecrã.
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