Pintura de Pomar será a primeira de um artista vivo classificada em Portugal
O Almoço do Trolha, ícone do século XX português, vai a leilão na quarta-feira. Com o processo de classificação em curso, Estado poderá exercer o seu direito de preferência na compra.
Com a classificação, O Almoço do Trolha torna-se numa obra de circulação restrita, com protecções inscritas na lei 107/2001, conhecida como Lei de Bases do Património Cultural. Está nomeadamente obrigada a permanecer em território nacional. Qualquer alienação futura no estrangeiro poderá dar-se apenas mediante excepcional – e improvável – procedimento de desclassificação.
A Correio Velho recebeu na quinta-feira à noite uma carta do director-geral do Património Cultural, Nuno Vassallo e Silva, a anunciar a abertura deste processo, iniciado a pedido de dois especialistas: a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, membro da secção de museus do Conselho Nacional de Cultura, e o também historiador de arte, David Santos, ex-director do Museu do Neo-realismo de Vila Franca de Xira e actual director do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado.
Contactado na quinta-feira pelo PÚBLICO, Vassallo e Silva referiu que "é uma peça importantíssima”. Escusou-se, no entanto, a prestar quaisquer outras declarações. Até ao leilão ficará por saber se o Estado comprará a obra.
Por lei, apesar da classificação, o Estado não está obrigado à aquisição, no entanto, se assim entender, poderá tanto licitar entre outros interessados como esperar pelo fim das ofertas ao lote em causa e exercer então o seu direito de preferência, adquirindo a peça pelo valor final.
Esse é um valor por enquanto imprevisível. A Palácio do Correio Velho tem o preço sob consulta: está a auscultar o mercado – estabelecerá uma base mínima de licitação apenas no dia do leilão. Sebastião Pinto Ribeiro, director-geral da leiloeira, diz que a opção foi tomada por não haver precedentes para uma obra desta importância do mesmo autor. Na opinião deste responsável, a classificação “não vai afectar o valor a atingir”.
Pinto Ribeiro não avança números. Já Luís Urbano Afonso, investigador responsável pelo mestrado em Gestão de Mercados da Arte do ISCTE, fez um levantamento do mercado leiloeiro de Lisboa nos últimos dez anos e diz que Pomar é o artista com maior facturação nesse período – à frente de Paula Rego e Vieira da Silva. O valor mais alto atingido por uma pintura deste artista foram os 180 mil euros conseguidos por uma tela dos anos 1970.
O Almoço do Trolha, que mede 1,50 por 1,20 metros, é anterior e uma obra de museu, uma peça fundamental, referida em todas as histórias de arte portuguesa – isso apontará para um valor bastante superior. Mas é também um trabalho de conteúdos políticos muito marcados, longe do carácter mais leve ou decorativo preferido pelos coleccionadores deste segmento de mercado. “Não faço ideia quanto possa atingir, não sei se o mercado vai valorizar a importância histórica”, diz Urbano Afonso. Avança dois números: “Talvez 300 a 400 mil euros. Não sei.”
Um murro no estômago
Júlio Pomar, hoje com 89 anos, pintou O Almoço do Trolha em dois momentos, entre 1947 e 1950 – antes e depois da sua prisão pela PIDE, em Caxias. Militante comunista desde 1945, tinha apenas 21 anos quando começou a tela que foi exposta inacabada na 2ª Exposição Geral de Artes Plásticas da Sociedade Nacional de Belas Artes – a Geral de 1947 invadida pela polícia política. Na pintura, chama a protagonista da grande arte e em grande formato o mundo dos oprimidos e desfavorecidos, representados por um trabalhador da construção civil e sua família.
É um trabalho que “confirma Pomar, com pouco mais de 20 anos, como um artista de grande maturidade intelectual e estética, de forma precoce”, refere David Santos. Fala como historiador especialista neste período e recusa prestar declarações sobre o processo de classificação em curso.
Cruzando influências do expressionismo alemão, do cubismo de Picasso, traços do futurismo de Almada Negreiros e do imaginário de artistas como o brasileiro Candido Portinari, Pomar retrata duas figuras de traços rudes e tons sombrios: o trolha e a sua mulher, sentados durante a pausa para o almoço no interior do próprio estaleiro de obras, que os enquadra. Entre o corpo de ambos, um bebé de colo, o filho desta sagrada família operária, é figurado em traços muito distintos: de rosto suave e luminoso, poderá representar a esperança de liberdade.
É uma obra “excepcional”, não só pela sua qualidade plástica como histórico-política, diz Raquel Henriques da Silva. A historiadora lembra que pouco depois da 2ª Geral, em que esta pintura foi exposta, António Ferro, secretário de Propaganda Nacional, foi afastado por Salazar. “[O Almoço do Trolha] reúne muitos valores simbólicos da nossa história.”
Por isso mesmo, em 1994, Raquel Henriques da Silva, à época directora do Museu do Chiado, tentou a compra. O museu reabria nesse ano, depois do incêndio do Chiado. Recebeu uma verba excepcional para aquisições. Entre os especialistas da casa, o título fez-se ouvir em coro, recorda a historiadora.
Desde a sua realização, a obra tinha tido um único proprietário, o engenheiro Manuel Torres, na década de 1950 um dos fundadores da Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses e amigo de Pomar. “Quando lhe liguei ele pediu 24 horas para pensar”, recorda Raquel Henriques da Silva. No dia seguinte a resposta foi negativa: “Falou com os filhos e disse que nem ele nem os herdeiros venderiam, mas que se um dia acontecesse o museu seria o primeiro a saber.”
Devido a essa promessa, a chegada da pintura ao mercado, após a morte do proprietário original, este ano, “foi um murro no estômago”, diz ainda a historiadora: “É um grande desgosto que a obra esteja em leilão e estejamos a correr contra o tempo.”
Mas é também “uma grande lição”: “A história [recente] do Crivelli mostra bem que os proprietários não ganham nada em confiar no Estado”, diz referindo-se aos 10 herdeiros que ao longo de anos não conseguiram a desclassificação dessa importante pintura renascentista, acabando por a vender ao conhecido empresário Miguel Pais do Amaral que, por sua vez, conseguiu rapidamente fazê-la sair do país a preço superior.
No actual contra-relógio para a salvaguarda de O Almoço do Trolha parece haver um consenso: o destino a dar a esta pintura-manifesto caso venha a ser adquirida pelo Estado. Sara Antónia Matos, directora do Atelier-Museu Júlio Pomar, refere não ter dúvidas de que deverá ficar numa colecção nacional – a do Museu do Chiado. É também a opinião de David Santos, o director desse museu, e de Pedro Lapa, o seu antecessor, hoje à frente do Museu Berardo.
Todos estes especialistas referem como a tela se juntaria assim ao também icónico Gadanheiro, uma tela que Pomar assinou pouco antes. Datada de 1945 e dada como momento inaugural para o movimento neo-realista, chegou ao museu em 1995 adquirida ao galerista e coleccionador Manuel de Brito. Retrata um trabalhador do campo a ceifar com a perspectiva e composição a distorcer-lhe o corpo e a dar protagonismo à sua ferramenta de trabalho: o próprio gadanho.
“O Almoço do Trolha é uma peça fundamental. Tem de entrar num museu e devia ser o Chiado”, diz Pedro Lapa, também historiador de arte. No Chiado, onde estão obras fundamentais da terceira geração modernista, ajudará a esclarecer a constelação das questões centrais dessa geração.
É no Chiado que está a pintura abstracta 02-44, de Fernando Lanhas, também conhecida como O Violino. É no Chiado que está também representado o movimento surrealista, o Joaquim Rodrigo abstracto e Nadir Afonso. “O destino deverá sempre ser o Chiado”, repete Lapa.
No leilão da Correio Velho há um núcleo de 23 outras obras de Pomar, todas vindas da colecção de Manuel Torres. Entre os outros artistas a ir à praça estão Artur Bual, José Cargaleiro, Columbano, Costa Pinheiro, Eduardo Viana, Escada, João Hogan, Julião Sarmento, Lima de Freitas, Nadir Afonso, Paula Rego e Sá Nogueira.