Nas imagens de Paula Rego, nestes colectivos de gente estranha, há muitas vezes uma espécie de baile para começar ou já terminado. Chegamos àquelas histórias cedo demasiado e ou demasiado tarde. Vemos como a corte parece falhar, invariavelmente. A meninas noivas estão prontas para os rituais de dois. Elas encaram-nos como se postas numa montra oferecidas à nossa capacidade de amar. Elas são asperamente amorosas. Aguardam-nos sem prometer, apenas severamente atrapalhadas na educação para a sensualidade. As meninas da gravura parecem pedir-me que as tire daquele quarto estranho. Que as tome como quem sobe alguém para um muro. Estão afundadas na imagem e querem ascender ao assento do muro. Eu sou enorme diante delas. Prefiro quase explicar-lhes que devem esperar o tempo da infância. Mas como convencer da validade da infância uma criança velha? Uma criança que envelheceu impossivelmente, talvez já muito mais do que eu.
De algum modo, pouca coisa simboliza melhor o terror do que a degeneração das crianças. Exactamente pelo que esperamos de cândida pureza nelas, porquanto representam toda a esperança e a nova oportunidade de uma redenção para a humanidade. Por isso os filmes usam tanto as crianças para nos incomodarem. São fantasmas, rodam as cabeças, brincam com facas, sangram, dizem palavras estranhas, em latim, usam roupas antigas, aparecem em fotografias desbotadas, sorriem como se tivessem lido o Proust inteiro. Não há pior. Tememos as crianças que escapam à benignidade. De todo o modo, aquilo que destrói a infância é, inevitavelmente, terror puro.
Quando Paula Rego entende a força crítica da infância, enquanto tópico precioso da arte e, por isso, da questão humana, ela glorifica e procura um antídoto para o perigo. Ela glorifica a dimensão maravilhosa e fantasista das crianças e procura um modo de perspectivar a eminente decadência. O que é oferecido pelas gulas egoístas de cada um mediante a deturpação paulatina dos valores. O que nos mostra é a falência de projectos que se fundamentam em padronizações já impossíveis de se universalizarem. Ou seja, as minhas meninas noivas não vão todas casar. Algumas ficarão certamente à espera, entristecendo e enraivecendo no olhar. Acusando-me de ficar solteiro, ao invés de aceitar-lhes o coração cada vez mais espinhado, como as belíssimas e um pouco ameaçadoras rosas.
É uma ideia muito racional do amor. Belíssimo e ameaçador. Passamos todos pelo tempo de nos espinhar o coração. A arte avisa. Paula Rego avisa. Amo-a muito.