Patti Smith inteira

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Patti Smith está atrasada e tudo o que temos é o contacto da sua agente em Itália. Que não atende o telefone. O café, onde os empregados falam hebreu com os clientes, vai esvaziando. Já não sabemos se os nervos têm a ver com a perspectiva de encontrar Patti ou com a perspectiva de não encontrar Patti. Ela aparece, ao fim de uma hora. Tinha estado a escrever, e perdera noção do tempo.

“Não esteja nervosa. Eu estou mais nervosa, não podia estar com pior aspecto. Quer dizer, olhe para mim: tenho calças de pijama. Dormi com estas roupas. Até dormi com uma camisola porque o meu sistema de aquecimento não estava a funcionar. Não lavei os dentes nem nada, portanto está a ver-me em desvantagem.” Logo ela, que supostamente é um “ícone da moda”, brinca.

Patti Smith é sempre a primeira a desfazer leituras mitológicas. Em “Dream of Life”, o documentário que o fotógrafo Steven Sebring fez depois de filmá-la durante 11 anos e que estreou ontem, Patti desabafa: “É tão embaraçoso. Tem imensa piada quando as pessoas perguntam: ‘ Como é que sente por ser um ícone rock?’ Quando dizem isso, eu penso sempre no Monte Rushmore.” Dizer que ela é a madrinha do punk é ter uma visão redutora de alguém que insiste em ser considerada em toda a sua inteireza - como mãe, como cidadã de voz activa, como poeta, como artista plástica. 

Patti recebe-nos na sua casa na West Village duas vezes: a primeira imediatamente antes das eleições americanas, a segunda imediatamente depois. Das duas vezes Nova Iorque está debaixo de um dilúvio.

A conversa tem lugar no primeiro andar, numa sala que tem todo o ar de ser o espaço da casa onde Patti passa mais tempo, o seu local de trabalho: uma mesa de ferramentas dominada por instrumentos de pintura, lápis e marcadores, a prancha junto a uma das janelas, com provas de polaróides, uma desarrumação criativa que dificulta o retrato de conjunto. Uma grande fotografia emoldurada do amigo William Burroughs preside a tudo isto, mas passado algum tempo, aquilo que a memória reteve são os objectos que reconhecemos do filme de Sebring ou da exposição de Patti Smith na Fondation Cartier, em Paris, no ano passado: a velha guitarra Gibson oferecida por Sam Shepard nos anos 70, a cristaleira com o retrato de Rimbaud, uma edição antiga do livro “Auguries of Innocence”, de William Blake, ou a condecoração recebida em 2005 do governo francês, a mais alta insígnia atribuída a artistas e escritores em reconhecimento do seu contributo para as artes.

A primeira conversa é interrompida pela chegada do galerista de Patti Smith, que vem buscar reproduções autografadas de polaróides. Uma delas é um retrato difuso da alemã Waltraud Meier, a sua cantora de ópera preferida, que fotografou em Munique nos bastidores de “Tristão e Isolda”. Patti sempre gostou de ópera, mas era uma fã dos românticos italianos. Até que um dia, conta, a amiga Susan Sontag lhe disse para esquecer Puccini e experimentar Wagner. “Esquecer Puccini! Só porque tinha êxitos? E o que é que fazíamos com Smokey Robinson?”, brinca Patti. “Mas é verdade que acabei por gostar muito de Wagner.”

A serenidade de Patti impõe uma atmosfera acolhedora. Nada nela é ensaiado e há nisso uma espécie de nobreza (sim, mas como explicar isso aos amigos que querem saber “como foi?”). “Em mais do que um sentido, Patti Smith é a visionária do rock'n'roll definitiva, não só pelo que fez, mas também por causa do que não fez”, escreveu Jefferson Hack na revista “Another Magazine”, e é bem visto.

A conversa começou pelo último concerto que ela deu em Lisboa, porque a data estava a pedi-las - falámos com ela a 28 de Outubro de 2008, precisamente um ano depois.

Parece ter sido um momento especial: houve um clique imediato entre a si e o público, como dois amantes que se reencontram ao fim de muitos anos. Uma espécie de reverência mútua. Lembra-se disso?

Claro. Era a segunda vez que estava em Lisboa - antes, só tinha feito um recital de poesia acústico [em 2001, no Pavilhão Carlos Lopes]. Todas as vezes que tínhamos tentado ir, tive de cancelar ou aconteceu alguma coisa. E eu estava determinada a ir por várias razões. Antes de mais, queria ver o país, tirar fotografias, absorver a atmosfera. Sempre tive um fascínio por Portugal. Tenho um projecto secreto, que é um livro de viagens imaginadas, que comecei nos anos 80, quando fiquei em casa, com duas crianças para criar e poucos recursos. Fiz um livro sobre um viajante que viaja mentalmente, e o último capítulo chamava-se “Lisbon Antigua”. Li tudo sobre Lisboa e sonhava acordada com ela. A minha vontade de ver a cidade e de fazer parte dela era tão forte que talvez tenha transferido isso para as pessoas. Não sei o que se passou exactamente mas senti-me imediatamente bem-vinda, não só no concerto mas na própria cidade. Lenny Kaye e eu andámos pelas ruas à noite. Subimos até S. Jorge... é a igreja de S. Jorge, não é?

Castelo de S. Jorge.

Isso. Fomos até lá. Fiquei extasiada com a árvore que está lá. Não sei se notou [levanta-se e afasta-se]. Volto já. Creio que uma das últimas imagens do meu livro foi tirada lá. [Regressa, trazendo o catálogo da exposição da Fondation Cartier]. É uma árvore na praça do castelo de S. Jorge, não sei se diz aí na legenda [do livro].

Sim: “Árvore em forma de Y, Castelo de S. Jorge” [em francês no livro].

Vi-a e foi a minha última fotografia. Eu estava a ser muito cautelosa em relação ao que seria a minha última fotografia. E foi essa.

No concerto em Lisboa, contou que o seu marido, Fred ‘Sonic’ Smith, costumava dizer: “Tricia, acho que és meia portuguesa!"

[risos] Sim. Ele dizia que um dia eu ia acordar e começar a falar como um pescador português, porque tinha tantos livros sobre Portugal - a nossa biblioteca era um pouco antiga, com álbuns de fotografia de Portugal dos anos 30, com imensos pescadores. Eu tentava imaginar o país e a cidade para o manuscrito em que estava a trabalhar. Claro que, como muita gente, adorava Pessoa. Tom Verlaine e eu costumávamos ler Pessoa o tempo todo, quando éramos novos. Pode ter sido o Tom que me deu a conhecer Pessoa - estávamos sempre a falar de livros bizarros.

Portanto, não acabou “Lisbon Antigua"?

Ainda não. É um projecto a que irei voltar em 2010.

Já tinha esse projecto quando esteve em Lisboa em 2001.

Comecei a escrevê-lo mas, entretanto, o meu marido adoeceu. Quando ele morreu, a minha vida mudou completamente e grande parte do trabalho que me ocupava antes disso continua à espera de ser retomado porque acabei por seguir outro caminho. Mas essa é a minha terceira prioridade. A primeira é terminar o livro que tenho em curso sobre Robert Mapplethorpe. E depois tenho de gravar um novo álbum. A seguir, vou voltar ao meu projecto das viagens imaginadas. E tentar terminar “Lisbon Antigua”.

De onde vem o seu fascínio por Portugal?

Tem a ver com uma peça musical que o meu pai estava sempre a ouvir quando eu era nova, chamada “Lisbon Antigua”. É um instrumental. [canta] La-da-da-da... Decidi chamar “Lisbon Antigua” ao último capítulo do meu livro em memória do meu pai. Portugal é um país romântico, mesmo que saibamos pouco sobre o país. O vinho do Porto é uma espécie de bebida mística. Tenho um fascínio por vinho do Porto muito antigo. É a minha única indulgência, porque praticamente não bebo álcool. Mas tenho umas quantas garrafas de Porto muito, muito velho.

Nasci no final dos anos 40, por isso os álbuns ilustrados que me vieram parar às mãos tinham sido publicados nos anos 20 e 30. Eles continham imagens de sítios antes das guerras. Eu via fotografias de sítios com camponeses tradicionais e pescadores, era romanticamente atraída para lugares através de imagens do passado. E, claro, também há a música, o fado [Patti pronuncia “fei-dô"], que também me atraiu quando eu era nova. Em termos de canto, o fado parece vir de um lugar genuíno e completamente inspirado. Não foi o Lorca que escreveu uma coisa sobre fado? Se calhar, estou errada.

Teve a oportunidade de ouvir fado ao vivo?

Sim. A primeira vez que estive em Lisboa, fui a um sítio que era suposto ser muito bom e eles chamaram alguns dos seus melhores cantores de fado. O sítio não estava cheio de gente, até estava meio vazio, mas essas pessoas, algumas delas de certa idade e conhecidas a nível local, vieram e cantaram. E a seguir cantei eu. Tentei escolher um par de canções que pudesse cantar “a capella” ou tocar numa guitarra. Eu estava com Oliver Ray, que era um dos meus guitarristas na altura [e companheiro de Smith até 2005], fizemos versões simples de “Pissing in a river”... acho que também fizemos “Because the night”. Foi óptimo porque conseguimos comunicar uns com os outros através do canto.

Continuo a pensar que as melhores entrevistas que lhe fizeram são as que Nick Tosches fez nos anos 70 para as revistas “Penthouse” e “Creem”.

Tem piada porque essas entrevistas são mais sobre o Nick do que sobre mim. Algumas foram inventadas.

Está a brincar.

Não. Houve uma entrevista em particular em que ele precisava de se encontrar comigo e eu tinha de partir em digressão, e disse-lhe: “Oh, inventa qualquer coisa, Nick.” E ele disse: “Ok.” Nós éramos uma espécie de irmandade, percebe? Não cheguei a ler as entrevistas mas sei que algumas das coisas eram verdade e outras foi o Nick que inventou. Às vezes podiam ser picantes, e quase sempre aquilo tinha mais a ver com o Nick do que comigo. Mas eu também era muito nova na altura, ao fim de algum tempo deixei de me preocupar em comunicar ideias à imprensa porque os jornalistas não eram tão inteligentes quanto eu esperava que fossem. Eu vinha de uma geração, de finais dos anos 60, de escritores extremamente sérios, verdadeiros académicos do rock, gente como Sandy Pearlman, Richard Meltzer, Jon Landau, Paul Williams, Lester Bangs e as pessoas da revista “Creem”. Os primeiros jornalistas de rock eram pessoas com grandes conhecimentos, musicólogos na maior parte das vezes, e escritores altamente criativos. Mas em meados dos anos 70, o rock ‘n’ roll era mais um produto para consumo do que uma revolução, e por vezes era preciso mexer com os jornalistas porque eles eram tão idiotas. Nem sequer eram idiotas, não devia dizer isso, mas eram unidimensionais.

Não se faça rogada por minha causa.

Eu não a vejo como uma jornalista. Penso sempre que as pessoas são escritores, até provarem o contrário. Quando aceito falar com as pessoas não parto do princípio que são idiotas. Às vezes, vêm-me entrevistar e a primeira coisa que perguntam quando menciono “Horses” é se gosto de andar a cavalo. Eu respondo: “Sim, mas estava a referir-me ao disco”. E dizem: “Oh, existe um disco chamado ‘Horses'?” Nesses momentos dou-me conta de que não posso explicar a minha vida inteira a essas pessoas. Quer dizer, parto do princípio que as pessoas sabem qualquer coisa sobre o assunto em que estão a trabalhar e que se interessam por ele.

Mas essas entrevistas do Nick Tosches foram uma brincadeira. Quer dizer, tradicionalmente, a “Penthouse” é uma revista masculina, e a outra...

A “Creem”.

Pois. Não sei se li essa. Sei que há uma em concreto com a qual não tive nada a ver. Já não sei que publicação era, mas lembro-me de vê-la mais tarde e pensar: “Eiii, não devia ter dito ao Nick que ele podia escrever o que quisesse!” [risos]

Bem, a entrevista na “Creem” também é uma crónica sobre Nova Iorque. Vocês andam de bar em bar...

Essa foi a inventada. Mas a verdade é que nos conhecíamos muito bem, portanto tenho a certeza de que existe alguma verdade ali. Mas se bebesse tanto quanto o Nick Tosches diz ali que eu bebo, provavelmente teria uma séria crise de fígado ou algo do género. Nick Tosches é um escritor brilhante, e é meu amigo... Não é por acaso que você gosta dessas entrevistas: não só por causa da sua bravata, ou porque são divertidas, mas porque Nick é um grande, grande escritor. Sempre foi.

Tive a oportunidade de falar com ele o ano passado, e ele lamentou que Nova Iorque se estava a perder para os grandes empreendimentos imobiliários.

Oh, absolutamente. É uma arte em extinção, a cidade de Nova Iorque. Nos anos 60, quando vim para cá, Nova Iorque era um abrigo para pessoas alternativas, para artistas, actrizes, poetas, músicos, cientistas - qualquer pessoa que estivesse a lutar pela vida, que tivesse ideias interessantes, ou convicções diferentes, ou pessoas que por causa da sua orientação sexual se vissem forçadas a sair de casa ou do seu bairro. Este era o lugar onde qualquer inadaptado se podia adaptar. Graças à estrutura económica nos anos 60 e 70, era possível chegar a Nova Iorque, arranjar um apartamento na East Village por 120 dólares, ou por 70 dólares num bairro de má fama, arranjar um trabalho numa livraria ou servir às mesas, e sobreviver.

A comunidade artística tinha alguma consistência porque nos anos 60 e 70 havia centenas de pessoas realmente interessantes a todos os níveis que estavam a fazer coisas interessantes, que estavam a desafiar as normas de forma criativa. Tínhamos dinheiro suficiente para viver aqui. Havia todo o tipo de sítios baratos para ensaiar, era possível arranjar um “loft”, que era uma porcaria e era frio mas era nosso, era possível ter um pequeno apartamento, criar uma comunidade. Já não é possível fazer isso. Da minha banda e da minha equipa, sou a única que ainda vive na cidade. E a única razão porque ainda aqui estou é porque tenho ajuda de uma pessoa amiga para isso. Depois do meu marido morrer, consegui alguma ajuda para pedir um empréstimo e comprar a minha casa, quando os valores do mercado imobiliário eram baixos. Perdi o meu atelier porque ele passou de 900 dólares por mês para 5000 dólares por mês! E era um buraco, um cubículo. Era uma pequena lavandaria que eu converti num atelier. Era do outro lado da rua, onde você estava sentada. A mesa onde estava sentada era o meu atelier, porque um quarto daquele café costumava ser o meu atelier. O café quis ficar com ele, e os proprietários queriam mais dinheiro, por isso puseram-me na rua. Bastou torná-lo tão...

Caro.

Só uma pessoa cabia lá dentro, era minúsculo. Mas eu trabalhava imenso quando lá estava, e era feliz. Mas eu sou só um pequeno exemplo. Os cafés que costumávamos frequentar fecharam todos, e no seu lugar puseram uma “tratoria” italiana fina. Os lugares onde costumávamos ensaiar desapareceram. Já não há sítios para ensaiar porque foram todos sistematicamente comprados por um empreiteiro e neste momento ou estão vazios ou foram transformados numa galeria ou num condomínio chique. E a minha banda, cada um deles teve sistematicamente de ir embora porque as rendas dispararam. Não podem fazer-me isso porque eu tenho uma hipoteca. Todos os membros da minha banda vivem agora na Pensilvânia, em New Jersey... Não posso simplesmente ligar e dizer: “Ei, tenho uma ideia para uma canção, encontramo-nos na Rua 23.” São precisos dois dias para juntar toda a gente. Já não temos a margem de manobra que costumávamos ter. Ninguém tem. Quer dizer, pode ser que haja jovens a viver num grande apartamento, dez miúdos a partilhar o mesmo espaço e que se calhar tocam os seus instrumentos. Estou certa de que as pessoas encontram sempre alguma forma engenhosa... Mas já não é possível ter uma vidinha decente na cidade, isso acabou.

Mas ainda aqui está. Ainda é o lugar onde quer estar, não?

Não sinto a mesma coisa. Quer dizer, adoro Nova Iorque, mas é qualquer coisa que acabou. No outro dia estava a andar pela Bowery e não me conseguia lembrar onde era o CBGB's. E toquei lá centenas de vezes. Pus-me a olhar e os edifícios são diferentes, há arranha-céus e condomínios e uma loja de roupa de homem cara onde antes era o CBGB's. Não há muito tempo aquilo era uma zona decadente, cheia de vagabundos, bêbados, e nós, e o William Burroughs, trôpego, a calcorrear a rua. Não é um exagero, era mesmo assim, e isso desapareceu. E não foi pouco - desapareceu completamente. Hoje vou às ruas 26 e 10, onde eram os nossos lugares de ensaio, e não há para onde ir, eles já não existem. De quantas mais galerias finórias é que precisamos na nossa cidade? Quantos mais condomínios caríssimos? Isso está a ter um impacto cultural na nossa cidade.

Deixei a cidade em 79 e quando voltei em 95 ela estava totalmente diferente, mas ainda era reconhecível. Desde o início do século, mudou drasticamente. Nova Iorque é Nova Iorque, adoro Nova Iorque, é uma cidade incrível, é uma das grandes cidades do mundo. Mas está a ser redesenhada e redefinida pela administração Bloomberg e pelos tempos modernos.

Quando eu era nova, não existiam cartões de crédito, por isso não havia centenas de jovens em restaurantes chiques, que nem sequer têm emprego, a comer refeições caras. Nunca fizemos isso. Isso acontece porque têm cartões de crédito e depois conseguem cobrir as dívidas ou não. Acho que é também por isso que a nossa economia desmoronou. Porque era completamente assente em papel, é uma espécie de economia de fantasia, baseada no crédito, em cartões de crédito, na especulação.

Eu gosto de fazer compras com dinheiro. Pagamos em dinheiro e as pessoas olham para nós, como se fosse um insulto. Do género: “O que é que se passa consigo? Não tem um cartão de crédito?” E normalmente não têm troco - uma pessoa entra e compra uma bela camisola por algumas centenas de dólares e tem de receber 43 dólares de troco... Antes de mais, eles têm de usar uma calculadora para perceber quanto é que têm de dar de troco, e depois têm de converter esse valor em dinheiro, e é qualquer coisa como “O quê? Dinheiro?!”

Não tenho telemóvel, nem quero ter, custa-me ver que o mundo está todo ao telemóvel. Não faço realmente parte do mundo moderno, além de existir e de ter um computador. Mas não gosto de ser um escravo. Acho que a tecnologia nos deve servir, não gosto de ser escrava dela, e quando olho à volta tudo o que vejo são escravos do telemóvel por todo o lado.

Mas Nova Iorque, como dizíamos, ainda é uma grande cidade. Tenho vivido nesta rua, com interrupções, desde os meus 23 anos.

Uma das coisas mais marcantes em “Dream of Life” é o facto de parecer tantas coisas diferentes ao longo do documentário - uma pioneira do Oeste, uma índia, uma mulher, um homem, nova e velha. Há aquele verso maravilhoso do Walt Whitman: “I am huge, I contain multitudes.” Tem a sensação de ter tido várias existências?

Bem, todos temos várias existências. É exactamente como disse. Isso descreve o filme na perfeição, mas também me descreve a mim - eu sou todas essas coisas. Às vezes ainda me sinto como quando tinha 10 anos, e levava o meu cão a passear, ou comandava as minhas irmãs numa batalha imaginária, mas por vezes também sinto o peso dos anos. Ou então estou a tocar guitarra eléctrica e a sentir a reverberação e sinto-me como se tivesse 23. Ou seja, sinto estas coisas todas. Nunca me passaria pela cabeça tentar reproduzir aquilo que fui num dado momento. Não posso dizer: “Vou parecer e agir como se tivesse 23.” Mas, por vezes, ao fazer determinadas coisas, ainda consigo saborear certas sensações ou atingir uma certa energia porque isso existe dentro de mim. Julgo que todos temos essa possibilidade, mesmo que nem todos queiramos fazer uso dela. Enquanto artista e mãe, é providencial poder aceder aos meus diferentes períodos. Quando falo com a minha filha, às vezes estou prestes a dizer qualquer coisa e penso em mim quando tinha a idade dela, e consigo ver a coisa do outro lado.

Ela tem sorte.

Bem, ela é mais esperta do que eu era com a idade dela, portanto propicia isso. E às vezes torna-se bastante óbvio que devo fazer uso dessa faculdade. Enquanto artista, devemos ser capazes de comunicar com pessoas de todas as gerações e de todo o tipo. Se eu estiver a dar um concerto, seja para mil ou para 10 mil pessoas, vão lá estar pessoas de idades diferentes, com diferentes Q.I., com diferentes orientações, diferentes vivências, diferentes expectativas, e temos de encontrar alguma coisa em nós que possa comunicar com todas estas pessoas, o maior número possível. Temos de descobrir o nosso estado mais genuíno e dar-lhes isso. E ao descobrir isso descobre-se que... contemos multidões, ou múltiplos...

Não há nada no filme que tenha sido forçado. Não fizemos nada para parecer mais isto ou para mostrar um aspecto em particular. Eu estava a pintar e o Steven [Sebring, realizador] veio visitar-me. Saímos e fomos ver o meu pai e a minha mãe. A única coisa que estabelecemos foi excluir determinadas coisas. A Jesse [filha de Patti] aceitou aparecer no filme quando fosse mais crescida, porque quis deixar de ser filmada aos oito anos. Estivemos a pensar no que fazer, como é que ela poderia reaparecer agora, e lembrámo-nos: “Vamos dar uma volta.” Ela gosta de Central Park, e do John Lennon, por isso fomos ao parque, e visitámos Strawberry Fields.

Em meados da década de 90, quando emergiu da sua longa retirada da música para criar uma família, os tempos tinham mudado. Até que ponto sentiu que as coisas eram diferentes do que tinham sido nos anos 70?

Eram diferentes de tantas maneiras. Primeiro que tudo, eu era diferente.

Foi duro?

Foi duro porque tinha acabado de perder o meu marido e irmão e tinha dois filhos para criar, e tinha de mudar de casa, ganhar a vida, ao mesmo tempo que estava a lidar com o luto. A única coisa que sabia fazer para ganhar a vida era actuar. Podia escrever poesia mas isso não me ia ajudar a ganhar dinheiro para criar os meus filhos.

Portanto, a música não foi uma forma de se religar com o mundo depois da perda?

Não. Era um emprego. Mas não era uma coisa cínica. Antes de mais, o Fred e eu tínhamos começado a preparar um novo álbum quando ele ficou doente. Não o chegámos a fazer porque entretanto ele morreu. Mas alguma da música ficou, por isso decidi avançar e fazer um disco em sua memória. Foi o meu primeiro pensamento: eu ia acabar o nosso trabalho. Isso foi “Gone Again” [álbum de 1996]. Por outro lado, precisava de dinheiro, porque não tínhamos nenhum. Precisava de dinheiro para vir para Nova Iorque com os meus filhos. Podia ganhar alguma coisa com um álbum, nada de extraordinário, apenas o suficiente para começar. Mas não fazia ideia do que iria fazer a seguir. O Bob Dylan pediu-me para ir com ele em digressão. Acho que o Allen Ginsberg lhe deve dito alguma coisa, para me ajudar. O meu marido e eu adorávamos Bob Dylan, [a digressão] era na costa leste, portanto era perto, podia levar os meus filhos, era só Filadélfia, Connecticut e Nova Iorque.

Foi assim que comecei a restabelecer a ligação com as pessoas. Tive umas conversas simpáticas com o Bob Dylan sobre isso. Ele sentia que eu devia realmente voltar a actuar. E o Allen Ginsberg também. Tinha estas duas pessoas que admirava imenso e de quem gostava a aconselharem-me a fazê-lo. E a forma como as pessoas me receberam, apesar de só estar fazer a primeira parte dos concertos do Bob, foi tão calorosa que ajudou a restaurar a minha confiança, que tinha ficado um pouco debilitada - não por causa de alguém mas pelas circunstâncias da vida.

Gradualmente, fui voltando aos palcos. O Bob pediu-nos para ir com ele à Austrália, em digressão, e subitamente eu estava de novo a trabalhar. Mas só nos períodos escolares do Jack e da Jesse. No Verão e na época de Natal eu não viajava, só ia em digressão quando eles estavam na escola. Foi bom porque consegui ganhar dinheiro suficiente para ficar em casa a maior parte do tempo, e depois, quando a Jesse tivesse idade para isso, poderia levá-la comigo. A estrada não é um lugar recomendável para crianças mas o nosso estilo de vida é bastante compatível. Não havia nada que a pudesse assustar, somos boas pessoas...

O meu regresso não foi triunfal nem rejubilante. Nem sequer teria regressado se não tivesse tido uma perda tão grande. Preferia nunca ter voltado e que o meu marido ainda estivesse vivo. Mas isso foi o que a vida me trouxe, perda, por isso preveni toda a gente à minha volta: isto não é um motivo de grande celebração, não se trata de voltar a reunir a banda, não estou a recomeçar o Patti Smith Group, não estou a retomar a partir do ponto em que tinha ficado. Estou a reaprender, a reconstruir. Foi o que fiz.

Mas não se limitou a cuidar da sua família nesses anos em que esteve afastada da música. Também esteve a criar, a escrever, não?

A escrever, principalmente. Fred e eu escrevemos imensas canções em conjunto. Tocávamos juntos. E havia outras coisas que nos ocupavam. Estudei arte, literatura japonesa, até procurei saber mais sobre desporto porque o meu marido adorava desporto. Aprendi tudo sobre golfe, o Sevi Ballesteros, o Tom Watson... Tive de seguir o British Open. Tinha de me manter a par dos interesses dele. Por isso tentei aprender mais sobre aquilo que lhe interessava - sobre aviação, sobre o mar. Adoro estudar, posso ser muito feliz só a estudar. Quando deixei de actuar durante 16 anos não me pus a lamentar o facto de não dar concertos. Sentia saudades dos meus amigos e companheiros de banda, mas tinha imenso tempo para ler e estudar. Para mim a coisa mais excitante é trabalhar, e descobrir lugares onde nunca estive. Trabalhar e viajar. Não sou uma pessoa que necessite de adulação, não é como se eu precisasse de um banho de multidão. Gosto das experiências que a música proporciona porque canalizamos diferentes energias, elevamos a noite, mas o que me faz correr é o trabalho. Somos uma banda à moda antiga - improvisamos bastante, cometemos erros, mudamos as coisas a meio, deixamo-nos levar pelo público, tentamos fazer o que as pessoas querem, ou o que julgamos que elas precisam. Cada noite é uma coisa nova, não somos uma máquina. Não estou a criticar a máquina, que às vezes pode ser fantástica - vemos bandas que têm tudo, luzes e vídeos, e efeitos sonoros... é como o teatro, e é empolgante. Mas não é isso que fazemos. Exigimos bastante das pessoas porque a noite depende realmente de todos nós. E isso é o que nos torna mais imperfeitos, mas também mais especiais.

É sempre surpreendente a modéstia que demonstra em relação aos seus conhecimentos e talentos musicais. Ainda recentemente, num breve questionário do “New York Times”, dizia que é uma amadora musical.

E sou mesmo. Nunca estudei música. Não sei ler pautas, só consigo tocar uns seis acordes na guitarra, sou autodidacta em tudo. Cheguei a ouvir gravações de concertos em que cantei a noite inteira fora de tom e fiquei tão perturbada que queria desistir... Mas depois disseram-me que como não treinei a voz, canto aquilo que oiço. Portanto, se o que eu estou a ouvir estiver meio tom abaixo, eu canto meio tom abaixo.

Acho que a minha forma de cantar melhorou com os anos. O meu marido teve bastante a ver com isso, ensinou-me diferentes respirações. Com a idade a minha voz também ficou mais grave, estou certa de que se nota que já passei por algumas coisas na vida. Não fumo, e isso é muito importante para uma cantora. Tenho 61 anos, mas já ouvi pessoas nos seus quarentas cuja voz estava mais quebrada do que a minha por causa do excesso de álcool ou de cigarros ou drogas.

A menos que se chame Tom Waits.

Bem, ele sempre soou como um tipo mais velho.

Portanto, não pensa em si como música?

Não. Nesta altura do campeonato, posso dizer que aprendi imenso sobre canto. Diria, sem hesitar, que sou uma “performer”, acho que tenho uma forte presença em palco. E consigo improvisar e comunicar com os músicos. Mas comunico por ouvido. Se alguém me dissesse “podes fazer isto em dó sustenido?”, eu não saberia do que estavam a falar.

Dá sempre a ideia de que a música foi uma coisa que lhe aconteceu por acaso, um acidente.

E foi. Foi uma coisa orgânica. O meu objectivo era tornar a leitura de poesia mais interessante. A única coisa que eu estava a tentar fazer no início era elevar o nível da “performance” de poesia. Não tem nada a ver com “performance” de arte, que procura ser polémica ou fazer qualquer coisa chocante. Era só uma questão de tornar a noite mais interessante. Foi uma coisa gradual: comecei por introduzir som, pedindo ao Lenny Kaye que reproduzisse uma colisão automóvel no final de um poema com o “feedback” de uma guitarra eléctrica. Depois tive vontade de cantar alguns poemas. A seguir, decidi fazer algumas canções pelo meio, para introduzir uma pausa, porque às vezes estar a ouvir uma pessoa pode ser maçador. Depois comecei a improvisar com uns quantos acordes. O meu pianista Richard Sohl, que já morreu, era o melhor quando se tratava de criar um campo hipnótico com dois ou três acordes. E eu improvisava poesia e essas improvisações deram origem a “Horses” e a “Land of a Thousand Dances”. As aventuras de Johnny [personagem de “Horses"] começaram no início de 1973, era apenas um poema longo que às tantas eu fundi com a canção “Land of a Thousand Dances”. Porque Johnny tem a sensação de que está rodeado de cavalos e um dia pensei: “Uau, podíamos juntar isso com o ‘Land of a Thousand Dances’ do Chris Kenner: ‘Horses, horses, do you know how to poney...” Perguntei ao Lenny: “Consegues fazer isso?” e ele disse que sim.

Eu não era música, portanto não sabia quão fácil seria, em três acordes, passar para “Land of a Thousand Dances”. Ou passar do poema “Oath”, que começava com “Jesus died for somebody's sins but not mine”, a “Gloria”. Essa frase vinha de um poema que eu escrevera em 1970 e que me fartei de dizer ao ponto de perder o interesse por ele. Até introduzir-lhe algum ritmo e fazer outra coisa com ele. A repetição aborrece-me. Nem sequer é aborrecer, não sou pessoa de me aborrecer, mas fico inquieta com a repetição. As coisas simplesmente evoluíram, numa altura em que provavelmente tinha de haver uma evolução. 

É surpreendente como se tem mantido intacta, fiel à sua visão pessoal. Há uma linha directa entre o seu trabalho e a sua “persona” iniciais e o que está a fazer agora.

Essa é uma ideia simpática. Em parte, a explicação é simples. Não tenho vícios. Não tive de me debater com drogas, álcool... Não filtrei o que sou através de uma substância. Em alguns aspectos, não sou assim tão diferente de quando tinha 11 anos. Excepto nas coisas óbvias: sou mãe, tenho 61 anos, espero ser mais atenciosa para com os outros, isto é, menos fechada no meu próprio mundo, menos absorvida comigo mesma. Ainda tenho projectos que comecei aos 20 anos, quando eles estavam para além da minha capacidade ou compreensão. Isso é outra coisa: quando era nova, não era prolífica nem talentosa. Bob Dylan, por exemplo, era muito talentoso e prolífico quando era novo, tal como Arthur Rimbaud. Muitos artistas atingem o seu auge cedo graças ao seu dom, ao seu talento. Eu, por outro lado, sou muito determinada. Não digo isto para ser modesta, sou apenas alguém que desabrochou tarde, que não nasceu com talentos excepcionais. Não desenhava bem, não cantava especialmente bem, nem era particularmente talentosa em qualquer meio. Mas sempre tive uma imaginação forte, imensa energia, vontade e visão. Foi preciso muito, muito tempo para conseguir realizar algumas das coisas que sonhei ou projectei. Ainda estou a trabalhar nelas. E isso põe-me em contacto com o que eu era na juventude.

A única coisa para a qual não precisava de preparação era actuar em público. Sou uma “performer” natural. Quando era nova, pensei em aproveitar esse dom para ser professora. Ensinar não seria um problema, pensava: bastava ir para a frente das pessoas e falar de coisas que eu sabia e que elas tinham de aprender. Houve quem tentasse talhar-me para ser actriz mas sou demasiado indisciplinada para isso. Até que, como lia poesia e juntava-lhe música, e como tinha uma postura agressiva no mundo do rock'n’ roll, acabei a fazer discos e a dar concertos. Mas nunca esteve no topo da minha lista de prioridades. Foi só: “oh, faço isto, não é difícil”. Se alguém me ligasse agora e dissesse “Pode vir até Madison Square Garden fazer um discurso?”, eu respondia “Oh, ok”, apanhava o metro, ia lá dar um discurso e vinha-me embora. Não ficaria intimidada nem sentiria medo, e podia fazê-lo num instante. Mas um poema pode levar-me três anos. Depende do que estamos a falar. Sei que é uma forma digressiva de tentar explicar aquilo que me perguntou... Também tem a ver com o amor da família. Parte do que sou tem a ver com as minhas irmãs, com a forma como elas me viam. O meu irmão faleceu mas ainda sei o que ele pensava. A minha auto-imagem vem de me sentir feliz com o trabalho que faço mas também se alimenta dos meus companheiros de trabalho - tenho trabalhado com o Andi [Ostrowe] desde 1976, e com o Lenny Kaye desde 1971. Estas pessoas acreditam em mim e fazem-me sentir como se eu fosse o centro daquilo que fazemos. Quando era pequena, era a mais velha de quatro crianças e as minhas irmãs e irmão faziam-me sentir como a líder do nosso pequeno exército infantil. Continuo em contacto com esses mesmos impulsos.

Até os seus heróis continuam a ser os mesmos que eram na juventude.

Sim. Eles são como amigos. Qual é a diferença? Uma das minhas melhores amigas, quando eu tinha oito ou nove anos, morreu. Ainda penso nela, ainda me lembro dela, ela ainda aí está, faz parte do meu panteão de pessoas. Nunca conheci William Blake mas ele está presente, tal como Rimbaud. Quando era nova, adorava Bob Dylan e imaginava-me com ele; depois conheci-o e convivi com ele durante algum tempo. Agora, já há uns tempos que não falamos mas ele ainda está presente. As minhas pessoas - e eu reflicto-as tanto quanto elas me reflectem a mim - nós somos um bando fiel. Prezamos a família, somos fiéis uns com os outros... Se Robert Mapplethorpe ainda fosse vivo - conheci-o em 1967 - estaríamos ao telefone cinco vezes por dia.

Acho que o que nos mantém todos próximos uns dos outros é o trabalho. O meu irmão, além de ser meu irmão, também era o chefe da minha equipa [de digressão] nos anos 70. A minha irmã Linda ajuda-me com os manuscritos, ajudamo-nos uma à outra e damos força uma à outra.

Gosto de ser o que sou. Quando era mais nova, às vezes podia ser um pouco filha da mãe. Estou contente por ter evoluído, não sou exactamente a mesma pessoa que era quando tinha 24 anos.

Quando actuo num palco quero que as pessoas me vejam como um ser humano. Não vou para o palco como se fosse, peço desculpa, um ícone rock ou uma estrela rock; vou para o palco como alguém que tem um papel a cumprir. O meu território da noite é o palco e o meu dever é tentar proporcionar uma atmosfera em que todos possamos comunicar. E as pessoas têm as suas obrigações, têm a obrigação de comunicar e enviar energia; eu recebo essa energia e mando-a de volta para elas.

Sente por vezes que tem sido mal interpretada por ser o que é?

Não é que me sinta mal interpretada. Mas as pessoas têm uma perspectiva estreita. Se alguém pensa, basicamente, que eu sou a madrinha do punk, isso é simpático, não me importo de ser a madrinha do punk. Mas também escrevo, também faço fotografia, também desenho, também procuro ser boa cidadã, sou mãe... Portanto, se alguém me vê de uma só maneira, como a pessoa que escreveu “Horses”, isso é tudo o que vão ter. Não é tanto ser mal interpretada, é mais sentir que não sou inteiramente examinada. Olhe para o William Blake: se apenas lesse os poemas de Blake, teria uma boa experiência, mas perderia os seus desenhos, o seu activismo, a sua voz, as suas visões, a sua filosofia.

Gostava que as pessoas tivessem mais conhecimento daquilo que faço. Às vezes activistas radicais, ou um movimento feminista, sentem que eu não me empenhei activamente nos seus movimentos. Mas não gosto de movimentos. Acho que os movimentos são muito importantes porque promovem mudança, mas um movimento para mim é como um psiquiatra: são melhores quando já não são precisos. Nunca me interessou ser meramente uma artista feminina, uma vocalista feminista, um estandarte do movimento das mulheres. Tudo isso está muito bem, mas o que eu sempre quis ser foi artista, ponto. E um estandarte da condição humana. Algumas pessoas chegam a perguntar-me: “Não quer o melhor para a sua filha?” E eu digo: “Sim, e também quero o melhor para o meu filho.” Tenho um filho e uma filha. Por que direitos devo lutar? Direitos humanos. Ao bater-me pelos direitos humanos, estou a defendê-los a ambos. É por isso que quando as pessoas nos querem catalogar, querem que sejamos uma “punk rocker”... Tenho elementos de uma “punk rocker” porque isso faz parte de mim, mas já não estamos no CBGB's em 1974. Não posso satisfazer a ideia dessas pessoas do que deve ser uma “punk rocker”. Isso cabe às novas gerações. As novas gerações hão-de redefinir o que é o punk rock.

Todas essas coisas que faz - a música, a pintura, a escrita, a fotografia - servem objectivos diferentes?

Faz tudo parte do mesmo universo. A única coisa que para mim serve um objectivo é escrever uma canção especificamente, como “People have the power”. O meu marido e eu escrevemos “People have the power” com um objectivo concreto, que era lembrar as pessoas de que elas têm de facto o poder, têm voz, que o individual é importante mas o poder colectivo do povo pode fazer mudanças tremendas. Veja esta eleição: as pessoas têm o poder, as pessoas fizeram isso. Não o podíamos ter feito só porque alguns movimentos ou algumas pessoas queriam a mudança. É como Obama disse: “Foram vocês que fizeram isto”. A eleição não foi sobre Obama; a eleição foi das pessoas que votaram em números recorde no primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos.

Não sei por que tenho trabalhado a vida inteira, é um chamamento, é uma coisa que simplesmente tenho de fazer. Estou condenada a criar, condenada a escrever um poema, condenada a tirar uma fotografia. Como esta manhã: sentia-me bastante cansada e tudo o que me apetecia era uma chávena de café e sonhar acordada. Mas as folhas estavam a cair e a luz era linda, por isso disse a mim mesma: “Tenho de ir buscar a máquina fotográfica”. E não tinha vontade de pegar na máquina e interromper o meu belo e tranquilo café. Não há nenhum objectivo nisso. Quer dizer, não sei qual é o objectivo da arte. Ela tem uma certa finalidade, mas para o artista é processo, é como respirar. Respirar tem um objectivo? Sim, é o que nos mantém vivos.

É a mesma razão por que a Madre Teresa foi para a Índia cuidar dos desafortunados e dos moribundos. Ela tinha de o fazer. Estou certa de que, às vezes, quando estava cansada ou as coisas eram avassaladoras ou quando simplesmente teria preferido rezar e unir-se a Jesus, ela pode ter pensado: “Não estou a fazer o que tinha pensado que ia fazer”. Mas ela tinha de o fazer. Era o seu chamamento.

Por que é que deixou alguém que mal a conhecia e que não tinha qualquer experiência prévia em cinema, filmar um documentário sobre si? Por ele não ter ideias pré-concebidas?

Conheci o Steven [Sebring] logo depois de o meu irmão morrer, e ele tinha as virtudes de um bom irmão. Gentil, respeitoso, carinhoso para com os meus filhos, nenhuma tensão sexual, nenhuma presunção, nenhum sinal de querer forçar as coisas, era um puro. Ele é um cowboy. Veio para Nova Iorque, queria fazer fotografia, é um fotógrafo talentoso, e foi parar ao mundo da moda, não sei assim tanto sobre a sua história exacta... É uma pessoa de quem é fácil gostar, e faz um bom trabalho. Ele não sabia nada sobre mim, gostava de Slayer e bandas do género. Apenas sabia que tinha de ser sensível por causa da minha vida e dos meus filhos. Esteve na minha casa, e foi discreto, fez o seu trabalho. Pouco depois, tive de dar o meu primeiro concerto em Nova Iorque, no Irving Plaza, já não actuava há 16 anos ou parecido, e estava bastante nervosa. Ele apareceu e quando me viu actuar não conseguiu relacionar isso com a pessoa que tinha conhecido antes. Porque eu estava a falar com ele e às tantas disse: “Agora tenho de ir trabalhar”. E ia para o palco, fazia o meu concerto, e voltava. Isso fascinou-o porque ele tinha imaginado que os músicos rock se vestiam, tornavam-se outra pessoa antes de entrar em palco. Mas ele também viu o meu outro lado, mais agressivo. E ouviu-me cantar pela primeira vez. Acho que isso o fascinou.

Quando me perguntou se me podia filmar, a minha reacção normal deveria ser “não”. Mas disse-me que se eu não quisesse que se fizesse nada com o filme, ele limitar-se-ia a dar-mo, o filme inteiro. Não o usaria, não tentaria comercializá-lo. Disse-me: “Pelo menos, terá filmes caseiros dos seus filhos e outras coisas.” E eu disse: “Está bem.”

Ele andava com uma câmara de 16mm bastante pesada, mas não tinha equipa nem luzes. Já fiz sessões de fotografia em que eles têm 20 pessoas: o serviço de “catering”, isto e aquilo, os computadores, os assistentes... Ele não tinha nada. De vez em quando tinha um amigo a ajudá-lo ou a mulher - que era namorada na altura - a fazer o som, ou um amigo meu a fazer o som, era uma pequena operação. Era como ter o nosso irmão connosco. E se eu não estivesse para aí virada, bastava dizer: “Hoje não quero ser filmada.” Ou se os miúdos dissessem “não me filmes”, ele dizia “oh, desculpa”, não tentava filmá-los à má fila. Confiei nele e ele mereceu essa confiança. Ele fez tudo, pagou tudo do seu próprio bolso. Algumas pessoas perguntam: “Porque é que são tantos tipos diferentes de filme, porque é que passa de cores a preto e branco?” Bem, isso tinha a ver com o que ele podia pagar na altura, com o tipo de película que conseguia.

Como é ter este documento da sua vida?

Bem, agrada-me que ele exista. Não é o meu filme, é do Steven, já faço coisas que cheguem. Pessoalmente, sabe muito bem ver os meus pais. O pequeno segmento com os meus pais é muito popular, acho que é a parte mais famosa do filme e eles teriam adorado isso, mas morreram pouco tempo depois de terem sido filmados. Nesse pequeno pedaço de filme, vemos exactamente o que eles eram. Adoro isso. O meu pai era muito filosófico, adorava a natureza, era pensativo; a minha mãe estava sempre a cozinhas, adorava rock'n'roll, era muito enérgica.

Em 1993, escreveu na revista “Details": “Já não preciso de anjos - eles foram todos interiorizados.” É quase uma premonição de com lidou depois com a perda.

Acho que o que queria dizer era que me sinto mais confiante, sei quem sou. Mas ainda gosto de ter heróis. Tive uma fase Bulgakov recentemente: li todos os seus livros, fui a Moscovo, visitei o seu túmulo. Li “Margarida e o Mestre”, a sua obra-prima, umas quatro vezes. Era só Bulgakov, o tempo todo. Gosto de me sentir inspirada por outros, normalmente isso desencadeia outras coisas.

E tem noção de que inspira outras pessoas?

Levou-me muito tempo a aceitar isso de forma graciosa, porque eu ficava embaraçada ou então não acreditava. Mas agora, quando as pessoas dizem isso, digo só “óptimo”. Porque sei como é. E se fiz alguma coisa que as faça sentir só metade do que o trabalho de outras pessoas me faz sentir, é fantástico, é por isso que trabalhamos. Se alguém retirar de “Horses” qualquer coisa como o que eu retirei de “Uma Temporada no Inferno” ou “A Child's Garden of Verses” [de Stevenson] ou “Mulherzinhas”, óptimo.

Há aquela frase de guerrilha que diz no início de “Babelogue": “I haven't fucked much with the past, but I've fucked plenty with the future”. O futuro tem-na tratado bem?

O futuro? Sim, absolutamente. Tenho imenso trabalho pela frente: um álbum, exposições, gostava de escrever uma ópera, um milhão de ideias. O futuro para mim é trabalho novo. E viajar. A vida é fantástica. É difícil e temos de negociar todo o tipo de coisas: assuntos de saúde, a perda de pessoas que amamos, aflições financeiras, fome física, solidão. Mas estar vivo é maravilhoso. É infinitamente interessante

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