Paolo Sorrentino? A cada um o seu cinema
Um filme que chega a Cannes com formato para se ver consagrado, Youth, com Michael Caine, Jane Fonda e Keitel. E também o novo filme do chinês Jia Zhang-ke, Mountains May Depart, que bate Sorrentino em delicadeza mas não chega à obra-prima que era Plataforma.
O facto de não existir Toni Servillo e, no lugar dele, estar Michael Caine, faz uma certa diferença: é um suplemento de humanidade sem adereços, é um lugar para procurar em Youth (competição) outra coisa que não a insustentável ligeireza do festim publicitário em que o realizador italiano transforma a vida e a morte...o corpo humano ou a música clássica ou este cast, Jane Fonda, Rachel Weisz, Harvey Keitel, que, como tudo no filme, serve de adereço para teatro grandguignolesco. Já ele, Caine, afirma a juventude sem epifanias sinfónicas. Corpo flácido, rugas, fragilidade, senhor Caine? “É isto o que vos espera, não se armem em espertos”.
Michael Caine tem 82 anos, não vinha a Cannes há 50, desde Alfie (como não lhe deram prémio de interpretação nessa altura, brincou, decidiu não regressar; agora os netos são mais importantes). Muito poucos poderão contar que ouviram a rainha de Inglaterra contar anedotas ou contar aquilo que quase respondeu a Isabel II: quando ela lhe observou que ele tinha o ar de alguém que já fazia o que fazia há demasiado tempo, ele calou um “você também”... mas disse-o agora.
No filme de Sorrentino, a personagem de Caine, um músico e maestro que se retirou porque as suas composições não podem mais ser interpretadas pela mulher, acaba no final por dar música à rainha numa gala. Um monge budista acaba também por levitar no hotel dos Alpes suíços onde as personagens, entre as quais um cineasta (Keitel) impotente, Maradona e uma Miss Universo, não dão descanso às suas confusões. Afinal é tão fácil: depois das rugas, dos sonhos com inatingíveis seios esculturais, dos quatro pingos de urina que a próstata permite, a juventude afinal está ali ao dobrar da esquina. E ouve-se com música clássica.
Ao dobrar da esquina, estará a Palma de Ouro? O filme tem todo o design de quem pensa em consagrações. O homem já teve um Óscar em 2014 (A Grande Beleza), por isso conseguiu fazer estes actores chocarem uns com os outros como Robert Altman em tempos. O que significa que alguém aqui em baixo acredita nele. A cada um o seu cinema, e o de Sorrentino não abandona a gordura publicitária... Sim, há quem ache também que se encontrou a Palma com o novo filme do chinês Jia Zhang-ke, Mountains May Depart, que bate Sorrentino em delicadeza, em subtileza e em gosto. Mas... é um grande Jia Zhang-ke?
Não é. Coloca o espectador dos filmes do cineasta chinês em momento de disponibilidade afectuosa porque, entre outras coisas, faz recordar Plataforma, a obra-prima de 2000: a vida, a separação de um grupo de personagens ao longo do tempo (no caso de Mountains May Depart, entre 1999 e 2025, ou seja, memória e futuro vistos daqui), e a música que eles ouvem e dançam. Sai-se a cantar Go West, dos Pet Shop Boys, isso é garantido. Mas Zhang-ke é hoje um cineasta diferente do de Plataforma.
O filme anterior, A Touch of Sin, dava conta da mutação. Com Mountains May Depart, ele agora quer passar por cineasta do melodrama. O desejo de linearidade que a narrativa mostra começa por espantar – cremos que o falar-se no filme para a Palma de Ouro, como está a acontecer também com Carol de Todd Haynes, tem a ver com os valores da simplicidade e da transparência. Induz no espectador, no início do filme, quando as personagens, uma rapariga e os seus dois pretendentes, vivem o pico da indecisão amorosa, o ardor de expectativa.
Depois, ela (Tao Zhao, musa, actriz e companheira do realizador) escolhe um, o outro desaparece. Vamos seguir as suas separações, esperar pelo hipotético reencontro – porque é um melodrama familiar. É com esse espraiar que o filme começa a ficar sem fôlego, como se o formato tivesse sido uma auto-imposição, pré-existisse a um natural desenvolvimento das coisas – começa a evidenciar-se, aqui e ali, o esforço.
Mas é esse – o melodrama – o formato natural para alguém como o filipino Brillante Mendoza, nome muito falado em Cannes, e demonizado também, por causa de Kinatay, em 2009, que lhe valeu o prémio de Melhor Realizador.
Taklub (Trap é um título alternativo; o filme passou na secção Un Certrain Regard), que surge na sequência do ciclone tropical Yolanda que em 2014 fez mais de seis mil vítimas das Filipinas, está no campo oposto de Kinatay, está a gerar unanimidade.
É um projecto que teve apoio governamental, no âmbito de programas de protecção contra desastres naturais, e podia-se recear uma visualização dos cadernos de encargos. Mas em tudo é um filme de Mendoza: a visão do mundo permanece sombria, a vida é um caminho árduo. Mas sobretudo é Mendoza nisto: a incrível energia que o seu cinema, que mistura profissionais – uma senhora do cinema filipino, Nora Aunor, que Mendoza dirigira em Thy Womb – e não-actores, encontra entre lugares e pessoas. Um filme, para Mendoza, só pode ser mesmo uma forma de fazer parte dessa natural e catastrófica ligação.