Palavras que libertam e atraiçoam

O conceito de género, tal como ele é usado pelos gender studies, para além da sua fecundidade teórica, obrigou a olhar de outra maneira algumas questões fixadas em velhos axiomas. Em primeiro lugar, a determinação biológica e natural do sexo deu lugar a um modelo voltado para a dimensão cultural e social que pôs fim a todo o essencialismo (o qual tinha a sua expressão mais eloquente na ideia de “eterno feminino”, que sempre serviu para perpetuar a dominação masculina). Veja-se o que significou esta evolução: há dois séculos, médicos e filósofos estabeleciam uma perfeita sobreposição (e quando a sobreposição não era perfeita, consideravam que se tratava de uma aberração) entre homem/mulher e masculino/feminino; no início do século passado, a psicanálise e a sociologia procederam a uma clara dissociação dos seres sexuados em relação às qualidade sexuais; e nos últimos anos têm sido as próprias dualidades e toda a lógica binária a serem postas em discussão. No entanto, há alturas em que os conceitos vão para além dos seus próprios fins e se viram contra si próprios. A noção de género, usada para definir a modalidade e o objecto de uma violência, dita “violência de género”, serve muito mal o que pretende designar. Parece, aliás, um conceito inventado para dar uma aparência de igualdade e simetria ao que nada tem de igual e de simétrico: uma grande parte desta violência é exercida pelos homens sobre as mulheres; o contrário é uma percentagem ínfima. Do ponto de vista pragmático, não há aqui vantagem nenhuma em inflacionar a palavra “género” — uma abstracção, certamente importante para um modelo heurístico — e evitar as palavras “mulher” e “homem”. É quase grotesca esta preciosidade teórica, quando transposta para a linguagem corrente, quando o que está em causa é precisamente uma situação de dominação e de violência que não reconhece os termos desse novo discurso e jamais falará a mesma linguagem. O conceito de género serve para desfazer identidades e superar o modo essencialista de ver a diferença masculino/feminino. Por isso, ele serviu para libertar a mulher da “condição feminina”. Mas o tempo da teoria e da ciência não é o tempo da ordem pragmática, histórico-social. Situando-nos ainda nos mesmos domínios, um outro termo que tem sido sujeito a um uso inflacionado, e por isso nefasto, é “homofobia”. A palavra “fobia” tem um sentido preciso, muito forte, e convinha não a banalizar. Um grande parte das verdadeiras vítimas de homofobia nem conhece a palavra ou, pelo menos, está impedida de a pronunciar. A maior violência, neste domínio, é uma violência simbólica que as vítimas acabam por interiorizar e exercer contra si próprias. A homofobia engendra a autofobia, e é aí que as suas marcas mais profundas são sentidas. A homofobia existe e é de facto um problema, mas não há nenhuma vantagem em fazer dela o que os maoístas faziam da violência policial: transformavam a violência real num mito, abusando do sentido que ela tinha e enfraquecendo assim as defesas que, nas ocasiões de urgência efectiva, era preciso mobilizar. Fazer da homofobia uma pequena mitologia (no sentido das “mitologias” da sociedade de consumo, tal como Roland Barthes as definiu e analisou) é um insulto lançado aos que a sofrem na realidade e não podem dar-se ao luxo de dandismos vocabulares e semânticos. A linguagem está cheia de armadilhas e, com ela, é preciso estabelecer um compromisso ético válido para todas as ocasiões.

 

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